O inconsciente – do sentido do significante ao gozo da letra: um estudo lacaniano*

The Unconscious – from the Meaning of the Significant to the Jouissance of the Letter: A Lacanian Study

El inconsciente – del sentido del significante al goce de la letra: un estudio lacaniano

Éverton Fernandes Cordeiro **
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Márcia Maria Rosa Vieira Luchina
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

O inconsciente – do sentido do significante ao gozo da letra: um estudo lacaniano*

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 35, núm. 3, 2017

Universidad del Rosario

Recepção: 22 Outubro 2015

Aprovação: 08 Novembro 2016

Informação adicional

Cómo citar este artículo: Cordeiro, E. F., & Luchina, M. M. R. V. (2017). O inconsciente – do sentido do significante ao gozo da letra: um estudo lacaniano. Avances en Psicología Latinoamericana, 35(3), 583-600. doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.4317

Resumo: Esse artigo propõe discutir o percurso teórico do psicanalista francês Jacques Lacan, ao distinguir a letra do campo do significante, não apenas do ponto de vista de literalidade e estrutura localizada do significante, mas como elemento que vincula algo da ordem pulsional, do gozo. Assim, Lacan sugere pensar o inconsciente como letra, indo além da noção do inconsciente estruturado como uma linguagem. Nos anos 1970, a partir da noção de enxame de significantes, estar-se-ia, então, sob a perspectiva de um inconsciente “letrificado”, real, tendo em vista a possibilidade de a letra trazer a dimensão de lalíngua, noção que evidencia um gozo entrevisto no sem sentido dos significantes. Finalmente, o artigo apresenta uma discussão contemporânea acerca de dois estatutos do inconsciente: transferencial e real.

Palavras-chave: inconsciente, letra, gozo, real, psicanálise.

Abstract: The goal of this article is to discuss the theoretical trajectory of French psychoanalyst Jacques Lacan in distinguishing the letter from the field of the signifier, not only from the point of view of literalness and of the localized structure of the signifier, but as an element that entails something of the pulsation of the unconscious, of the field of jouissance. Lacan proposes a conceptualization of the unconscious as letter, going beyond the notion of the unconscious structured as language. In the 1970s, based on the notion of an ensemble of signifiers, and from the perspective of a real, “letterized” unconscious that accounts for the possibility that the letter has the dimension of language, within the perspective of an unconscious “as letter” he pointed to the joy derived from the nonsensical nature of signifiers. Finally, the paper includes a contemporary discussion of the two registers of the unconscious: the transferential and the real.

Keywords: Unconscious, letter, jouissance, real, psychoanalysis.

Resumen: Este artículo propone discutir el recorrido teórico del psicoanalista francés Jacques Lacan, al distinguir la letra del campo del significante, no desde el punto de vista de literalidad y estructura localizada del significante, sino como elemento que vincula algo del orden pulsional, del gozo. Así, Lacan sugiere pensar el inconsciente como letra, yendo más allá de la noción del inconsciente estructurado como un lenguaje. En los años 1970, a partir de la noción de enjambre de significantes, se estaría entonces bajo la perspectiva de un inconsciente “letrado”, real, teniendo en cuenta la posibilidad que la letra trae a la dimensión de la lengua, noción que evidencia un gozo entrevisto en el sin sentido de los significantes. Finalmente, el artículo presenta una discusión contemporánea acerca de dos estatutos del inconsciente: transferencial y real.

Palabras clave: inconsciente, letra, gozo, real, psicoanálisis.

Na trajetória do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), o Seminário 18, de 1971, examina a possibilidade de haver um discurso que não fosse da ordem do semblante. Lacan (1971/2009) confere ao termo semblante um estatuto de equívoco ligado à própria ordem significante: “Esse semblante é o significante em si” (p. 14). Assim, ele situa a letra, não como efeito dos discursos atravessados pelo sentido do significante, mas como um modo de abordar o real enquanto impossível:

Se algo chamado inconsciente pode ser semidito como estrutura linguageira, é para que finalmente se nos apareça o relevo do efeito de discurso que até então nos parecia impossível, ou seja, o maisde-gozar. Será que isso significa, seguindo uma de minhas formulações, que, na medida em que era como impossível, ele funcionava como real? [...] O discurso inconsciente [...] é a emergência de uma certa função do significante. O fato de ele haver existido até então como insígnia é justamente a razão de eu o haver situado para vocês no princípio do semblante. Mas as consequências de sua emergência, isso é que deve ser introduzido para que alguma coisa mude —algo que não pode mudar, porque isso não é possível. Ao contrário, é por um discurso centrar-se como impossível, por seu efeito, que ele teria alguma chance de ser um discurso que não fosse semblante (Lacan, 1971/2009, p. 21).

Pode-se localizar, em Lacan, um movimento que vai do inconsciente estruturado como uma linguagem em direção ao real da letra desarticulada de sua vertente de sentido? É o que propõe o presente artigo, pesquisa teórica (Couto, 2010), em que se utilizou o método histórico-sistemático, privilegiando uma aporética crítica, de corte sincrônico, que compreende as elaborações concernentes à natureza, função e desenvolvimento do conceito investigado: a relação entre as noções de inconsciente, letra e significante. Relação aqui não recortada no Primeiro Classicismo (Milner, 1996) ou Primeiro Ensino de Lacan (Miller, 2003) nos anos 1950, nem tampouco num desenvolvimento diacrônico de seu arcabouço conceitual. Contextualmente, o presente estudo se delimita no Lacan dos anos 1970, quando formula novas elaborações sobre a letra em suas articulações com o gozo e suas repercussões na teoria do inconsciente nesse último período de seu ensino. Assim, esta pesquisa busca apontar como esses conceitos se relacionam sincronicamente e formam uma espécie de rede, que não anula outros momentos do ensino de Lacan sobre o inconsciente, mas especifica um momento importante e complexo de sua obra.

Considerações sobre a letra em Lacan

No início dos anos 1970, as elaborações de Lacan sobre a letra caminham na direção de orientar construções de pontos importantes da experiência analítica. A letra, subordinada ao campo da fala e do significante articulado, vai, a partir de outro estatuto, tornar-se referência importante no último ensino de Lacan sobre o inconsciente. Período no qual se verifica uma promoção da escrita e da letra frente ao significante (Mandil, 2003).

As relações entre letra e significante nem sempre foram passíveis de uma definição precisa em Lacan (Milner, 1996; Mandil, 2003). Se no Seminário sobre “A Carta Roubada” (Lacan, 1955/1998c) a letra se encontra na função de transmissão (letter) de uma mensagem, ao mesmo tempo em que nela há outra natureza inerente à sua materialidade (litter), ela está aí relacionada com sua vertente significante. O conto de Edgar Allan Poe serve para Lacan estender as teorizações sobre o significante no início de seu ensino. Lacan (1955/1998c), ao comentar que a singularidade da carta/letra está em “poder sofrer um desvio que ela tem um trajeto que lhe é próprio” (p. 33), encontra na não funcionalidade do significante, o fato deste não se limitar à função de transportador de uma mensagem (Mandil, 2003).

Na Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (Lacan, 1957/1998d), a letra é pensada sob a primariedade do significante como elemento tipográfico, equivalendo a uma estrutura fonemática, através da qual Lacan visa trazer para o primeiro plano das reflexões psicanalíticas a primazia da ordem simbólica, sobretudo no que se refere ao campo da fala (Mandil, 2003). Segundo Milner (1996), Lacan emprega duas noções relacionadas: a literalidade da letra e o sentido do significante. Todavia, diz o autor, “as noções de letra e de significante se obscurecem mutuamente; nem o caráter significante nem o caráter literal da matemática poderiam receber status inteiramente determinado” (Milner, 1996, p. 97).

No início dos anos 1970, Lacan irá distinguir, de maneira mais aprimorada, as noções de letra e de significante. Distinção que constitui um dos pivôs do que Milner (1996) denomina Segundo Classicismo Lacaniano. No Primeiro Classicismo, ter-se-ia o período que se segue, principalmente, à Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Discurso de Roma, 1953), e os desdobramentos referentes à ênfase no significante e na estrutura de linguagem do inconsciente. Porém, a imprecisão das noções de letra e significante caracteriza uma das instabilidades desse período, o que, destaca Milner (1996), vem estabelecer o Segundo Classicismo, como um momento em que Lacan tenta transmitir a psicanálise através dos matemas, levando em conta a operação de literalização promovida pela lógica e pelas matemáticas.

Consoante Milner (1996), se a distinção entre letra e significante se confunde no Lacan dos anos 1950, ela se esclarece e se aperfeiçoa no Segundo Classicismo, no início dos anos 1970. O significante, sendo somente relação, representa “para” e é aquilo por meio do qual ele representa. Assim, ele só se define pela oposição e não adquire valor senão por sua combinatória encarnada no campo das relações de diferença com outros significantes. Sendo somente relação de diferença, o significante é sem positividade, sem qualidade e não idêntico a si. Ao passo que a letra é capaz do princípio de positividade e de identidade consigo mesma, é qualificada, no sentido de ter uma fisionomia e de encarnar uma materialidade, um suporte sensível, um referente (Milner, 1996). Diferente do significante que só existe em oposição a outro, a letra, com suas qualidades e identidade, pode ser rasurada, apagada, abolida. E, sendo deslocável, é manipulável, empunhável, transmissível:

Por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo que ela é, no meio de um discurso, o suporte; um significante não se transmite e nada se transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para um outro significante (Milner, 1996, p. 104-105).

Na sétima lição do Seminário 18, Lacan se refere à letra a partir de um jogo com a palavra Literatura e, fazendo um chiste (Witz), diz Lituraterra. Só depois vai buscar fundamentação léxica, pois “não me submeto forçosamente à etimologia quando me deixo levar pelo jogo de palavras com que às vezes se cria o chiste” (Lacan, 1971/2009, p. 105), justifica. Assim, Lacan (1971/2009) contrapõe literatura (do latim, littera, de letra) a lituraterra (do latim, litura, rasura) e traz, também, outro campo semântico, o litter (lixo), para se referir à dimensão de resto irredutível, atribuída à letra na perspectiva de lituraterra.

Ao também partir do equívoco dos jogos de linguagem, Lacan (1971/2009) se compara ao escritor irlandês James Joyce, cuja escrita leva-o a deslizar de “a letter para a litter”, isto é, “de uma carta/letra para um lixo” (pp. 105-106). Diz que Joyce nada ganharia se houvesse se submetido à “psicanálise” com Jung, que, segundo sua biografia, fora-lhe oferecida. Isso porque, ao fazer da letra liteiralixolitière de la lettre, lugar de dejetos, lixo –, Joyce vai direto “ao melhor que se pode esperar da psicanálise em seu término” (Lacan, 1971/2003c, p. 15). Assim, Lacan aponta para uma forma singular de operação da escrita como resto irredutível às dimensões de sentido. De modo que o fazer lixo da letra joyciano seria “o primeiro exemplo de um uso da letra que não seria do semblant porque estaria exatamente rompendo com a função de encobrimento que é a essência da ordem significante” (Rego, 2005, p. 210).

Lacan (1971/2003c) retoma do Seminário sobre A Carta Roubada a outra natureza da carta/letra, que não a dos efeitos da mensagem que ela transmite. Sendo suporte material e estrutura localizada do significante, a letra tem valor de matéria distinta do próprio significante que ela carrega. Mas isso “não equivale a fazer metáfora da epístola”, pois segundo Lacan (1971/2003c), “o conto consiste em que se transmita como um passe de mágica a mensagem, com que a carta faz peripécias sem ela” (p. 17). O não fazer da letra metáfora da epístola se refere ao fato de que a carta é portadora de uma mensagem, de um significante, “na medida em que ela o carrega em seu envelope” (Lacan, 1971/2009, p. 107). Contudo, no conto de Poe, a carta faz peripécias sem a mensagem e produz efeitos em seus detentores sem que a mensagem seja dada a conhecer. Porém, não se deve confundir letra com significante, pois, não ser metáfora da epístola faz da carta/letra um elemento em que se produz um apagamento da mensagem e dos efeitos significantes que ela veicula, situando-a, assim, em uma materialidade desarticulada de sentido.

Não bastou a Lacan reafirmar a materialidade da letra como estrutura tipográfica localizada do significante, ou um significante esvaziado de sentido. Nos anos 1970, Lacan busca abordar a letra em conexão com o campo pulsional, o campo do gozo. Ao promover a letra sobre o sentido do significante, interessa a ele o fato do significante não possibilitar responder por tudo o que se passa em uma psicanálise (Vieira, 2005; Mandil, 2003).

Duas dimensões da letra: sentido e gozo, saber inconsciente e real

Lacan recorre à metáfora do litoral para articular as duas dimensões da letra: sentido e gozo; saber inconsciente e real. O litoral, distinto da fronteira, é um campo inteiro e completamente estrangeiro e heterogêneo frente a outro, com o qual não possui nenhuma reciprocidade, nenhum denominador comum. Contudo, ao mesmo tempo em que separa mar e terra, o litoral também conjuga esses dois campos, fazendo existir um furo na descontinuidade da passagem de um campo ao outro (Mandil, 2003).

Para Lacan (1971/2003c), a letra se situa na condição de “literal a ser fundado no litoral” (p. 109), enlaçando os dois campos descontínuos e heterogêneos da experiência analítica: o saber articulado na cadeia significante e o gozo. Prestando-se tanto ao gozo quando ao saber, a letra/ litoral é aquilo que faz borda no furo do saber. Ela desenha, faz contorno ao que escapou ao discurso do semblante, encontrando-se no litoral do furo que há no limite daquilo que a cadeia significante produziu de significado (Rego, 2005). É nesse limite da interpretação que surge a questão do gozo, que envolve a experiência analítica, e sobre o qual é curioso constatar como a psicanalise se obriga “a reconhecer o sentido daquilo que a letra, no entanto, diz ao pé da letra, [...] quando todas as suas interpretações se resumem ao gozo” (Lacan, 1971/2009, pp. 109-110).

A dimensão litoral da letra não impede que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem, onde ela tem instância. É necessário, então, saber como o inconsciente comanda a função da letra introduzida como lituraterra. Enquanto instrumento apropriado à inscrição de um discurso que não fosse do semblante, a letra não é imprópria para servir àquilo que foi apontado em A instância da Letra, como podendo designar a substituição significante na metáfora ou o deslocamento significante na metonímia (Lacan, 1971/2009). Ela “simboliza facilmente, portanto, todos esses efeitos de significante, mas isso de modo algum impõe que ela, a letra, seja primária nesses mesmos efeitos para os quais me serve de instrumento”, diz Lacan (1971/2009, p. 110). Para Rego (2005), Lacan não se refere aqui a uma estruturação temporal – primária ou secundária – da letra, mas sim, topológica, onde algo na linguagem convoca o literal para o litoral. Lacan (1971/2009) pondera que,

Nada do que escrevi, com a ajuda de letras, sobre as formações do inconsciente, para resgatá-las daquilo com que Freud as enuncia mais simples-mente, como fatos de linguagem, nada permite confundir, como se tem feito, a letra com o significante. O que escrevi com a ajuda de letras sobre as formações do inconsciente não autoriza a fazer da letra um significante, e a lhe atribuir, ainda por cima, uma primazia em relação ao significante (p. 110).

Letra e significante: as “nuvens” em Lituraterra

Lacan se refere a uma rota de retorno de uma viagem ao Japão, em que, da janela do avião, viu por entre as nuvens, a planície siberiana. Referência a qual ele só foi possível se ater, devido ao contato que tivera com a escrita japonesa, na qual experimentara essa dimensão de litoralidade da letra (Rego, 2005):

E foi assim que me apareceu, irresistivelmente, numa circunstância a ser guardada na memória, isto é, entre as nuvens, o escoamento das águas, único traço a aparecer, por operar ali ainda mais do que indicando o relevo nessa latitude, naquilo que é chamado de planície siberiana, uma planície realmente desolada, no sentido próprio, de qualquer vegetação, a não ser por reflexos, reflexos desse escoamento, que empurram para a sombra aquilo que não reluz (Lacan, 1971/2009, p. 113).

O escoamento visto por Lacan era comparado a um buquê, indo do conjunto, a partir de um centro, para um espalhamento, por meio do qual ele distingue o traço primário e a marca de seu apagamento, uma rasura, pela qual o sujeito é designado (Rego, 2005; Lacan, 1971/2005). Contudo, Lacan (1971/2009) situa a letra como “rasura de traço algum que seja anterior” (p. 113). Assim, distintamente de um traço primário e a rasura que o apaga, e de cuja conjunção se origina o sujeito, Lacan separa a rasura do traço e diz que a façanha de uma caligrafia consiste em produzir sozinha, definitivamente, uma rasura sem a anterioridade do traço. Litura pura, rasura pura, cuja função seria “reproduzir a metade com que o sujeito subsiste” (Lacan, 1971/2009, p. 113), sua metade outra, objeto perdido, lá onde o sujeito subsiste em busca dessa metade sem par.

A letra/rasura seria análoga a uma terra coberta de lituras, “sucessão de traços que se recobrem, cada um deles buscando em seu gesto, como tentativa de aproximação, a palavra apropriada para designar aquilo que se quer dizer” (Mandil, 2003, p. 50). Aproximação do que é irrepresentável e impossível de se escrever. Se Lacan faz referência à caligrafia, e nela introduz a dimensão de uma rasura sozinha, ele está pressupondo a inexistência de um referencial gramatical, do Outro que ordena a escrita e sua correção normativa? Pergunta que se formula a partir do momento em que Lacan (1971/2009) coloca em xeque a ordem do discurso e do semblante. Não é à toa que ele faz referência a Aristófanes e sua peça As nuvens, na qual o comediante grego rompe com os semblantes:

O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir por entre as nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com o significante, ou seja, o semblante por excelência, se é de sua ruptura que chove esse efeito em que se precipita o que era matéria em suspensão (pp. 113-114, grifo nosso).

Para Rubião (2007), a evocação das nuvens de Aristófanes, feita por Lacan, consiste em “demonstrar a conexão entre o significante e o semblante, cuja ruptura deixa entrever os efeitos de gozo” (p. 139). Lacan (1971/2003c) questiona que, se a ruptura da nuvem dos semblantes dissolve o que constituía forma, fenômeno, meteoro, e sobre o qual a ciência opera ao perpassar o aspecto, “não será também por dar adeus ao que dessa ruptura daria em gozo que o mundo, ou igualmente o imundo, tem ali pulsão para figurar a vida?” (p. 22). A comédia de Aristófanes faz alusão às nuvens como representantes das particularidades mutantes do pensamento e das palavras que servem para tudo (Rubião, 2007). De modo que, por sua textura vaporosa, volátil e instável, as nuvens aludem ao significante, o semblante por excelência. Como os significantes, as nuvens tocam no campo do parecer, criando o equívoco das pareidolias encontradas no intercâmbio de suas imagens. Mas, também, elas possuem um componente de violência, que gera raios, trovoadas estrondosas e tempestades, “elemento dramático que vincula dois campos heterogêneos: o do campo do pensamento (etéreo, volátil) e o do corpo na sua materialidade escatológica de resto e dejeto” (Rubião, 2007, p. 137).

Para Miller (2011), em Lituraterra, a doutrina do significante é apresentada como meteorologia, diferindo-se da mecânica estrutural da cadeia significante, pela qual Lacan se refere ao significante como elemento claro, distinto e fundamental da linguagem, e de que também dependem as fórmulas da metáfora e da metonímia. Com o termo nuvem, Lacan se distancia da referência à cadeia significante, uma vez que a nuvem consiste num elemento que não se distingue e de onde não se pode reconhecer a possibilidade de isolar elementos discretos. Desse modo, Lacan reintroduz o significante como

uma nuvem de onde começa a produzir-se um gotejamento. Esse gotejamento percebido por entre as nuvens, que oculta um espetáculo de algum modo anulado, impressiona como se chovessem rasuras, riscaduras. É como se se reencontrasse um dos primeiros esquemas de Saussure, que implica também, como antes da distinção dos elementos, um esquema nebuloso (Miller, 2011, p. 229).

O significante, que antes se encontrava na terra a mortificar o corpo, agora assume a forma de nuvem em suspensão no céu a precipitar. Por sua vez, na terra, não existe senão vegetação, reflexos e erosões, barrancos que sulcam o gozo e o significado, que chovem do significante. Se o significante localizado na nuvem ilustra supostamente o que o simbólico tem em comum com o semblante, no campo do real se abrem sulcos prontos para dar acolhida ao gozo (Lacan, 1971/2009). Lacan identifica a escritura e a letra com os sulcos cavados pela precipitação de gozo, no real, quando as nuvens dos semblantes se rompem. As nuvens carregadas de chuva, enquanto campo simbólico, são nuvens de significantes, semblantes por excelência, algo de nebuloso que não se captura, mas que comporta um elemento que escorre – o gozo. Elemento que, retornando à nuvem, faz parte de sua mesma natureza. Isso aponta para uma dimensão de gozo que a linguagem comporta, que não apenas sentido e interpretação significante. Aquilo que se rompe e se precipita sobre a terra faz sulcos, escrita, ravinas, imagem exemplar das ranhuras das letras que passam a veicular essa substância gozante. Ou seja, “o que se evoca de gozo ao se romper um semblante, é isso que no real se apresenta como ravinamento das águas” (Lacan, 1971/2003c, p. 22).

Uma constelação de insígnias: Lacan e o sujeito japonês

As particularidades da língua japonesa também serviram para Lacan demonstrar como o sujeito japonês é um sujeito dividido pela linguagem como em toda a parte, mas que “um de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com a fala” (Lacan, 1971/2003c, p. 24). Assim, tem-se, não um sujeito dividido entre o significante S1 articulado ao S2, mas “um sujeito que se satisfaz oscilando entre o escrito e o falado, entre a letra e o significante” (Vieira, 2005, p. 93), e daí o fato de o sujeito japonês escrever uma coisa e falar outra. A letra, apoio do significante, também é promovida como um referente que muda o estatuto do sujeito, de modo que o sujeito em sua identificação fundamental, não se apoia apenas no traço unário das identificações advindas do Outro, mas em um “céu constelado” (Lacan, 1971/2003c, p. 24). Ressaltando o fato de Lacan (1960/1998f) já ter se referido à “constelação dessas insígnias que constitui para o sujeito o Ideal do Eu” (p. 686), Miller (2012) destaca a menção do termo constelação e não cadeia, como também a troca do termo significante por insígnia. Lacan introduz uma oposição entre cadeia e constelação, distinguindo a identificação fundamentada nos traços agrupados na cadeia significante, onde S1 representa o sujeito para S2, e o sujeito surge dividido nesta representação ($).

Ao referir-se à constituição do Ideal do Eu como constelação de insígnias, Lacan aponta para uma redução do Outro como cadeia significante. O significante “vale como insígnia sempre e quando estiver solto, isto é, fora do sistema” (Miller, 2012, p. 149). Isso implica em que o sujeito se tome pelo Um, por uma substância, “campo em que ele se hipostasia no Ideal do Eu” (Lacan, 1960/1998f, p. 686). Com o termo tomista “hipostasia”, Lacan não está se referindo a uma representação significante entre S1 e S2, mas a uma posição de substância, de hipóstase do sujeito, na qual ele é Um sozinho (Miller, 2012). Como Vieira (2005) destaca que, ao apresentar o Ideal do Eu como uma constelação de insígnias,

Lacan deixa indicado que os traços que o sujeito toma emprestados ao Outro podem funcionar como significantes civilizadores que, além de representá-lo, fazem com que seja reconhecido pelo Outro, mas podem também se soltar do sistema significante, serem extraídos da cadeia significante, e se transformarem em insígnias que existem tout seul, absolutamente sós [...] Redutores do Outro, esses significantes soltos (desencadeados, portanto!) operam fora do sistema simbólico na sua face representativa e comunicativa, fundada na lógica simbólica. Neste sentido, eles operam como letra (pp. 98-99).

Solto do sistema, o estatuto do significante opera como letra, unidade não diferencial nem referente no campo da linguagem (Milner, 1996), mas significante sozinho, que, como tal, não significa nada. O S1 é Um-entre-outros, e não para com os outros no sentido de serem articulados (Lacan, 1972-1973/1985). A referência à constelação de insígnias abre margem para um giro teórico na teoria do inconsciente de Lacan, ao elevar o significante à categoria de letra que não faz cadeia (S1-S2), mas “S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame significante, um enxame que zumbe” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 196).

Para Lacan (1972-1973/1985), esse Um dos S1s do enxame, encarna em lalíngua (lalangue) algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, e mesmo todo o pensamento: “é o de que se trata no que chamo de significante-mestre. É o significante Um” (p. 196). Com lalíngua, Lacan inaugura um novo aparelho conceitual originário da lalação (do latim, lallare), do cantarolar para adormecer, do arrulho da criança que não fala, mas emite sons disjuntos de qualquer sentido e não separados de um estado de contentamento. Lalíngua evoca a língua emitida antes da linguagem estruturada sintaxicamente, onde a significação ainda não se encontra e não tem a ver com nenhum léxico. É a “rasura de traço algum que seja anterior” (Lacan, 1971/2009, p. 113), pois falta em seu campo uma ordem, um tratamento das palavras e do sentido que se convenciona a elas (Soler, 2012).

A função da fala e da linguagem enquanto mensagem endereçada ao Outro é, agora, secundária e derivada de lalíngua (Miller, 2000). Esta não possui o caráter dialógico da fala, servindo para coisas inteiramente diferentes da comunicação, posto que opere enquanto gozo: “Se a comunicação se aproxima do que se exerce efetivamente no gozo da lalíngua, é que ela implica a réplica, dito de outro modo, o diálogo. Mas lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? [...] nada é menos garantido que isso” (Lacan, 1972-1973/1985, pp. 188-189). Antes secundário à estrutura de linguagem, cuja função era metabolizá-lo em significantes, o gozo, com lalíngua, ganha sua primazia. E, assim, a linguagem enquanto aquilo “como o que o inconsciente é estruturado, diz Lacan, [...] de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernente à função da lalíngua” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 189).

A ruptura da linearidade, do movimento de associação e representação (S1 – S2) da cadeia significante terá como consequência, outro estatuto do sujeito. O sujeito constelar, situado na perspectiva do enxame introduz, com a noção de letra, a desconexão dos significantes (S1/ /S2) no inconsciente (Vieira, 2005). A letra se atrela à lalíngua, na medida em que subsiste lá onde o isso fala sozinho, sem diálogo, no inconsciente, que nesse caso consiste, diz Lacan (1972-1973/1985), em “que o ser, falando, goze e, acrescento, não queira saber de mais nada [...] não saber de coisa alguma” (p. 143).

O inconsciente, do sentido ao gozo: transferencial e real

Nesse sentido, teríamos dois modos de conceber o estatuto do inconsciente? Aquele da articulação em cadeia (S1 – S2) em que um significante representa o sujeito para outro significante; e o outro da existência dos Uns do enxame de significantes (S1, S1, S1), que se inscrevem como letra? Um inconsciente discursivo captado na linguagem falada e um inconsciente escritural (letrificado), que se sustenta “ali onde só há S1, letra que se repete” (Vieira, 2005, p. 164)? Considerando esta suposição, pretende-se, agora, discutir esses dois modos de concepção do inconsciente, situando as indagações verificadas no campo teórico sobre uma noção do inconsciente, calcado na estrutura da linguagem e a outra no gozo da letra que desarticula o sentido e se coloca como real. Como ressalta Lacan (1971/2009): “será preciso eu destacar uma oposição. A escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico” (p. 114). Tratam-se, assim, de duas noções do inconsciente, que autores psicanalistas contemporâneos têm discutido, a partir de interpretações dos textos de Lacan: o inconsciente transferencial e inconsciente real (Miller, 2009; Soler, 2012).

O termo “inconsciente real” não é uma expressão encontrada diretamente no texto de Lacan, mas deriva de uma formulação en passant, encontrada no Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11, escrito em 1976:

Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos [se tem a] certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo [...] Notemos que a psicanálise, desde que existe, mudou. Inventada por um solitário, teorizador incontestável do inconsciente (que só é o que se crê, digo: O inconsciente, seja, o real – caso se acredite em mim), ela é agora praticada aos pares. (Lacan, 1976/2003b, p. 567, grifo nosso).

Para Miller (2009), esse escrito “merece ser lido de perto” (p. 12), uma vez que Lacan o escreve após proferir O Seminário, livro 23, O Sinthoma (1975-1976). Chama atenção a disjunção entre o inconsciente e a interpretação, numa exclusão entre função da interpretação e função do inconsciente. O que se acredita saber da articulação do inconsciente é posto em vacilação, de modo que Lacan segue no sentido avesso de sua tese anterior do desejo inconsciente como sua interpretação, marcante, por exemplo, no Seminário 6, O Desejo e sua Interpretação (Miller, 2009). Se para Lacan, o desejo é algo a ser colocado no cerne da teoria e da experiência analítica, trata-se de fazer um enlaçamento entre o desejo e a interpretação. Tendo como energia psíquica a libido a ser investida nas marcas mnêmicas deixadas pela primeira experiência de satisfação, o desejo marca a dependência do sujeito dos significantes advindos do Outro, que o constituem na linguagem. E assim, a experiência analítica fundada na fala deve se esforçar por fazer emergir algo além da demanda do sujeito, sendo aí situado o desejo inconsciente como sua interpretação.

Contudo, no Prefácio, Lacan enuncia uma separação, uma desconexão entre o significante do lapso e o significante da interpretação (Miller, 2009). O lapso – que, enquanto formação do inconsciente, implica significação e se situa no domínio dos efeitos de sentido da interpretação significante – quando já se encontra desprovido de sentido, é aquilo que atesta estar no inconsciente, que já não suporta nenhum impacto de sentido (Lacan, 1976/2003b). Nessa frase, diz Miller (2009),

pode ficar imperceptível, por ser colocado na abertura – na abertura desse texto [por se tratar de um prefácio], mas no fechamento do Seminário sobre Joyce –, o fato de ela admitir, se a lermos tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante representativo. Isso ataca o que consideramos como o próprio princípio da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise tem seu ponto de partida no estabelecimento mínimo S1 – S2 da transferência (p. 13).

Se o inconsciente é mobilizado a partir da transferência que o causa, na medida em que atualiza sua realidade e articula a representação do sujeito entre S1 e S2, destaca-se a condição do sujeito enquanto suposto saber, uma vez que, sendo efeito de significantes, não pode ser substancializado, não sendo suposto senão “pelo significante que o representa para outro significante” (Lacan, 1967/2003a, p. 253). Na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan destaca a transferência no começo da psicanálise e o sujeito suposto saber que “é, para nós, o eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência” (Lacan, 1967/2003a, p. 253). O matema da transferência mostra como “o suposto desse sujeito coloca o saber em seu lugar de adjacência da suposição” (Lacan, 1967/2003a, p. 253):

Matema
da transferência
Figura 1
Matema da transferência


Fonte: Lacan, 1967/2003a, p. 253.

Na figura 1, sobre a barra, situa-se o significante S de um sujeito que implica, na forma de um endereçamento ao Outro, um significante qualquer (Sq), supondo outras coisas mais, em termos de sentido. A cadeia mínima S1 – S2 é, então, homóloga ao matema lacaniano, na medida em que “S1 é o significante da transferência em seu laço com S2, um significante qualquer” (Miller, 2009, p. 13). Sob a barra, o s representa, como resultado, o sujeito em posição de significado que implica, dentro dos parênteses, “o saber, supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente, significação esta que faz as vezes do referencial ainda latente na relação terceira que o liga ao par significante-significado” (Lacan, 1967/2003a, 254). Nesse sentido, Miller (2009) propõe que o inconsciente, tomado no status de posição suposta do sujeito, é um inconsciente transferencial, um inconsciente que pode ser interpretado, uma vez que, ao longo de uma análise, “é pela transferência que tornamos presente, mobilizamos e lemos o inconsciente” (p. 14).

Miller (2009) aponta certa “negação” desse inconsciente transferencial, quando, na frase inicial do Prefácio, Lacan diz que o espaço de um lapso já não tem nenhum efeito de interpretação ou sentido. Ou seja, tem-se a certeza de se estar no inconsciente, quando não se opera a conexão da transferência, quando não há conexão entre S1 e S2. Desse modo, Miller destaca um termo sartreano, empregado por Lacan – o em-si e o para-si –, detendo com interesse os pedaços da frase “se tem certeza”, “o que se sabe, consigo (on le sait, soi)”, a partir dos quais afirma não se tratar do inconsciente que Lacan articulou no registro da intersubjetividade ou no da inter-significância (S1–S2), mas de um se (on) que se sabe consigo, sozinho, cortado, de um inconsciente que não faz amizade, pois “não há amizade que esse inconsciente suporte” (Lacan, 1976/2003b, p. 267). Esta amizade, como “expressão genérica com a qual designamos o laço entre o Um e o Outro” – e através da qual a escansão do espaço de um lapso permite passar por um movimento amistoso de ajuda à associação livre – não existe enquanto suporte desse inconsciente (Miller, 2009, p. 16).

Ressalta-se, também, no Prefácio, a palavra histoeria, quando, ao se referir ao dispositivo do passe como o momento de verificação da historisterização da análise, Lacan (1976/2003b) diz que, depois de uma análise, “o analista só se historisteriza por si mesmo” (p. 568). Histoeria comporta, assim, uma associação entre as palavras histeria e história. A história requer a articulação do Um com o Outro, estabelecida no domínio da simbolização como “condição de existência para a realidade”, uma vez que “o que não está escrito no simbólico in-existe” (Miller, 2009, p. 34). Por sua vez, na histeria, o Um articulado ao saber advindo do campo do Outro (S1–S2) possibilita a simbolização de um sintoma no nível do corpo, transparecendo a incidência no inconsciente, do discurso e do desejo do Outro. A histoeria se en-contra, portanto, no âmbito do inconsciente transferencial, discurso do Outro articulado na cadeia significante (Miller, 2009).

Ao dizer que somente se está no inconsciente quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido ou interpretação, e que não existe amizade que esse inconsciente suporte, Lacan faz vacilar a articulação do inconsciente na palavra e na produção de sentido da história. Nesse caso, o inconsciente não é interpretativo, visto que S1 está sozinho e desarticulado da cadeia de significantes, não se encontrando, portanto, no domínio da histoeria. Assim, há no inconsciente, uma dimensão simbólica relacionada à história, e uma dimensão real, do isolamento de S1s da cadeia significante, que testemunham um rompimento da história do sujeito (Miller, 2009). Isso faz retornar a uma variante do “significante no real”, pelo qual Lacan, nos anos 1950, definiu inicialmente a alucinação na psicose.

Lacan (1954/1998b), a partir de Freud, discute o processo de simbolização primária na constituição subjetiva. Para que algo entre na história do sujeito, é preciso que um elemento – a castração – seja simbolizado primariamente (Bejahung). A alucinação, ao contrário, é o retorno de um conteúdo que escapou a essa simbolização primária, não sendo incorporado na história do sujeito no nível do simbólico. Assim, a alucinação se contrapõe a todo processo de estruturação do inconsciente constituído nos significantes articulados na história do sujeito (Lacan, 1953/1998a,). De modo que o psicótico, diz Lacan, é testemunha do inconsciente, que se mostra a céu aberto, ao passo que o neurótico dá um testemunho encoberto de sua existência, convocando à decifração, a uma restauração autêntica do sentido que ele testemunha e partilha no discurso dos outros (Lacan, 1955-56/2008).

A alucinação, portanto, coloca em cena esse elemento que não se submete às leis da cadeia significante, restando errático, do lado de fora da simbolização (Lacan, 1954/1998b). Como o termo Verwerfung, Lacan define a noção operadora da psicose, distinguindo-a do mecanismo do recalque (Verdrängung) na neurose. A Verwerfung – foraclusão – tem o sentido de expulsão, supressão e rejeição de uma simbolização (Lacan, 1955-56/2008; Lacan, 1958/1998e). De modo que “tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real” (Lacan, 1955-56/2008, p. 21). Ou seja, aquilo que no processo de estruturação do sujeito não sofreu uma afirmação (Bejahung) primordial no conjunto de significantes, resta do lado de fora da simbolização, excluído da realidade psíquica. E não podendo retornar na história do sujeito, no domínio do inconsciente, do recalque e o retorno do recalcado, retorna no sem sentido do real, do qual a alucinação é testemunha. Assim, na psicose, não há uma assunção ao inconsciente estruturado como linguagem, pois este “permanece excluído para o sujeito, não assumido – mas, porque ele aparece no real” (Lacan, 1955-56/2008, p. 21). O inconsciente está presente na psicose, mas não funciona, pois porta um significante que se coloca exterior ao sujeito, uma vez que, lhe sendo dado primitivamente, não entrou no encadeamento simbólico de sua história, ficando solto no real, como um significante puro (Lacan, 1955-56/2008).

Joyce e suas epifanias

Em 1975 e 1976, Lacan profere o Seminário 23, dedicado a Joyce. Se, no Seminário sobre A Carta Roubada e em Lituraterra, Lacan faz referências aos trocadilhos (a letter, a litter) feitos no cenáculo do escritor (Lacan, 1955/1998c) e sobre o fato de que, ao fazer lixo da letra, Joyce vai direto ao melhor que se pode esperar de uma psicanálise em seu término (Lacan, 1971/2003c), essas referências não são sem consequências para a teoria da clínica do último período de seu ensino. Segundo Vieira (2005), não seria despropositado o encontro de Lacan com a língua japonesa, que o leva a afirmar que o sujeito japonês, além do traço unário, também se apoia num céu constelado para sua identificação. Assim, o sujeito das insígnias constelares lhe abre passagem para suas “últimas elaborações, nas quais a cadeia significante e o enxame de letras desembocam na escritura topo-lógica” (Vieira, 2005, p. 165).

Uma vez que o Prefácio foi redigido logo depois do Seminário 23, por que motivo ele “merece ser lido de perto” (Miller, 2009, p. 12)? Qual a relação entre o espaço de um lapso que já não comporta sentido ou interpretação e o teor do seminário sobre Joyce, tendo em vista que referências a esse escritor irlandês perpassam sutilmente alguns dos textos de Lacan? Quais as consequências disso para a interpretação analítica e para o estatuto da letra no inconsciente?

No Seminário 23, Lacan se serve da topologia do nó borromeano para traçar uma perspectiva notável no último tempo de seu ensino, comumente conhecido como a clínica do sinthoma ou a clínica borromeana – que pode ainda ser denominado, com Miller (2003), o Último Ensino de Lacan, ou ainda, o período da Desconstrução, se nos ativermos à proposta de Milner (1996).

Segundo Lacan (1975-1976/2007), a palavra sinthoma (de sinthome, no francês) remete à antiga forma de escrita francesa da palavra symptôme, de origem grega. O nó borromeano – originário do brasão da família dos Borromeos no Século XV e que serviu como recurso topológico aos desenvolvimentos da matemática de Guilbaud – enlaça três aros de cordas de barbante equivalentes. Sua característica é a de que o rompimento de um dos aros implica na liberação de todos os outros. Pode-se construir uma cadeia borromeana com mais de três nós, desde que se respeite tal característica (Kaufman, 1996). Lacan se utiliza de três cordas de barbante, nomeando cada uma delas, como Real, Simbólico e Imaginário (RSI), sendo a configuração do nó borromeano, a representação estável do enlaçamento desses três registros. Contudo, ele considera um erro pensar que o nó borromeano de três, seja uma norma em relação aos três registros como

três funções que só existem uma para outra em seu exercício no ser que, ao fazer nó, julga ser homem. A perversão [perversion] não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas sim, porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto [nó] que, nessa ocasião, é o sinthoma (Lacan, 1975-1976/2007, p. 20-21).

Assim, para Lacan (1975-1976/2007) é “preciso supor tetrádico o que faz o laço borromeano” (p. 21). A citada perversão tem o sentido de ser somente père version (em direção ao pai) do nó – homofonia na língua francesa com perversion. Desse modo, Lacan se refere à existência, não apenas do Nome-do-Pai, mas de uma pluralização de nomes-do-pai, dos quais cada sujeito se ser-ve para estabelecer o laço de RSI: “O pai é um sinthoma ou um sintoma, se quiserem” (p. 21). O Nome-do-Pai é, então, esse quarto nó capaz de enlaçar os três registros: O real denominado como ex-sistência, ou seja, o que está fora de toda e qualquer significação; o simbólico, que faz furo no real, insistindo em uma significação; e o imaginário, que fornece consistência à imagem corporal, conferindo uma identificação do sujeito com o corpo (Lacan, 1975-1976/2007, p. 49). Assim, o Nome-do-Pai equivale a um dos nomes do sinthoma: NP ≡ ∑ (figura 2).

Os três anéis R, S, I, ligados pelo sinthoma (∑)
Figura 2
Os três anéis R, S, I, ligados pelo sinthoma (∑)


Fonte: Lacan, 1975-1976, p. 15.

Lacan recorre à topologia dos nós para ler e formalizar o que se passa com Joyce. Sua arte que, como já dissera, vai de a letter para a litter, constituirá o paradigma do sinthoma, suplência da firmeza fálica. Para Lacan (1975-1976/2007), o sentido é algo situado no campo entre o imaginário e o simbólico, e o sinthoma, um artifício do qual se lança mão para reparar o erro da cadeia borromeana. Assim, na ocorrência de um erro no qual o simbólico venha a se soltar, o meio de reparação é o sinthoma, que “permite ao simbólico, ao imaginário e ao real continuarem juntos, ainda que, devido a dois erros, nenhum mais segure o outro” (p. 91).

Lacan (1975-1976/2007) relaciona o sinthoma de Joyce a uma carência radical da função paterna para esse escritor. Não se trata da carência de um pai real, mas de uma Verwerfung de fato, que testemunha a demissão do Nome-do-Pai. A solução apresentada nesse caso é o que Lacan chama de nome próprio. Ou seja, Joyce, ao fazer com sua escrita um nome próprio, opera uma compensação da carência do Nome-do-Pai:

Por que não conceber o caso de Joyce nos termos seguintes? Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo o mundo, do máximo de gente possível, em todo caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas, à Igreja diplomática? [...] Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha (Lacan, 1975-1976/2007, p. 86).

Assim, a arte da escritura de Joyce constitui o nome próprio de seu sinthoma. E, se é o Nome-do-Pai aquele que nomeia e permite sustentar a realidade psíquica, na falta dele é preciso inventar, como Joyce o fez, um nome próprio, uma invenção sinthomática, artifício singular “que dá à arte da qual se é capaz um valor notável” (Lacan, 19751976/2007, p. 59). Lacan, de um modo jocoso, comenta que:

como ele [Joyce] tinha o pau um pouco mole, se assim posso dizer, foi sua arte que supriu sua firmeza fálica. E é sempre assim. O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho de pau em questão, com a função do falo. E é nisso que sua arte é o verdadeiro fiador de seu falo (Lacan, 1975-1976/2007, p. 16).

Segundo Soler (1998), Lacan reconhece na escrita joyciana uma literatura que desordena o sentido, e que aponta para um paradoxo entre a arte da literatura, que pressupõe uma articulação entre letra e sentido, e a arte da “riscadura” (Soler, 1998, p. 93), que Joyce empreende no decurso de sua obra. Nos escritos de Joyce, o que se encontra é uma arte que deprecia o símbolo condensador de sentido. Há mais “riscadura” – coisa estranha, nas palavras de Lacan – do que escrita a se ler, mais lituraterra que literatura. Todavia, não se trata de uma escrita qualquer, mas de uma invenção, um work in progress com a letra, que vai se afastando e se desarticulando da língua inglesa – língua materna do escritor – indo na contramão da significação e da via do sentido, para desembocar no sem sentido dos significantes, numa tentativa sempre frustrada de tocar o impossível (Bulcão, 2008).

Se o equívoco constitui uma arma contra o sinthoma, sendo então “preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” (Lacan, 19751976/2007, p. 18), a interpretação analítica do sintoma pressupõe a existência de um significante recalcado, que, nesse equívoco da fala do sujeito o faz emergir. Diferentemente, Joyce se utiliza do equívoco para fazer existir (ex-sistir) o inconsciente fora do campo da interpretação e do significante articulado ao outro na cadeia simbólica. De modo que, ao subtrair a letra da cadeia de sentido, Joyce a desconecta do inconsciente, fixando-a pelo gozo (Soler, 1998).

A relação de Joyce com sua escrita aponta para a existência de uma aversão do escritor ao que é evidente, à metáfora produtora de efeitos de sentido (Soler, 1998). Isso pode ser constatado no que Joyce denomina como epifanias, fazendo referência à técnica de tomar uma manifestação, cena ou frase, isolando-as de qualquer contexto, de modo que se apresentam frequentemente em formas fragmentárias de diálogos, como significantes puros, isolados de toda significação, instantes descontínuos, resíduos de palavras, imagens, cenas e sonhos, ressonâncias e ecos (Millot, 1993). As epifanias de Joyce foram coletadas separadamente em cadernos, na forma de pequenos fragmentos de textos que ocorrem na terceira pessoa, isolados do contexto narrativo, em transmissão impessoal e estática, que permitirá seu enxerto posterior ao longo de sua obra (Mandil, 2003).

Se as epifanias ocupam na obra de Joyce um lugar singular, traço que testemunha uma experiência inefável ou espiritual inaugural, “sobre a qual fundou a certeza de sua vocação de escritor” (Millot, 1993, p. 144), elas são também um buraco negro no universo joyciano, pois marcam um não senso radical. O termo epifania (emprestado da liturgia católica), não intitula simplesmente os poemas em prosa dos escritos de Joyce, uma vez que não se tratam de poemas, mas ao modo de “aerólitos, pedras caídas de outro mundo”, constituem-se frases anódinas que “cativam muito mais por seu caráter enigmático que por seu valor poético” (Millot, 1993, p. 144). Representam, assim, “um fracasso cuja razão deve ser interrogada: se valem como traço de uma ocorrência espiritual, parecem representar mais seu resíduo, seu dejeto do que sua expressão” (Millot, 1993, p. 145), ou seja, sua liteiralixo.

Millot (1993) tece uma comparação entre a experiência espiritual dos místicos e as epifanias de Joyce. Para ela, o encontro com o real em si mesmo opaco e resistente ao sentido, que se impõe como incontestável e incontornável, e que chega ao sujeito como que vindo de fora, numa estranheza radical com tudo o que foi vivido antes, é algo em comum nos dois casos. Contudo, tal ocorrência exige ser simbolizada, historicizada, integrada no tecido dos dizeres, onde cada um tem seu lugar de sujeito. O místico é esse que se esforça por inscrever sua experiência em um discurso religioso, que seja susceptível de lhe fornecer sentido. Contudo, comenta Millot (1993),

a particularidade, sempre singular, do vivido não se esgota aí e requer ainda a invenção de um dizer novo, no seio mesmo do discurso onde ele aí se inscreve, a fim de transmitir essa singularidade que insiste. É assim que os místicos fazem obras de poeta: quando inventam as metáforas que produzirão, no lugar desse real, um sentido novo que o fará aceitável por aqueles que ainda permanecem fechados para essa ordem de experiência (p. 145).

Fazer obra de poeta não se refere, todavia, apenas ao fato de que místicos e poetas compartilhem desse trabalho metafórico de produzir sentidos. Mas, trata-se do fato de que o poeta também está implicado nessa tarefa de simbolização de um real irredutível. Assim, a “vocação” do poeta e do religioso se coaduna, no sentido de se originar de um encontro com um real “que faz apelo à simbolização, apelo recebido como que vindo do Outro, e experimentado como exigência, ou mesmo escolha” (Millot, 1993, p. 145). Por outro lado, se as epifanias joycianas referem-se a uma “técnica que vai do dois, o dois necessário na escrita mínima para definir um contexto – ou seja, S1-S2 – até o só um isolado [...], Joyce para construir suas epifanias rompe o contexto de sentido e extrai esse objeto, isolando-o como S1” (Soler, 1998, p. 97).

Assim, à diferença dos místicos que fazem obra de poeta – como As Moradas de Santa Teresa de Ávila ou a Noite Escura de São João da Cruz –, Joyce, de maneira singular, não faz das epifanias nenhuma metáfora do encontro com o real que lhe ocorre. Trata-se, antes, de “resíduos metonímicos, balizas, marcos sem memória, restos obscuros de uma conflagração muda. Significações mortas, onde não circula nenhum sentido novo, estas cenas, fragmentos de diálogo, parecem os testemunhos cegos e inúteis do indizível” (Millot, 1993, p. 145). Em Joyce, o que há são letras, enxames, cujo caráter trivial confina com o não senso, pois o contexto do incidente relatado é suprimido. Um ponto essencial se refere ao fato de que as frases são interrompidas ou repetidas até fazer as palavras evacuarem seu sentido vazio e banal, impossibilitando um afivelamento da significação, visando, assim, um efeito de não senso. Esse caráter destacável de deslocamentos e recombinações das epifanias confere a elas um estatuto de letra que, “em Joyce, resulta de uma depuração máxima do fragmento epifânico” (Mandil, 2003, p. 127). Joyce parte das epifanias e chega à profusão de jogos de letras em Finegans Wake (1939), seu último romance (Mandil, 2003). Uma epifania, de 1901 ou 1902:



[Bray: na sala de visitas da casa em Martello Terrace]
Sr Vance – (vem com uma vara) ... Oh, a senhora sabe, ele terá que pedir perdão, senhora Joyce.
Sra Joyce – Oh, está bem ... Você está ouvindo isso, Jim?
Sr Vance – Ou então – se ele não pedir as águias virão e arrancarão seus olhos.
Sra Joyce – Oh, mas eu estou certa de que ele vai pedir perdão.
Joyce – (embaixo da mesa, para si mesmo)
Arrancar seus olhos,
Pedir perdão,
Pedir perdão,
Arrancar seus olhos.
Pedir perdão,
Arrancar seus olhos,
Arrancar seus olhos,
Pedir perdão

Fonte: (Joyce, 1993, p. 113-114).

Em um contexto do Retrato do Artista quando jovem (1916), sobre um incidente autobiográfico ocorrido entre os anos 1887 e 1891, podemos localizar o “enxerto” da epifania supracitada: um texto em primeira pessoa, em cuja cena, Stephen Dedalus – alter ego do escritor – diz que vai se casar com a pequena Eileen, quando os dois crescerem:

Disse e se escondeu debaixo da mesa. Sua mãe ficou zangada:



– Stephen! Peça já desculpas.
Dante ameaçou:
– Ahn! Se não pedir, as águias virão arrancarlhe os olhos.
Arranca os olhos desse freguês!
Então você diz isso outra vez?
Ah! Você vai dizer outra vez?
Arranca os olhos desse freguês!
Então você diz isso outra vez?
Arranca os olhos desse freguês!
Arranca os olhos desse freguês!
Ah! Ele não diz mais outra vez!

Fonte: (Joyce, 1916/1987, p. 22).

Se no caso de Joyce ocorre uma Verwerfung de fato, demissão radical do Nome-do-Pai, Lacan (1975-1976/2007) interroga em que se pode reconhecer a loucura nesse escritor. Afinal, Joyce seria louco? As epifanias joycianas, em termos lacanianos, tratam-se dessa desconexão da cadeia significante, que isola o significante como letra, desarticulado de sentido, ou um significante no real. Contudo, Joyce tem uma solução distinta de um desencadeamento psicótico clássico. Suas epifanias, seu trato com a letra, constituem uma experiência singular, sinthomática (Cordeiro & Guedes, 2014), que não chega a habitar o ser com o sentido metafórico dos poetas ou o delírio dos psicóticos clássicos. Trata-se de um fazer letra, um saber fazer com o real numa escrita que “se reduz ao real da letra como sentido esvaziado, esvaziamento este que prepara a cama, o caminho do gozo de Joyce” (Millot, 1993, p. 147), o caminho do gozo da letra.

Considerações finais

Buscou-se com o presente artigo, fazer um percurso das teorizações sobre a letra em Lacan, em que se destaca o período do inconsciente estruturado como uma linguagem, nos anos 1950, e o da letra desvencilhada de sentido, no campo do real, nos anos 1970. Nesse último, o inconsciente não se apresenta estruturado como uma linguagem, mas letrificado, em S1s desencadeados, constituindo-se constelação de insígnias, signos do gozo. Nesse sentido, podemos afirmar que o inconsciente é real? Essa pergunta foi propositiva nesse estudo, na medida em que se encontrou na literatura psicanalítica a menção de dois estatutos do inconsciente: o inconsciente transferencial, atravessado pelo sentido dos significantes, e o inconsciente real, da letra que fixa o gozo, em que S1 disjunto de S2 configura o sem sentido, enxame de significantes. Discussão, cujos ecos e desdobramentos nos interrogam, quando retomamos panoramicamente o que Lacan fala de Joyce no Seminário 23. Ao construir suas epifanias sob o non sense da letra, seria esse escritor o paradigma do inconsciente real? Se não há referência direta sobre o inconsciente real em Lacan, Miller (2009) traz essa noção num comentário sobre o Prefácio à edição inglesa do Seminário 11.

Todavia, se nos ativermos a esses dois estatutos do inconsciente, a nosso entender, isso não implicaria a existência de dois inconscientes contrapostos entre si. Entende-se, com o enunciado de Lacan e as construções de Miller (2009), aquilo que enuncia – “já” – os limites da interpretação na experiência analítica, que faz vacilar o sentido do sintoma, restando algo que escapa à interpretação e comporta um gozo não significantizável, fixado pela letra, significante no real. Isso permite compreender o enunciado de Lacan em Lituraterra, quando diz que Joyce com sua letra vai “direto ao melhor que se pode esperar de uma psicanálise em seu término” (Lacan, 1971/2003c, p. 15).

Se Miller chama a atenção para ler o Prefácio de perto, pelo fato de ter sido escrito ao fim do seminário sobre Joyce, qual a relação de Joyce com o inconsciente real, uma vez que Lacan diz que Joyce, por meio de seu sinthoma, é “desabonado do inconsciente” (Lacan, 1975/2007, p. 160)? Desabonado, isto é, não assinante, que não avaliza mais, cancela um pacto contratual e desacredita de alguma coisa. Isso implica dizer que Joyce estaria desligado do inconsciente? Se assim o fosse, e se seu desligamento fosse do inconsciente estruturado como uma linguagem, ao fazer lixo da letra, Joyce se ligaria ao inconsciente real?

Fica no horizonte desta investigação o fato de Lacan dizer que a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua (Lacan, 1972-1973/1985). Esta última, não é dada ao diálogo, visto que não é ordenada pelas leis da linguagem, mas pelo monólogo dos S1s solitários do enxame de significantes, sendo, por causa disso, concebida do ponto de vista do real do gozo que implica “ausência de lei, pois o real não tem ordem” (Lacan, 1975-1976/2007, p.133). Se a linguagem, ao modo da qual o inconsciente é estruturado, é uma elucubração de saber sobre o real da lalíngua, por que, então, denominar de inconsciente o “inconsciente real”? Surge-nos esta questão, uma vez que Lacan trata o real como distinto da verdade e do saber veiculados pela cadeia significante. Com isso, ele diferencia o campo do inconsciente do campo do real, ao afirmar que “a instância do saber renovada por Freud [...] sob a forma de inconsciente, não supõe obrigatoriamente de modo algum o real de que me sirvo” (Lacan, 1975-1976, p. 128). Real que se trata de uma invenção de Lacan (1975-1976/2007), “porque [diz ele] se impôs a mim” (p. 128) como reação à articulação freudiana do inconsciente, através do qual a descoberta de Freud faz furo na razão cartesiana centrada na consciência. Furo ao qual, por conseguinte, o ensino de Lacan e seu real vêm reagir como resposta sintomática. Interroga-se, portanto, o fato da discussão de Miller (2009) sobre o inconsciente real conjugar o inconsciente e o real em uma mesma expressão, noções que o próprio Lacan diferencia em seu seminário sobre o sinthoma. Questões que nos remetem a novos estudos e pesquisas.

O ponto em que aportamos não é, certamente, o ponto final da discussão sobre o inconsciente. Este artigo pretendeu mostrar que o sentido do significante e o gozo da letra são balizas que apontam giros importantes na abordagem lacaniana do inconsciente. Todavia, Lacan ainda fará novos giros. As interrogações levantadas nessas considerações finais remetem, portanto, a novas investigações a serem contempladas num prosseguimento futuro de pesquisa. Contudo, isso não seria possível sem ter traçado o percurso de Lacan, seguindo seus textos de perto e soletrando alguns pontos teóricos cruciais de seu ensino, ainda por muitos considerado de difícil compreensão, mas que, devido a seu próprio hermetismo, transmite fascínio e deslumbra aqueles que se deixam levar por sua letra. Nesse sentido, o presente estudo pode se situar entre dois pontos: como convite à leitura endereçado àqueles que pouco compreendem La-can, e para aqueles outros, já familiarizados com o “lacanês”, como convite à pesquisa e aos desdobramentos que o texto de Lacan sempre convoca.

Referências

Bulcão, M. S. M. (2008). Sintoma e sinthoma: duas vertentes na arte de James Joyce. Escola Letra Freudiana. Recuperado de http://escolaletrafreudiana.com.br/UserFiles/110/File/carteis2008/sc005.pdf

Cordeiro, É. F., & Guedes, P. F. M. (2014). O estatuto do inconsciente na clínica sinthomática das chamadas psicoses ordinárias. Revista Subjetividades, 14(2), 241-255, Fortaleza. Recuperado de http://www.unifor.br/images/pdfs/subjetividade/2014_2_artigo5.pdf

Couto, L. F. S. (2010). Quatro modalidades de pesquisa em psicanálise. In F. K. Neto & J. O. Moreira (Org.). Pesquisa em psicanálise: Transmissão na universidade (pp. 59-80). Barbacena: EdUEMG. Recuperado de http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20120420165701.pdf

Joyce, J. (1987). Retrato do artista quando jovem. (J. G. Vieira, trad.). Rio de Janeiro: Ediouro. (Texto originalmente publicado em 1916).

Joyce, J. (1993). Epifanias. Revista Letra Freudiana (B. S. Pinheiro, trad.). 12(13). Rio de Janeiro: Dumará.

Lacan, J. (1985). O seminário livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1972-1973).

Lacan, J. (1998a). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (pp. 238324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1953).

Lacan, J. (1998b). Resposta ao comentário de Jean Hippolite sobre a verneinung de Freud. In Escritos (pp. 383-401). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1954).

Lacan, J. (1998c). O seminário sobre a carta roubada. In Escritos (pp. 13-66). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1955).

Lacan, J. (1998d). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos (pp. 496-533). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1957).

Lacan, J. (1998e). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1958).

Lacan, J. (1998f). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade. In Escritos (pp. 653-691). Rio de Janeiro: Zahar. (Texto originalmente publicado em 1960).

Lacan, J. (2003a). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In Outros escritos (pp. 248-264). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1967).

Lacan, J. (2003b). Prefácio à edição inglesa do seminário 11. In Outros escritos (pp. 567-569). Rio de Janeiro: Zahar. (Texto originalmente publicado em 1976).

Lacan, J. (2003c). Lituraterra. In Outros escritos (pp. 15-25). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1971).

Lacan, J. (2007). O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1975-1976).

Lacan, J. (2008). O seminário livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1955-1956).

Lacan, J. (2009). O seminário livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1971).

Mandil, R. (2003). Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro: Contra Capa.

Miller, J-A. (2000). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, (26-27), 6-45. São Paulo: Eólia.

Miller, J-A. (2003). O último ensino de Lacan. Opção Lacaniana, (35), 6-24. São Paulo: Eólia.

Miller, J-A. (2009). Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Miller, J-A. (2011). De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós.

Miller, J-A. (2012). Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós.

Millot, C. (1993). Epifanias. Revista Letra Freudiana, 12(13). Rio de Janeiro: Dumará.

Milner, J-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

Rego, C. M. (2005). Traço, letra e escrita na/da psicanálise. (Tese de Doutorado, Departamento de Psicologia, PUC-Rio, Rio de Janeiro).

Rubião, L. L. (2007). Lacan leitor de comédias: contribuições a uma ética do bem-dizer. (Tese de Doutorado, Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte).

Soler, C. (1998). O filho necessário. In A psicanálise na civilização (pp. 93-106). Rio de Janeiro: Contra Capa.

Soler, C. (2012). Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Vieira, M. M. R. (2005). Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro. (Tese de Doutorado, Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte).

Notas

* Este artigo se trata originalmente de uma dissertação de mestrado intitulada “Jacques Lacan: O inconsciente, do sentido do significante ao gozo da letra – um estudo teórico”, defendida em 2015, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Estudos Psicanalíticos) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Márcia Maria Rosa Vieira Luchina.

Autor notes

** Correspondência. Correio eletrônico: evertonf.cordeiro84@gmail.com.