A concepção de psicólogos sobre o rural nas políticas sociais

La concepción de psicólogos sobre lo rural en las políticas sociales

The Conception of Psychologists on the Rural in Social Policies

Katya de Brito e Silva
Universidade Federal do Piauí, Brasil
João Paulo Macedo
Universidade Federal do Piauí, Brasil

A concepção de psicólogos sobre o rural nas políticas sociais

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 37, núm. 2, 2019

Universidad del Rosario

Recepção: 12 Janeiro 2017

Aprovação: 20 Março 2019

Informação adicional

Para citar este artigo: Silva, K. B., & Macedo, J. P. (2019). A concepção de psicólogos sobre o rural nas políticas sociais. Avances en Psicología Latinoamericana, 37(2), 345-360. Doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.5200

Resumo: As políticas sociais constituem um campo de trabalho significativo para a psicologia na contemporaneidade e têm contribuído para a aproximação de psicólogos com os contextos rurais. Assim, este artigo tem por objetivo discutir as concepções a respeito de rural, de psicólogos que atuam nas políticas sociais. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com seis psicólogos que trabalham em três municípios de pequeno porte do estado do Piauí, no Brasil. Os dados foram obtidos por meio de observação participativa, entrevistas semiestruturadas, conversas informais e diários de campo. Os resultados apontam que o termo rural é concebido por esses profissionais prioritariamente como local físico, carente e separado da realidade urbana. Além disso, constatou-se que a inserção mais recente de psicólogos nos contextos rurais trouxe desafios para nossa ciência e profissão em termos de considerar a complexidade do rural brasileiro. Dessa maneira, torna-se necessário que os psicólogos se apropriem de discussões teóricas e críticas sobre o rural como categoria do pensamento, sendo composto de potencialidades e diversidades, para que suas compreensões, abordagens e inserções nesse campo sejam qualificadas.

Palavras-chave psicólogos, políticas sociais, rural.

Resumen: Las políticas sociales constituyen un campo de trabajo significativo para la Psicología en la contemporaneidad y ha contribuido para la aproximación de psicólogos con los contextos rurales. Así, este artículo tiene por objetivo discutir las concepciones de psicólogos que actúan en las políticas sociales respecto a lo rural. Se trata de una investigación cualitativa realizada con seis psicólogos que actúan en las políticas sociales en tres municipios de pequeño tamaño del estado de Piauí, en Brasil. Los datos fueron obtenidos por medio de observación participante, entrevistas semiestructuradas, conversaciones informales y diarios de campo. Los resultados apuntan a que lo rural es concebido por esos psicólogos prioritariamente como lugar físico, carente y separado de la realidad urbana. Además, se constató que la inserción más reciente de psicólogos en los contextos rurales trajo desafíos para nuestra ciencia y profesión en términos de considerar la complejidad de lo rural brasilero. De esta manera, se vuelve necesario que psicólogos se apropien de discusiones teóricas y críticas cobre lo rural como categoría del pensamiento y compuesto de potencialidades y diversidades, para que pueda calificar sus comprensiones, abordajes e inserciones en este campo.

Palabras clave: psicólogos, políticas sociales, rural.

Abstract: Social policies constitute a significant work field for psychology in contemporaneity and have contributed to approximate psychologists to the rural. Therefore, the present article aims to the conceptions of six psychologists working in social policies in a rural context, through a qualitative study in three small cities in Piauí. Data collection followed a participant-observation approach, using field diary, informal conversations, and semi-structured interviews. Results showed that the psychologists conceive rural mainly as a physical space, deprived and separated from the urban context. Moreover, the research showed that the more recent insertion of psychologists in this context brought some challenges to the profession regarding the complexity of rural Brazil. Therefore, it is necessary for psychologists to take ownership of theoretical and critical discussions about the rural as a category of thinking and composed by opportunities and diversity; in such way, it will be possible to qualify psychologists’ understandings, approaches, and insertions in this field.

Keywords: Psychologists, social policies, rural.

Introdução

As políticas sociais constituíram-se ao longo dos anos como lócus significativo de inserção profissional para psicólogos no Brasil. Trata-se de um campo complexo, contraditório, diverso e permeado de desafios, racionalidades e intencionalidades (Behring & Boschetti, 2007; Draibe, 1989), que precisa ser aprofundado por essa categoria profissional para qualificar sua capacidade de análise e intervenção, além de considerar os limites impostos pelo modo como essas políticas foram conformadas no país.

O contexto capitalista, com seus meios de exploração e individualização intensificados em sua fase monopolista, trouxe à tona a “questão social” enquanto expressão de um conjunto multifacetado de desigualdades econômicas, políticas e culturais, resultando na marginalização de amplas parcelas da sociedade em relação aos bens materiais e simbólicos produzidos pela civilização (Ceolin, 2014). Como consequência, a pauperização, exclusão, violência, analfabetismo, trabalho infantil, desemprego, fome, falta de moradia, além de outras iniquidades acabaram por acarretar impactos diversos nas condições de vida e de saúde da população (Santos, 2008). As lutas sociais e da classe trabalhadora exigiram respostas e interferências do Estado tanto para o reconhecimento e legalização dos seus direitos, quanto para implementação de políticas que atendessem aos interesses e ao amplo conjunto de necessidades sociais da população brasileira (Iamamoto, 2007).

Sendo um tipo de política pública, as políticas sociais são entendidas como “desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento – em geral setorializadas e fragmentadas – às expressões multifacetadas da questão social do capitalismo” (Behring & Boschetti, 2007, p. 51). No Brasil, essa intervenção estatal é específica e pluralizada, como políticas sociais, porém, permeada de contradições (Draibe, 1989).

A institucionalização da seguridade social, por exemplo, inaugurada na Constituição de 1988, e constituída pela tríade: previdência, assistência social e saúde, destaca que independentemente de o indivíduo estar ou não inserido na esfera do trabalho, a ele será garantido proteção social por estar inserido no rol de direitos providos pelo Estado (Monnerat & Souza, 2011). Por esse aspecto, a seguridade social representa tanto um movimento de reorganização e ampliação de políticas existentes, como também a introdução de novos direitos. Nesse sentido, universalidade, uniformidade, irredutibilidade, diversidade, caráter democrático e descentralizado, dentre outros, são princípios que deveriam orientar a operacionalização da seguridade social no país (Behring & Boschetti, 2007). Porém, muitos têm sido os obstáculos para efetivar esses ideais de proteção social universal, coordenada e integrada. De acordo com Mota (2008), as políticas que integram a seguridade social brasileira não conseguiram formar um amplo e articulado mecanismo de proteção, sendo conformadas como uma unidade contraditória, fragmentada e focalizada, intensificadas ainda mais sob a esteira do receituário neoliberal implementado na década de 90 no Brasil.

No caso da saúde, isso pode ser verificado com a persistência do modo fragmentado de produzir ações de atenção e cuidado; com a hegemonia do paradigma biomédico que determina os modelos de atenção e gestão em saúde; bem como com os interesses pessoais que permeiam o sistema; e a pouca articulação com outras políticas sociais. Tais fatores acabam por impor limites e dificuldades para avançar na área (Mendes, 2010).

Apesar da ampliação da assistência social, como principal mecanismo de proteção social nos últimos anos, por meio da criação de uma nova arquitetura institucional e ético-política que permitiu de maneira efetiva a realização de um sistema de proteção social ofertado na esfera pública, o setor ainda carrega forte herança assistencialista (Behring & Boschetti, 2007). Nesse sentido, vários têm sido os desafios para a efetivação da política de assistência social. De acordo com Mauriel (2010), “o lugar cada vez mais privilegiado que a pobreza assume no debate sobre política social faz com que as formas adotadas para o enfrentamento da questão social impeçam a generalização dos direitos sociais” (p. 174). Pobres são nomeados e tratados pela via da fragilidade, sendo desconsiderados em sua história, contextos e capacidades, contribuindo para uma visão reduzida de questão social. Por sua vez, Oliveira et al. (2014), dentre outros, entendem que existem divergências e precariedades na forma de organização e execução dos serviços, nas instalações dos equipamentos de atendimento, enfim, nas condições de trabalho. Tais dificuldades têm interferido no desenvolvimento das práticas profissionais, que não têm provocado mudanças na realidade de usuários desses serviços, constituindo-se, na maioria das vezes, como um conjunto de ações paliativas. Associa-se a esse, o desafio do Estado em propiciar condições de res-postas para além do emergencial e do imediato, gerando inúmeras dificuldades para a concretização da política de assistência social enquanto um sistema sólido de proteção social, devido ao padrão hegemônico de manutenção das políticas públicas como mantenedoras da ordem a favor do capital (Bazza & Carvalho, 2013).

Tais aspectos são importantes e precisam ser considerados pelos psicólogos ao se inserirem e atuarem nesses cenários, pois determinam as possibilidades de ação da profissão. De acordo com Pires e Braga (2009), verifica-se um considerável aumento do número de psicólogos no setor da saúde. Em um levantamento no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), existem 78.334 mil psicólogos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), sendo 44.9% ligados à administração pública. Os estabelecimentos de saúde que concentram maior percentual de profissionais são: centros de saúde/unidades básicas de saúde (33.92%), centro de atenção psicossocial (21.69%), ambulatórios especializados (11.88%) e unidades hospitalares —Geral e Especializado— (11.41%) (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, s. f.). Um número expressivo de profissionais estão associados a equipes com ênfase na promoção da saúde e prevenção de doenças, que abrem novas dimensões para a compreensão dos fenômenos da saúde a partir das determinações sociais do processo saúde-doença. Ademais, são serviços compostos por equipes multiprofissionais, portanto, que exigem atuações interprofissionais, demonstrando uma maior oferta de ações em todos os níveis de atenção, particularmente os de base territorial e comunitária. Por ser uma área de atuação recente para psicólogos, dados do Censo do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) indicam o total de 40.400 psicólogos atuando no setor de assistência social, sendo 9.937 em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), 4.392 em Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), 2.617 em Centros de Convivência, 3885 em Unidades de Acolhimento, 309 no Centro Pop, 253 em Família Acolhedora, 1.688 em Centros Dia, e 447 e 16.872 na Gestão Estadual e Municipal, respectivamente (Ministério do Desenvolvimento Social, 2018).

Essas informações ajudam a identificar que a saúde e a assistência social constituem-se como um campo no qual psicólogos têm-se inserido de maneira expressiva e sistemática no âmbito das políticas sociais (Yamamoto & Oliveira, 2010; Macedo et al., 2011). São políticas que têm cumprindo o papel de convocar esses profissionais a estarem presentes nos mais diversos lugares e regiões do país, aproximando-os de novos campos, inclusive com destaque para os contextos rurais, por meio da interiorização e regionalização dos serviços em municípios de médio e pequeno portes. Neste caso, as populações dessas localidades, especialmente aquelas que vivem em contextos rurais, têm tido acesso de maneira mais efetiva aos serviços prestados por psicólogos por meio das políticas sociais (Leite, Macedo, Dimenstein & Dantas 2013).

Por outro lado, estudos relatam e refletem sobre as insuficiências teóricas e práticas da profissão para atuar no âmbito das políticas sociais (Yamamoto & Oliveira, 2010; Macedo & Dimenstein, 2012). Associado a insegurança teórica, técnico-interventiva e político-administrativa, a inserção de psicólogos nas políticas sociais notadamente nas localidades do interior, tem sido marcada pelo estranhamento, frustração, impotência, mal-estar e rotatividade nos serviços, considerando serem realidades não discutidas na formação, além da precarização das condições de trabalho (Macedo et al., 2011; Macedo & Dimenstein, 2012; Dantas, 2013).

Isso se acentua, especialmente, no caso de áreas rurais, pois no Brasil, psicólogos têm pouco estudado e compreendido a categoria rural (Albuquerque, 2001; 2002), sendo um desafio inserir-se em meio as necessidades e condições de vida dos sujeitos que vivem nessas realidades, com suas identidades, diversidades de formas de organização e valores socioculturais, além da existência da pluriatividade do meio rural e da precarização das políticas públicas.

Pode ser visualizada por meio de um mercado de trabalho que abrange desde a prestação de serviços manuais até o emprego temporário nas indústrias tradicionais (agroindústrias, têxtil, vidro, bebidas, etc.) e pela combinação de atividades típicas do meio urbano do setor terciário com o management das atividades agropecuárias. Isso faz com que os campos passem a ser olhados como oportunidade para novos negócios (Silva, 1997; Wanderley, 2000).

Sobre o chamado meio rural brasileiro, tem sido pensado por uma ampla produção que perpassa diversas áreas do conhecimento, sendo o rural uma categoria de reflexão teórica, tomada a partir de vários sentidos, tornando-se objeto de estudos de forma inaugural desde a passagem do século XIX para o século XX (Queiroz, 1973 como citado em Moraes & Vilela, 2013).

Inicialmente, o rural foi entendido por meio de uma lógica binária em contraposição com o urbano, numa visão dicotômica entre cidade e campo (Moreira, 2005a; do Carmo, 2009). No entanto, a partir de 1930, a continuidade entre esses dois espaços foi ressaltada, porém, resguardadas as suas particularidades em um continnum rural/urbano (Lindner, Alvez & Ferreira, 2009). De 1950 a meados de 1970 acentuou-se o entendimento de rural como sinônimo de agrícola por meio da abordagem difusionista, tendo predominado a chamada perspectiva psicológico-behaviorista, que concebeu o agricultor como um ator que respondia aos estímulos das novas tecnologias, da educação, das oportunidades ocupacionais e outras (Fliegel, 1993 como citado em Schneider, 1997). Já nos anos 1980 houve um salto nos estudos rurais no Brasil (Wanderley, 2011) em termos do número de produções e em áreas do conhecimento, seguido, nos anos 1990, por mudanças nas análises sociológicas deslocando o foco da agricultura e da dicotomia entre rural e urbano para pensar o rural sob novas bases conceituais, defendendo a existência de um novo rural brasileiro.

Pelo argumento de Silva (1997), essa ampliação de concepções trouxe o entendimento de que o rural não poderia ser reduzido ao agrícola considerando o crescimento de pessoas envolvidas em outras atividades produtivas, inclusive facilmente reconhecidas como tipicamente urbanas. Wanderley (2000), por sua vez, chamou atenção em seus estudos para diferenças espaciais e sociais na atualidade que “apontam não para o fim do mundo rural, mas para a emergência de uma nova ruralidade” (p. 4). Considerando as transformações sociais em curso. Nesse sentido, enfatiza a necessidade de pensar o rural brasileiro tanto a partir das relações com o urbano, quanto por meio de suas relações internas específicas, incluindo, além dos aspectos econômicos e produtivos, os modos de sociabilidade, de vida e trabalho que (re)produzem o rural. Assim, “estudar a ruralidade significa dar relevo à dinâmica dos modos de vida das coletividades locais” (Schneider & Blume, 2004, p. 112).

Carneiro (2012) aponta outra perspectiva que vem sendo reconhecida como nova ruralidade. Trata-se de pensar a ruralidade “como um processo dinâmico em constante reestruturação dos elementos da cultura local mediante a incorporação de novos valores, hábitos e técnicas” (p. 50). Moreira (2005b) entende ainda as ruralidades como expressões de identidades sociais no mundo rural. Por isso tematiza a existência de um processo de ressignificação (desconstrução-construção) do rural a partir das antigas oposições balizadoras das representações hegemônicas que configuraram os meios e os povos rurais: tradicional-moderna, rural-urbano, campo-cidade e agricultura-indústria.

Por fim, Veiga (2006) sugere uma nova leitura a partir da abordagem territorial com o objetivo de contribuir com ações de planejamento e desenvolvimento rural. Para o autor, é um equívoco associar ruralidade a tudo o que esteja fora do perímetro urbano, bem como discutir as relações rural/urbano a partir de antagonismos. O enfoque territorial de Veiga (2006) é pensado então como alternativa para substituir as dicotomias rural/ urbano. Nesse sentido, as ações indutoras do desenvolvimento rural deveriam tomar o próprio território rural como ponto de referência e não o seu antagônico, o urbano, enquanto parâmetro a ser alcançado pelo rural. Para Alcântara Filho, Silva e Silva (2009), o desenvolvimento rural sob a perspectiva da abordagem territorial seria:

Um processo de mudança social, político, econômico e cultural, voltado para uma valorização das atividades locais, distribuição de renda justa e erradicação da pobreza, buscando alcançar uma melhoria do padrão de vida da população, satisfazendo-a em suas necessidades humanas básicas e respeitando os preceitos de sustentabilidade ambiental (p. 31).

Assim, além das transformações e das novas dinâmicas espaciais, regionais, sociais e simbólicas que têm dado uma nova face ao rural, é preciso também considerar a descentralização de políticas que têm incidido sobre essas realidades, no sentido de diminuir níveis de pobreza e outras fragilidades e iniquidades que marcam os territórios rurais brasileiros, a exemplo da valorização e fortalecimento da agricultura familiar, acompanhado da diversificação das economias dos territórios, com destaque para o estímulo do setor de serviços e pluriatividade (Favareto, 2010; Schneider & Blume, 2004).

Entretanto, Favareto (2010) alerta que esse processo não se dá sem tensões, considerando: “o caráter territorial das novas orientações em contraposição ao viés setorial das instituições existentes” (p. 313). A própria participação de diversos organismos internacionais, a exemplo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o Banco Mundial, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Instituto Interamericano de Cooperação Agrícola (IICA), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), na definição de políticas, sobretudo nos países periféricos e em desenvolvimento, ao propor respostas fragmentadas e focalistas frente às diversas expressões da questão social que aflige os povos e os meios rurais, faz com que as agências multilaterais tenham lugar de destaque nesse processo, com a reprodução do viés setorial.

Em síntese, existem hoje no Brasil importantes interpretações sobre ruralidades, que de maneira geral têm destacado os contextos rurais como complexidades (Alentejano, 2003; Carneiro, 2005; Moreira, 2005a; Mattei, 2015). Certamente, o desafio que se coloca é lidar com particularidades sem perder de vista os processos mais amplos que as determinam, e sem associar as populações rurais a limites do que hegemonicamente é entendido por rural. Há entre os territórios, rural e urbano, fronteiras móveis, que inclusive, podem ser deslocadas de uma espacialidade física. Nesse caso, indivíduos podem, mesmo estando fora de sua referência espacial, expressar o seu vínculo com ela, ou seja, sua identidade territorial (Carneiro, 2005).

Diante disso, este artigo objetiva discutir sobre as concepções de psicólogos que atuam nas políticas sociais a respeito do rural. Com isso, espera-se contribuir com novos elementos teóricos e críticos acerca do debate da psicologia nos contextos rurais, enriquecendo suas perspectivas e inserção nesse campo.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo realizado com 06 psicólogos do CRAS (n=2), da Equipe Volante do CRAS (n=3) e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (n=1) de três municípios de pequeno porte localizados no interior do estado do Piauí, no Brasil.

O Piauí está localizado na região Nordeste do Brasil e conta com uma população de 3.118.360 habitantes distribuídos em 224 municípios. Dados oficiais indicam que 34.2% desse contingente populacional faz parte da zona rural. Porém, se considerarmos que 73.21% dos municípios piauienses contam com população com até 10 mil habitantes e 15.62% entre 10.001 e 20 mil habitantes, entendemos que aquele índice de 34.2% pode ser bem maior já que a maioria dos municípios piauienses possui estreita relação com o meio rural.

Veiga (2001) alerta que o Brasil é mais rural do que demonstram os dados oficiais, pois segue uma regra única no mundo que considera como urbano qualquer sede de município (cidade) e de distrito rural, não importando suas características estruturais ou funcionais. Nesse sentido, 80% dos municípios brasileiros seriam rurais e neles residem 30% da população. Tal entendimento foi fortalecido com a formulação do Programa Territórios da Cidadania, criado por Decreto Federal nº 40.117/2008, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e a universalização de programas básicos de cidadania, por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Assim, define um território rural por sua identidade social, econômica e cultural, tendo como requisitos: a) conjunto de municípios com até 50 mil habitantes; b) densidade populacional menor que 80 habitantes/km2; c) organizados em territórios rurais de identidade; d) integrados com os Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD), do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e/ou Mesorregiões, do Ministério da Integração Nacional (MI) (Presidência da República do Brasil, 2008).

Neste momento, parece-nos fundamental destacar que na medida em que rural não diz respeito apenas a um local físico, considerado por Moraes (2014) como uma categoria do pensamento teórico, do senso comum e de classificação da vida social, defini-lo tendo por base somente os critérios quantitativos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que dividem zona rural e zona urbana, torna-se insuficiente. É preciso entender que há conexões entre os territórios rural e urbano, (Carneiro, 2005).

Partindo dessa contextualização, como critério de definição dos locais e sujeitos da pesquisa, anteriormente referidos, foram selecionados municípios de pequeno porte com população de até 10 mil habitantes que fazem parte do território denominado “Cocais” e que contam simultaneamente em sua rede de serviços com grupos e centros como: CRAS, Equipe Volante do CRAS e NASF. Os municípios que atenderam a estes critérios foram: Brasileira (7.966 habitantes), São João da Fronteira (5.608 habitantes) e Milton Brandão (6.770 habitantes) (IBGE, 2010).

Sobre o processo de investigação, foram realizadas leituras e pesquisas que versam sobre rural e psicologia, a partir de levantamentos bibliográficos a respeito de rural nos campos da sociologia, antropologia, agronomia, dentre outros. Além disso, foram feitos levantamentos documentais referentes às políticas do sus e do suas e à profissão de psicologia e, por fim, foi realizada a pesquisa de campo, com a imersão nas realidades de trabalho dos psicólogos nos municípios.

A pesquisa de campo foi realizada por meio de observação participativa, conversas informais, entrevistas semiestruturadas e uso de diário de campo. Essas estratégias metodológicas possibilitaram acompanhar os movimentos nas falas e nas ações dos participantes, constituindo-se como meios onde puderam relatar e demonstrar suas concepções e vivências, sem nenhum tipo de impedimento, o que impossibilitaria a manifestação de conteúdos que pudessem contribuir para os resultados e, até mesmo, para o próprio direcionamento do processo de pesquisa. Desta forma, os conteúdos das observações, das entrevistas e das conversas informais foram registrados e transcritos durante toda etapa de campo no processo de pesquisa.

Quanto ao tratamento dos dados, trabalhou-se com a análise de conteúdo na categoria análise temática (Minayo, 1993), tendo como procedimentos as etapas de categorização, inferência e interpretação dos dados. O estudo teve aprovação do comitê de ética de pesquisa, atendendo aos aspectos éticos e metodológicos de acordo com as diretrizes do Conselho Nacional de Saúde (nº 466/12 e nº 510/16), com CAAE: 56181416.0.0000.5214.

Resultados

Perfil dos psicólogos que atuam nas políticas sociais em municípios de pequeno porte no Piauí

As tabelas 1 e 2 apresentam uma síntese do perfil profissional e formativo dos entrevistados. Identificamos que a maioria dos psicólogos que trabalham nesses contextos rurais são mulheres. Isso reflete na predominância feminina na profissão —composta por 94.4% de mulheres— (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2016).

Tabela 1
Perfil dos psicólogos entrevistados
Perfil dos
psicólogos entrevistados


Nessa tabela ainda é possível identificar que se trata de profissionais jovens, quatro entre os entrevistados se encontram na faixa etária de 27 a 34 anos, os demais possuem mais de 50 anos. Quanto ao estado civil são majoritariamente casados. Um dado que merece destaque é que a maioria dos entrevistados é natural de municípios pequenos do Piauí, que saíram de suas localidades para cursarem o ensino superior, e que atualmente ou retornaram para os seus municípios ou estão trabalhando em outros municípios com características semelhantes. Com isso, não se pode deixar de destacar que são psicólogos que têm uma trajetória de vida marcada pela ruralidade, por conta da vivência em seus pequenos municípios. Essa realidade é fruto da ampliação do acesso ao ensino superior no Brasil, com os quais muitos estudantes de cidades de pequeno porte têm buscado o ensino superior nas capitais brasileiras ou cidades polo de desenvolvimento regional (Macedo & Dimenstein, 2011).

Em relação à formação (tabela 2), a maior parte tem entre 05 a 09 anos de formados (três). Na sequência estão aqueles com menos de 05 anos (dois), e um único caso que possui 34 anos de graduação. Destaca-se que as formações foram realizadas em Instituições de Ensino Superior (ies) privadas e públicas, em igual número, localizadas nas capitais (cinco) e no interior (uma), o que contribui para maior heterogeneidade dos perfis formativos (Dantas, 2013).

Tabela 2
Perfil de formação dos psicólogos entrevistados
Perfil de formação dos psicólogos
entrevistados


Ainda em relação à formação (tabela 2) a maioria possui especialização, majoritariamente em saúde mental (três). Outro profissional possui várias especializações, entre elas, tanatologia, educação especial e mestrado em psiquiatria infantil. Outros dois profissionais estão cursando especialização em psicologia clínica. No geral, chama atenção a formação em saúde mental e a não referência a cursos nas áreas da proteção social básica do sus e do suas. Nesse sentido, mesmo quando foi relatada experiência de formação relacionada ao serviço (educação continuada), esta foi considerada insuficiente: “nas capacitações vou com uma dúvida e volto com duas” (P4). Essas constatações demonstram que apesar da importância dos níveis básicos de atenção/proteção das políticas de saúde e de assistência social como campos de inserção para a psicologia, a graduação e a formação continuada ainda dialoga pouco com esses cenários e realidades.

Outro dado importante refere-se à ausência de estágios e disciplinas relacionadas à ruralidade na graduação. Nesse caso é preciso problematizar a constatação de que psicólogos têm cada vez mais atuado em contextos rurais, mas por outro lado, sem possuir fundamentação teórica-crítica e experiência prática anterior nesse campo. Tal realidade se constitui como um desafio que passa antes de tudo pela limitada e deficiente formação em psicologia voltada para as questões que envolvem as próprias políticas sociais (Macedo & Dimenstein, 2012), notadamente em contextos rurais (Leite et al., 2013). Nesse sentido, cabe considerar o quanto a formação em psicologia se relaciona diretamente ao projeto de profissão, sendo as questões da formação igualmente questões da profissão (Rechtman, 2015), resguardadas, certamente, as particularidades entre uma e outra. Mas como se pode perceber, apesar de contar com a presença expressiva de profissionais nesses contextos, não têm sido contemplados com experiências formativas com as ruralidades em suas graduações.

Concepções de psicólogos que atuam nas políticas sociais em pequenos municípios do Piauí sobre o rural

No que diz respeito à concepção sobre rural, a resposta preponderante dos entrevistados foi a associação com a ideia de local físico. De maneira mais detalhada o termo rural foi associado a aspectos físicos e geográficos, com a utilização de expressões como acesso, localidade, distância, área rural, campo rural, ambiente comum, região, povoado e interior. Sobre esse último, é importante mencionar que o termo “interior” relaciona-se com o imaginário sertão/litoral, significando distante da costa. Mas no Piauí, conforme Moraes (2007), ele foi “ressemantizado” tanto pelos moradores da capital quanto dos demais municípios do Estado para referir à alteridade em relação ao urbano.

Apesar dessas compreensões, o rural não diz respeito apenas às imagens aludidas acima, como distante, agrícola, arcaico e atrasado, enfim, em oposição ao urbano. O rural é compreendido como “espaço” singular, diversificado e como construção histórica, que demanda novo compromisso institucional, como relata Wanderley (2000), pois ali encontram-se identidades em construção. Nesse caso, é preciso que os profissionais tenham sensibilidade e embasamento teórico-metodológico para considerar a dinamicidade e heterogeneidade de processos que compõem o rural (e as ruralidades).

Mesmo considerando o primeiro conjunto de respostas a respeito de rural, tentamos explorar outras características associadas, agora, às pessoas e relações nesses contextos. Assim, além da referência ao aspecto físico que marca a qualificação sobre rural no trabalho desses profissionais, também mencionaram o aspecto idílico ao representá-lo como sinônimo de tranquilidade, natureza e calmaria. A carência foi outra compreensão utilizada para referir-se ao rural, inclusive às pessoas que ali vivem, percebidas como necessitadas, vulneráveis e com uma vida difícil. O trecho a seguir obtido de um entrevistado representa bem este entendimento: “— Gosto do contato com essa realidade. Sempre busquei trabalhar em cidades pequenas. Interesso-me em trabalhar com pessoas menos favorecidas. É assim que as vejo!” (P4). Essas concepções muitas vezes são acompanhadas de estereótipos ao definir os moradores como leigos, sem informação, alienados, sem paciência, acomodados, e que requisitam a resolução rápida dos problemas. Por outro lado, há profissionais que concebem tais pessoas como acolhedoras, receptivas e participativas. Mas de todo modo, reforçam o rural como lugar de poucas oportunidades, sem informação e distante do moderno. É importante lembrar que na modernidade burguesa, concepções como atrasado, tradicional, rústico, carente, dentre outros, constituíram imagens hegemônicas do rural subalterno e oposto ao urbano (Moreira, 2005a).

Para Favareto (2006) um dos principais dilemas da própria ação do Estado nas suas tentativas de promover o desenvolvimento rural, é exatamente ancorar-se na idéia de rural e de ruralidade como secundária, dado à ênfase no urbano/moderno. O aspecto residual do rural e sua associação espontânea à pobreza e ao atraso reduzem as probabilidades de investimentos, tanto científicos e políticos quanto econômicos, contribuindo, portanto, para determinar uma situação em que a posição marginal do rural é continuamente reforçada, de maneira simbólica e material.

Vale destacar que nessa referência ao rural houve uma homogeneização das concepções sobre o mesmo, entendido como constituído por pessoas adultas de vida difícil. Tal entendimento pode estar ancorado na imagem homogeneizadora e estereotipada acerca das pessoas que vivem em contextos rurais como trabalhador do campo. “— O homem, ele ainda acaba fazendo aqueles serviços: de mexer com agricultura, com bichos” (P5). “— São pessoas com poucas oportunidades, aquela vida difícil de trabalho duro, pesado mesmo, isolamento, porque até a distância de uma casa para outra é muito grande” (P5).

Tais concepções deixam de considerar entendimentos que tomam os povos rurais como seres de cultura, cujos corpos também expressam sistemas culturais, não estando apenas relacionados às esferas do trabalho e produtivista. Um olhar mais ampliado por parte dos entrevistados poderia captar, por exemplo, subjetividades e posições econômicas, políticas, sociais, de gênero, geracional, dentre outras (Bourdieu, 2006), ajudando assim, a repensar essa associação direta entre rural e trabalhador do campo. O que nos leva a indagar: de que maneira e em que direção psicólogos interagem com populações que vivem em contextos rurais, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos? Quais valores e significados de infância, juventude e velhice são produzidos e reproduzidos nas suas atividades nesses contextos? Tais questões precisam ser consideradas, como forma de romper com representações conservadoras e homogeneizantes acerca do rural, já que este “engloba diferentes registros de sociabilidades e de identidades” (Paulino, 2005, p. 261).

Além desses aspectos, os entrevistados fizeram referência sobre as relações de sociabilidade presente nos contextos rurais. A marca dessa sociabilidade se expressa no acolhimento, no forte vínculo entre as pessoas, nas relações de ajuda e reciprocidade e nos fortes vínculos de vizinhança que estruturam a vida nas realidades visitadas. Porém, no âmbito doméstico, foram referidas situações de violência, relatadas por uma profissional e que, de acordo com ela, na “cultura” das localidades do interior não existe “ligamento”, afetividade e apego. A mesma citou um caso que lhe causou muita admiração, de um pai que agredia seus seis ou sete filhos que acabaram saindo de casa antes mesmo de completarem os dezoito anos, e que falava, de acordo com ela, com naturalidade sobre essa situação.

Aspectos culturais e comportamentais também foram utilizados para definir rural. Falaram a respeito de influências negativas da vida urbana trazida por jovens quando retornam para casa depois de meses fora em função do trabalho em outras regiões do país; situações de violência contra mulheres, crianças e adolescentes, no ambiente doméstico, entendidos como de ordem cultural; a imagem de lavrador representado como acomodado, tímido, reproduzindo comportamentos engendrados pela falta de informação e punições; ou ainda o fato dos jovens, principalmente mulheres, casarem cedo, por falta de alternativas e projetos, vendo no casamento uma alternativa mais viável.

Porém não dá para tomar tais situações como hegemônicas. É preciso reconhecer, por exemplo, a complexidade que se expressa na vida de jovens no campo, pois “não existe uma juventude rural, mas muitas juventudes rurais” (Weisheimer, 2013, p. 26). Assim, conhecer os processos de socialização dos jovens nos contextos rurais acaba por romper com definições de caráter substancialista ou mesmo definições ancoradas a partir de uma ótica urbana, sendo a categoria juventude uma construção social em disputa (Weisheimer, 2013).

Esse conjunto de compreensões a respeito de rural demonstra o quanto psicólogos têm reproduzido sentidos associados à dicotomia rural/urbano, em que o rural é separado do urbano e sinônimo de atrasado, carente e vulnerável, por exemplo:

Os trechos acima expõem a clara separação entre rural e urbano. Mas como destaca Moraes e Vilela (2013), “rural” diz respeito a uma categoria do pensamento e que vem enfrentando mudanças em diferentes esferas, socioeconômica, demográfica, cultural, que tem levado à compreensão da relação entre campo e cidade como construções simbólicas que ultrapassam características paisagísticas, formas de uso dos bens naturais e base físico-espacial, portanto, uma forma de percepção e representações, cultural e identitária.

Para Alencar e Moreira (2005) trata-se de um processo social complexo, com a inexistência de uma mera atração entre rural e urbano. Nas palavras de Moreira (2005a) trata-se de “complexas relações sociais contemporâneas que apresentam, ao mesmo tempo, fluxos culturais e materiais da ruralidade e da urbanidade” (p. 21). Essas relações são tão marcantes na contemporaneidade que foram identificadas em discursos de certos profissionais, que por vezes se referiram à sede do município como rural, ou mesmo associaram a realidade da sede à mesma realidade de zonas rurais. Porém, isso não constitui sua concepção acerca de rural, pois foram apresentadas de maneira isolada ou mesmo captadas em ambiguidades nas falas.

[...] aqui particularmente em [município] eu sou responsável pela sede. Se bem que a nível de [município] não se diferencia muito rural de sede. Já no meu outro serviço, que eu trabalhava no NASF, eu cheguei a ter contato com o “ruralzão” propriamente dito (P3).

Nesse caso, é possível verificar que o profissional realizou um movimento em torno da noção de rural como dicotômico e também como continuum, onde o discurso inicia fazendo referência à separação entre rural e urbano, em seguida o rural é associado ao urbano e depois novamente separado do mesmo. Ou seja, apesar de certo movimento em direção a relacionar rural e urbano, reafirma-se a conclusão inicial a respeito da concepção de rural prioritariamente como um local e oposto à cidade.

Apesar dessas compreensões entre os profissionais entrevistados, nas observações em campo e conversas informais foram observados elementos que apresentam concepções inversas a essa ideia de estabilidade e separação entre rural e urbano. Nos três municípios, moradores tanto da sede quanto da zona rural direcionam-se constantemente para cidades vizinhas - das quais os municípios foram desmembrados – como, por exemplo, para realizar compras e acessar serviços. Por recorrerem constantemente a essas cidades vizinhas, espécie de “fronteiras móveis” como diria Carneiro (2008), alguns moradores costumam dizer que estão “indo para a rua”. Nesse trânsito, acabam levando e trazendo consigo representações e culturas.

De fato, não se pode esquecer que as regiões rurais dependem das regiões urbanas para acessarem serviços e equipamentos sociais de maior complexidade. Isso tudo conforma uma “conectividade física e virtual” entre esses espaços, na conformação de uma “trama territorial” (Favareto et al., 2015, p. 21). Nesse sentido, ruralidades seriam trabalhadas como representação (Carneiro, 2008; Moraes & Vilela, 2013), considerando que as pessoas, em diferentes espaços, trazem sua vida, cultura e identidade. Com isso, rural, não pode ser entendido somente como espaço geográfico em oposição ao urbano ou a sede do município. Se não considerar a multiterritorialidade (Haesbaert, 2007), que é a vivência concomitante de diversos territórios, os quais envolvem as dimensões material, simbólica e do poder, os psicólogos podem não compreender ou aproximarem-se da complexidade dos elementos em jogo que constituem os povos e os meios rurais.

Por último, é válido destacar outro aspecto que se sobressaiu com relação à forma com que os psicólogos concebem o rural, que trata sobre as dificuldades sentidas em relação ao trabalho nas políticas sociais nesse campo, devido à precária organização e parco financiamento das próprias políticas, resultando em diversas dificuldades para realização das atividades: falta transporte, material, estrutura física para desenvolver as atividades, articulação e retaguarda de outros serviços, etc. (Oliveira et al., 2014). Nesse sentido, apesar da importância dessas políticas na aproximação de psicólogos com os contextos rurais, suas diretrizes produzem discursos e sentidos alinhados à qualificação dos serviços prioritariamente pela ótica do urbano. Os princípios, diretrizes e orientações dessas políticas, apesar da indiscutível importância, ainda não contemplam análises e singularidades da relação rural/urbano para a leitura das realidades.

Não se pode deixar de considerar que os desafios na prática de psicólogos com as ruralidades, ganham amplitude devido à maior precarização das políticas sociais nos meios rurais. Assim, destacamos como desafios: a) a dificuldade da definição de rural nas próprias políticas sociais e órgãos oficiais, a exemplo do IBGE; b) a necessidade de avançar na compreensão de desenvolvimento rural em termos territoriais, pois ainda é forte o viés setorial; c) as políticas do sus e do suas não contemplam a leitura da relação rural/urbano (Favareto et al., 2014); d) a desproporcionalidade entre o número de psicólogos e a abrangência territorial dos serviços da saúde e da assistência social nos municípios de pequeno porte no Brasil. Juntamente a isso, não se pode deixar de mencionar o desafio de conhecer e materializar os objetivos, diretrizes e estratégias da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF), instituída em 2011 e voltada para o cuidado da saúde dessas populações por meio de ações embasadas em suas especificidades e na busca pela redução das desigualdades de acesso ao sus (Brasil, 2013).

Considerações finais

A temática rural tem sido abordada por meio de um grande número de produções em diversas áreas do conhecimento, o que tem levado a uma vasta discussão acerca do que é rural e sobre suas transformações. Profissionais da psicologia têm vivenciado alguns desafios, dado sua inserção no campo das ruralidades recentemente, principalmente por meio das políticas sociais. Dentre os principais desafios verificados nesta pesquisa, ressalta-se a limitada concepção dos psicólogos pesquisados sobre rural, compreendido preponderantemente como um local físico isolado do urbano.

Assim sendo, é urgente a apropriação dos profissionais da psicologia acerca das discussões teóricas e críticas no âmbito dos estudos rurais brasileiros para que haja uma maior maior qualificação quanto a compreensão de rural como categoria do pensamento, ampliando assim as possibilidades metodológicas, técnica-interventiva e ético-política da profissão nesse campo. Torna-se necessário ampliar o entendimento sobre o rural, no sentido de considerar as relações entre rural e urbano para que se efetivem diretrizes, interesses e poderes, por meio da construção de saberes e práticas coerentes com cada realidade e conjuntos específicos de necessidades.

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