O mito e o digital na ciência da comunicação: Revisão de escopo*

El mito y lo digital en la ciencia de la comunicación: una revisión de alcance

Myths and Digital Landscape in Communication Science: A Scope Review

Florence Marie Dravet
Universidade Católica de Brasília, Brasil

O mito e o digital na ciência da comunicação: Revisão de escopo*

Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social "Disertaciones", vol. 15, núm. 1, 2022

Universidad del Rosario

Recepção: 09 Abril 2021

Aprovação: 27 Maio 2021

Publicação: 26 Outubro 2021

Informação adicional

Para citar este artigo: Dravet, F. M. (2022). O mito e o digital na ciência da comunicação: revisão de escopo. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 15(1), 1-23. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.10501

Resumo: As reflexões sobre mito, mitologia e pensamento mítico na cultura se situam na encruzilhada de várias disci­plinas como antropologia, história, filosofia e literatura. As ciências da comunicação podem se valer desses saberes para pensar as narrativas midiáticas, as transformações da comunicação digital, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e os novos formatos na produção, circulação e consumo de narrativas. O obje­tivo desta pesquisa é identificar como o mito é tratado na produção científica mais recente em comunicação e que relações se estabelecem entre saberes do mito e as características da comunicação digital. Procede-se a uma revisão de escopo, nas bases Scopus e Web of Science. Estabelece-se um mapa da distribuição geográfica das publicações, identificam-se as palavras-chave recorrentes, para então lançar um olhar analítico sobre o conteúdo dos artigos. Percebe-se que o mito ora é tratado como oposição à realidade, ora como representação simbólica. Por fim, sete artigos são analisados em profundidade por fazerem uma abordagem teoricamente consistente à noção de mito. Os resultados apontam para uma lacuna a ser preenchida sobre mito e cultura digital. Os estudos do imaginário podem ser melhor aplicados em abordagens científicas para se estudar o fenômeno midiático e suas transformações na era digital.

Palavras-chave: mito, epistemologia, revisão de escopo, mídias digitais.

Resumen: Las reflexiones sobre el mito, la mitología y el pensamiento mítico en la cultura se ubican en la encrucijada de diversas disciplinas como la antropología, la historia, la filosofía y la literatura. Las ciencias de la comunicación pueden utilizar este conocimiento para pensar en las narrativas mediáticas, las transformaciones de la comunica­ción digital, el desarrollo de las tecnologías de la comunicación y nuevos formatos en la producción, circulación y consumo de narrativas. El objetivo de esta investigación es identificar cómo se trata el mito en la producción científica, más reciente en comunicación, y qué relaciones se establecen entre el conocimiento del mito y las características de la comunicación digital. Se realiza una revisión de alcance, basada en Scopus y Web of Science. Se establece un mapa de la distribución geográfica de las publicaciones, se identifican las palabras clave recur­rentes y luego se identifica una mirada analítica al contenido de los artículos. Se advierte que el mito a veces se trata como una oposición a la realidad y a veces como una representación simbólica. Finalmente, se analizan en profundidad siete artículos para adoptar un enfoque teóricamente coherente de la noción de mito. Los resultados apuntan a un vacío por llenar sobre el mito y la cultura digital. Los estudios imaginarios se pueden aplicar mejor en enfoques científicos para estudiar el fenómeno de los medios y sus transformaciones en la era digital.

Palabras clave: mito, epistemología, revisión del alcance, medios digitales.

Abstract: Reflections on myths, mythology, and mythical thought in culture are at a crossroads of various disciplines, such as Anthropology, History, Philosophy, and Literature. The communication sciences can use this knowledge to ponder over media narratives, the transformations of digital communication, the development of communication technologies, and new forms of producing, disseminating, and consuming narratives. The objective of this research is to identify how myths are treated in the most recent scientific production on Communication and what relationships are established between the knowledge of myths and the characteristics of digital communication. A scoping review is performed based on Scopus and Web of Science. A map of the geographical distribution of the publications is established, recurring keywords are identified, and an analytical view of the articles’ content is identified. Myths are sometimes treated as the opposite of reality and sometimes as a symbolic representation. Finally, seven articles are analyzed in depth to adopt a theoretically coherent approach to the notion of myths. The results point to a gap to be filled regarding myths and digital culture. Imagination studies can be best applied in scientific approaches to study the phenomenon of media and its transformations in the digital age.

Keywords: Myth, epistemology, scoping review, digital media.

Introdução

Se do ponto de vista biológico, a base do conhecimento humano pode ser situada no cérebro, do ponto de vista cultural, é na estrutura mítica que o conhecimento se fundamenta. Trata-se de uma estrutura complexa que permeia a cultura e o conhecimento e cuja complexidade determina múltiplas possibilidades de abordagens. De modo que a estrutura do mito forma um intricado campo de saberes que vem se constituindo ao longo da história da humanidade.

Desde a segunda metade do século xx, o mito é compreendido por pensadores de diversos horizontes disciplinares como estrutura epistemológica (Caillois, 1972; Cassirer, 1979; Corbin, 1979; Durand, 2002; Eliade, 1972; Lévi-Strauss, 1958; Gadamer, 1997; Castoriadis, 1982). Tal percepção só foi possível a partir dos grandes pensamentos psicanalíticos elaborados, ainda no século xix, por Freud e Jung. Morin (2010) sistematiza esse pensamento sim­bólico-mítico, apresentando o mythos em relação ao logos, ambas noções gregas que se complementam para constituir a unidualidade fundamental da episteme. Segundo ele, os dois termos gregos, na origem, têm o mesmo significado (palavra, discurso) embora posteriormente tenham se distinguido (Vernant, 1990). Mythos assumiu o sentido de discurso de compreensão subjetiva por um sujeito que percebe o mundo a partir da sua interioridade, enquanto logos assumiu o sentido do discurso racional e objetivo de um sujeito pensando um mundo exterior. Logo, mythos e logos passaram a se opor. Um assumiu o sentido de verdade (logos), enquanto o outro seria associado à mentira, ao engano, ou ainda à lenda, fábula ou ficção (mythos). Na concepção de Morin, as duas noções opostas se completam uma vez que a subjetividade, no interior do pensamento mítico, controla a exterioridade do pensamento lógico que lhe é necessário para impor seu poder sobre as coisas.

Para além desse papel epistemológico fundante, mitos são também a base da narrativa, a começar pela genealogia própria das mitologias tradicionais (Vernant, 1990). A moderna narratologia, baseada nos estudos do funcionalismo russo (Propp, 2001) posteriormente desenvolvidos por Genette (1972) e Greimas (1970) e no estruturalismo (Lévi-Strauss, 1958; Barthes, 2001; Eco, 1984; Todorov, 1980), perpetua a ideia de que uma história se constrói de acordo com uma linha narrativa que, embora apresente certa flexibilidade, é recorrente. Se a narra­tologia já se desobrigou da necessidade de moldar sua metodologia à eficiência da fórmula matemática e das lógicas das ciências exatas, continua marcada, contudo, pela possibilidade de encontrar fórmulas que sustentem a atividade criadora de ficção, alimentadora da indústria midiática. Algumas fórmulas de sucesso muito utilizadas em roteiros cinematográficos e de séries (Vogler, 1998; Field, 2001) foram elaboradas após a obra O herói de mil faces, de Joseph Campbell (1997). Esse olhar para a narrativa baseada na lógica do mito teve desdobramentos quanto aos estudos do imaginário, especialmente nos encontros do Círculo de Eranos que durante setenta anos reuniu, na Suíça, mitólogos de várias partes do mundo, entre eles Mircea Eliade, Karl Gustav Jung, Gilbert Durand, Heinrich Zimmer, Karl Kerényi, Gershom Scholem e Henry Corbin.

Junto à linguística e os estudos semióticos, a filosofia é também responsável pela crítica do mito na produção narrativa midiática. Foi Benjamin (2013) que primeiro apontou para as relações entre mito, linguagem e meios técnicos de comunicação, que já se apresentavam como marca da modernidade. No livro póstumo Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), a linguagem em sua poeticidade é o próprio meio (médium) que transita entre saberes racionais e saberes intuitivos. A língua se comunica em si mesma e é, ela mesma, o meio de comunicação. Nesse sentido, o mito enquanto origem da poeticidade da linguagem é o médium autêntico, independente da mídia em seu sentido técnico.

Partindo de uma ideia semelhante segundo a qual o mito é uma fala e sua substância está na sua forma e não no objeto da mensagem, Roland Barthes, autor de Mitologias (2001), se propôs a descrever alguns mitos da época (anos 1950) e a definir de forma metódica o mito contemporâneo da burguesia. Permeada pelo fenômeno midiático, sua mitologia se constrói a partir de imagens, discursos publicitários e jornalísticos, panfletos, emissões radiofônicas, filmes e outras formas narrativas que compõem o espírito do tempo. Para Barthes e a semiologia, o mito nada revela, está sempre escancarando, na superfície formal da linguagem, a percepção das coisas de uma maneira nunca isenta de ideologia. Essa perspectiva de olhar para a cultura midiática, então chamada de cultura de massas, para identificar mitos por ela secretados, também foi adotada por Morin (1961) que se refere às estre­las do cinema como os novos deuses e deusas do Olimpo que animam narrativas heroicas, de caráter mais dramático do que trágico e constituem novas formas de vivenciar velhos mitos.

Os mitos também habitam as imagens, as imagens arquetípicas da psique (Jung, 2000) e, de forma residual, as desencantadas imagens técnicas da mídia (Kamper, 2016; Contrera, 2015). Se para Jung as imagens arquetípicas são formas simbólicas que revelam conteúdos psíquicos amorfos de forte poder sugestivo, as imagens técnicas, ao contrário, são caracterizadas pela fraca potência mítica (Wulf, 2016; Barros, 2009). Esse esvaziamento de conteúdo mítico faz dessas imagens formas estereotipadas que necessitam serem constantemente substituídas por outras, provocando, assim, uma verdadeira iconofagia midiática (Baitello Jr., 2000). Pensadores dessa corrente chegam a considerar que as imagens digitais, produzidas matematicamente a partir de simulações e não de impressões, não são imagens. São simulacros de imagens que não foram forjadas pelo poder imaginante do mito (Baudrillard, 1991; Wulf, 2016).

Em outra direção, a relação entre mito e imagem determina também parte significativa da produção teórica nos estudos de estética (Warburg, 2010; Didi-Huberman, 2018). A imagem fixa na fotografia ou na pintura carrega o rastro de um movimento, fruto da tensão da psique entre compreensão racional da realidade e seus modos de represen­tação de um lado e pulsões passionais na origem de todo mito e de todas as formas de ritualização por outro. Nesse caso, o mito se revela na memória de uma vivência espiritual e corporal que transparece nos gestos e nas imagens.

Vemos que o mito é, portanto, concebido como o potencializador da imaginação, a fonte do imaginário e das imagens que a linguagem, em todas as suas formas, mas com mais potência na poesia, é capaz de captar e expressar (Bachelard, 1998, 2006). O poder simbólico da linguagem, presente na narrativa e nas imagens por ela produzidas na mente, alimenta a cadeia de relações entre o valor arquetípico do mito e as variações mitológicas de cada cultura (Durand, 2002), os imaginários sociais (Castoriadis, 1982), as coordenações funcionais que criam a ordem social (Cassirer, 1979), as estruturas sociais baseadas em narrativas recorrentes (Lévi-Strauss, 1958), o cimento social necessário ao saber-viver pós-moderno (Maffesoli, 1996).

Por fim, o valor plurívoco da palavra mito deve ser salientado uma vez que as teorizações expostas até aqui, predominantemente oriundas das ciências humanas e sociais, não garantem um uso uniforme do termo por toda a comunidade científica. Nesse sentido, é importante indagar as formas como se estabelecem as relações entre os saberes do mito e a cultura digital na produção científica. Como as diferentes abordagens ao mito são tratadas na produção científica recente em Comunicação, para além das reflexões fundamentais ora apresentadas? Como se relacionam com os objetos da cultura digital? Antes disso, em que perspectiva os termos mito e mitologia são empregados na literatura científica recente a respeito da produção narrativa em meio digital? Essas perguntas são necessárias para identificar a eventual potencialidade do campo.

Metodologia

Para alcançar o objetivo desta pesquisa, foi feita uma revisão de escopo, procedimento metodológico que permite identificar a literatura sobre um tema de pesquisa, esclarecer conceitos e definir lacunas no conhecimento (Peters et al., 2020). Diferente de uma revisão sistemática de literatura (Denyer & Tranfield, 2009), as revisões de escopo não visam a produzir um resultado criticamente avaliado e sintetizado para uma pergunta específica, elas visam a fornecer uma visão geral ou mapa das evidências (Munn et al., 2018; Ferraz et al., 2019; Macvean et al., 2017). Suas estratégias permitem traçar o perfil da extensão, do alcance e da natureza da atividade de pesquisa para um determinado tema, oferecendo bases para futuras análises e pesquisas (MacGregor et al., 2020).

As revisões de escopo, embora bastante utilizadas na área da saúde, não são frequentes em pesquisas na área de comunicação, porém, apresentam-se vantajosas quando a temática a ser explorada ainda está em cons­trução teórica, apresenta várias abordagens e necessita de uma visão geral atualizada e estruturada, de maneira a avançar. O risco apresentado pelas revisões de escopo em ciências sociais é que, na falta de rigor metodológico, o viés do pesquisador pode determinar resultados parciais, enviesados ou pouco representativos. Por isso, esse tipo de estudo deve apresentar métodos com critérios precisos e sistematizados de busca, apreciação crítica e síntese dos dados encontrados.

O recorte para o entrecruzamento entre mito e comunicação digital se justifica pelo fato dos meios de comu­nicação digitais serem, hoje, os meios nos quais são produzidas, circulam e são recebidas as narrativas em seus novos formatos, caracterizados pelas performances audiovisuais em multiplataforma, de natureza transmidiática e de estruturas complexas, mas também pelas construções narrativas que se desenvolvem nas redes sociais. Na comunicação em rede que caracteriza a cultura digital e no uso que dela fazem os diversos movimentos sociais, políticos e culturais, surgem mitologias de presente e futuro, juntamente com a expressão das tendências evolutivas que irrompem na sociedade. É nos conteúdos da comunicação digital, em sua vocação à inovação, que aparecem hoje as novas formas que expressam as principais tendências a germinarem no panorama social.

Nesse sentido, é fato que redes e movimentos sociais, culturais e políticos transmitem mitologias por meio de uma linguagem própria como a dos memes, notícias falsas, séries digitais distópicas, discursos publicitários, ações de captação de votos e de influência de moda. Ou seja, a comunicação digital, em seu aspecto de inovação, cria constantemente formas simbólicas, que querem ser a narração de um novo significado da vida humana, daquilo que nos ameaça, e daquilo que pode ou deveria acontecer. Observar e analisar a relação entre o poder narrativo do mito e as mitologias que dele advêm, a partir da teorização do mito em suas várias vertentes (antropológica, narratológica, psicológica, filosófica, estética, etc.) parece uma forma eficiente de compreender o mal-estar e os anseios da civilização contemporânea, com a finalidade última de lidarmos melhor com elas, uma vez que as relações sociais são coletivamente mediadas por tecnologias digitais.

A opção pelas bases Web of Science e Scopus, longe de pretender a algum critério de facilidade, corresponde a um recorte científico em uma época em que todas as ciências (humanas, sociais, da saúde, exatas e não exatas) estão submetidas a critérios de fator de impacto, medidos por citações; critérios de uma pretendida cientificidade fortemente marcada por um paradigma positivista sobre a imediata transformação social que tais pesquisas supõem garantir. Nesse contexto, como as pesquisas científicas lidam com a realidade ambígua do mito? O que resta de sua realidade quando submetido ao crivo rigoroso das metodologias científicas?

Para esta revisão de escopo, um protocolo em quatro etapas é empregado: (1) Critérios de busca e seleção dos textos; (2) Perguntas de pesquisa a serem respondidas; (3) Mapeamento com dados objetivos; (4) Análise por tipo de abordagem e discussão.

Critérios de busca e seleção dos textos

Foi feito um primeiro levantamento quantitativo nas bases Scopus e Web of Science, entre artigos de acesso aberto e fechado, no período entre 2016 e 2020. A escolha pelas duas bases de dados foi determinada pelo interesse em alcançar pesquisas de reconhecido valor internacional e cujo critério de indexação principal é o fator de impacto. Ou seja, trata-se de bases que, a princípio, garantem um impacto sobre a ciência que deve implicar em um impacto sobre a sociedade. Nisso, Scopus e Web of Science são diferentes de outras bases mais frequentes na área de comu­nicação, tais como Scielo, Latindex, Redalyc ou Ebsco que abrigam periódicos cujo critério de seleção não repousa sobre o fator de impacto. O período de cinco anos foi determinado pelo interesse em lançar um olhar atualizado para a cultura digital.

Foram usados dois tipos de descritores cruzados: de um lado as palavras “mito”, “mitologia” e “pensamento mítico” que correspondem ao foco temático principal da pesquisa; do outro lado as expressões “cultura digital”, “narrativa digital”, “redes sociais”, “mídias sociais”, “imersão”, “realidade virtual”, “realidade aumentada” que, juntas, constituem o segundo foco temático da pesquisa.

Critérios de inclusão:

Critérios de exclusão:

Perguntas de pesquisa

Com o objetivo de identificar o estado da pesquisa envolvendo os dois focos temáticos estabelecidos, foi formulada uma pergunta principal desdobrada em várias perguntas secundárias, algumas de natureza objetiva e outras de natureza teórica:

Pergunta principal de pesquisa: que abordagens ao mito têm sido aplicadas às pesquisas em meio de comu­nicação digital?

Perguntas de natureza objetiva:

Perguntas de natureza teórica:

Mapeamento com dados objetivos

O mapeamento permite ter uma visão global da temática em foco e se enquadra nas pesquisas de natureza exploratória (Kitchenham et al., 2016). Embora possa constituir a finalidade da pesquisa em si (Teza et al., 2016; Montero-Díaz et al., 2018), aqui ele é parte de uma metodologia mais ampla e crítica. Foi feito a partir das perguntas objetivas acima relacionadas, utilizando-se os dados disponíveis nas bases.

Análise por tipo de abordagem

Para a última fase do protocolo da revisão de escopo, o universo de textos obtidos (45) permite que a análise dos resultados seja feita a partir dos resumos disponíveis e, caso se revele necessário, dos textos completos. O objetivo dessa fase é de identificar as diferentes abordagens ao mito feitas nessas pesquisas, se alguma abordagem predomina sobre as demais ou se apresenta de forma minoritária e que tipo de relação se estabelece entre mito e cultura digital. Nesta fase, as referências bibliográficas, metodologias, perspectivas conceituais, teorias e os próprios objetos de aplicação das análises servem de base.

Resultados

Após aplicação dos critérios de inclusão e exclusão acima mencionados e antes de fazer o filtro por área de conheci­mento, foi levantado um total de 227 artigos científicos em todas as áreas. Os critérios de inclusão e exclusão por área permitiram chegar a 45 artigos publicados em comunicação.

Mapeamento

Qual a quantidade de pesquisas em comunicação com relação às demais áreas que tratam do tema?

Tabela 1.
Distribuição das pesquisas por área de conhecimento do(s) autor(es)
Distribuição das pesquisas por área de conhecimento do(s) autor(es)


Fonte: elaboração própria.

Verifica-se na tabela 1 que a comunicação domina as publicações que lançam um olhar cruzado sobre o digital e a noção de mito, com 45 artigos científicos de um total de 227 levantados em todas as áreas. Atrás da área da Comu­nicação, destacam-se a grande área das Ciências da Saúde (28), Sociologia (14) que somada às Ciências Sociais (11) resulta em 25 artigos, Psicologia (20), Ciências da Computação (15) e Educação (13). Em seguida, pode-se citar Direito (11), Ciência e Tecnologia (11) e Artes (9). As demais áreas têm um total de produções igual ou inferior a 5.

Em que países as pesquisas em Comunicação que tratam do mito e do digital vêm sendo publicadas?

A figura 1 mostra o mapa dos países de vinculação dos periódicos das 45 pesquisas em Comunicação levantadas. Verifica-se que os países que mais tiveram pesquisas publicadas dentro do escopo foram: Inglaterra (18) e Estados Unidos (13). Os demais têm quantidades muito pequenas de artigos publicados sobre o tema: Espanha (3), Rússia (2), França (1), Itália (1), Portugal (1), Romênia (1), Turquia (1), Índia (1), China (1), Filipinas (1), Austrália (1). É importante lembrar aqui, que a pesquisa está circunscrita à duas bases de indexação de artigos científicos esta­dunidenses, abertas a periódicos internacionais (Web of Science e Scopus), o que pode determinar parcialmente os resultados. Percebe-se, por exemplo, a total ausência de artigos provenientes da América Latina, da África e do Oriente Médio.

Mapa da distribuição geográfica
Figura 1.
Mapa da distribuição geográfica


Fonte: elaboração própria.

Que palavras-chave definem o escopo das pesquisas levantadas e quais as mais recorrentes?

A figura 2 apresenta uma nuvem de palavras que mostra a grande diversidade de palavras-chave utilizadas e destaca as mais recorrentes. Com isso, percebe-se a vastidão do campo de realidade trabalhado nos estudos em Comunicação e sua difusão temática.

Palavras-chave e suas recorrências
Figura 2.
Palavras-chave e suas recorrências


Fonte: elaboração própria.

Constata-se que a expressão “mídia social” domina as pesquisas, assim como “saúde”, “digital”, “cultura”, “mito” e “informação”, seguidas de “comunicação” e “análise”.

Em um nível mais baixo de ocorrências, destacam-se ainda os termos “notícia”, “político”, “cultural”, “sexismo”, “rede”, “internet”, “China”, “online” e “publicidade”.

No estágio de ocorrência ainda inferior, chamam atenção palavras como “ódio”, “corona vírus”, “feminismo”, “desinformação”, “meio ambiente”, temas recorrentes nos artigos, ao lado de outros como “indústrias”, “consumi­dores”, “marketing”, “influenciadores”, “memes”, “criativo”, “falso”, “efeitos”, “redes”, “Twitter”, “massa”. No mesmo estágio de ocorrências, encontram-se ainda os termos “arquétipos”, “mitos” e “imaginação”, “global”, “virtual”, “intenção”, “exposição” e “comemoração”. As demais palavras ocupam a maior parte da difusão da nuvem e foram utilizadas apenas uma vez.

Análise por tipo de abordagem

De posse dos dados, foi feita uma leitura dos elementos de indexação dos 45 artigos obtidos – título, resumo e palavras-chave – a fim de identificar as diferentes abordagens ao mito feitas nas pesquisas em Comunicação. Em um primeiro momento, três tipos de abordagem foram identificados:

1) Mito como representação simbólica: nessa categoria foram reunidas as ocorrências da palavra mito (ou mitologia) no sentido de formas de representação simbólica, frutos de um processo de representação social (Moscovici, 2010), de processos de construção de narrativas midiáticas (Buonanno, 2012; Lemos et al., 2006) ou, ainda, de longos processos culturais arquetípicos genealógicos (Jung, 2000; Durand, 2002; Vernant, 1990).

2) Mito como oposição à realidade: nessa categoria foram reunidas as recorrências no uso das palavras mito e mitologia para designar, de maneira geral, algo que se opõe à noção de realidade, sem especificação de qual mito ou mitologia se refere, e sem indicação sobre as intricadas relações entre mito e realidade (Eliade, 1972).

3) Mito como parte da argumentação da pesquisa de diferentes abordagens teóricas: nessa categoria foram reunidos os textos que discutem a noção de mito como tema central da pesquisa, seja o mito como objeto, seja como perspectiva teórico-metodológica.

Apresenta-se, na tabela 2, o detalhamento dessa primeira identificação em três grandes tipos de abordagem. Para cada artigo, cita-se a ocorrência dos termos mito(s) ou mitologia(s) que permitiu fazer a separação.

Tabela 2.
Categorização inicial das abordagens ao mito
Categorização inicial das abordagens ao mito


Fonte: elaboração própria.

Verifica-se que a maioria dos artigos que trazem os termos mito(s) ou mitologia(s) o aborda no sentido de representação simbólica de alguma realidade: são 31 artigos nessa primeira categoria.

Ademais, nove artigos trazem os termos mito(s) ou mitologia(s) no sentido genérico de algo que se opõe à realidade, que precisa ser caçado (caçadores de mito/ reduzir a crença nos mitos) e que está associado às noções de desinformação, informação enganosa e teorias da conspiração, porém, sem especificar o objeto da ilusão, ideia falsa ou mitificação.

Sete artigos tematizam a noção de mito, colocando o fenômeno mítico como parte da sua argumentação. Refletem sobre a criação de narrativas e representações sociais associadas às notícias que circulam na internet, sobre o fenômeno da cultura pop ou midiática que tem seus mecanismos próprios de criação ou apropriação de mitos e, por fim, sobre a associação entre figuras midiáticas e grandes mitos ou arquétipos da cultura.

Por ora, será lançado um olhar mais detalhado sobre cada uma das três categorias acima apresentadas.

O mito como representação simbólica

Uma segunda leitura dos elementos indexadores dos 31 textos que constituem a categoria do “mito como representação simbólica” permite identificar que mito e mitologia são, por vezes, vistos como representações falsas originadas de notícias falsas – o que os aproxima da segunda grande categoria: “mito oposto à realidade”. Ainda assim, distinguem-se desta última pelo fato de atribuírem tal característica a algum objeto, uma representação simbólica. Outras vezes, são abordados como representações construídas culturalmente por uma estrutura social instituída. Nesse caso, tais representações são citadas por estarem sendo relativizadas ou repensadas à luz de novas concepções e estruturas de pensamento como o pós-feminismo, o pensamento decolonial, etc. Por fim, mitos e mitologias são tratados em alguns textos como narrativas ou conjunto de narrativas oriundas da tradição de uma nação ou etnia.

A tabela 3 apresenta os diferentes mitos criados e alimentados pela comunicação digital que aparecem nos artigos selecionados. Alguns têm mais de uma ocorrência, o que foi sinalizado. É o caso do “mito do estupro” (3), “mito do trabalho criativo” (2) e “mito da covid-19” (2). Além do “mito do estupro”, também aparecem os mitos “da mulher má motorista”, “da maternidade”, “da mãe perfeita”, “da beleza feminina” e “da mulher búfalo branco”, todos relativos às mulheres.

Os demais mitos se relacionam à política (“mito da exposição seletiva partidária”, “homogeneidade nacional chinesa”, “mitologias das revoluções russas”, “mito de Rodrigo Duterte”, “mito do lutador”), à comunicação digital (“mito da internet igualitária”, “mito da dissolução e insolvência do outro”, “mito da desintermediação”), ao consumo (“mito do autoempoderamento pelo consumo”), à saúde (“mito da covid-19”), à ciência (“mitos da neurociência), à arte (“mito do gênio louco”), à masculinidade (“mito da masculinidade”), ao cinema (“mitos de pureza” e “mito do quadro”) e à cultura pop (“mitologia da cultura pop”). Ainda aparecem mitos isolados relacionados a narrativas mitológicas e lendárias (“mito de narciso”, “mitos de marinheiros”).

Tabela 3.
Análise do mito como representação simbólica
Análise do mito como representação simbólica


Fonte: elaboração própria.

No plano das relações com o digital, as mídias sociais são apontadas, na maioria dos artigos, como meio de circulação de fakenews e informações enganosas que tendem a criar ideias falsas em torno de temáticas polêmicas no foco dos debates políticos e sociais da atualidade: questões femininas e raciais, posturas de personalidades políticas, saúde pública como o coronavírus.

Em outra perspectiva, ainda que mais raramente, as tecnologias imersivas e tecnologias digitais ou de produção de narrativas (como no caso da restauração de filmes) são apontadas como novos meios técnicos de aprimora­mento da expressão artística que equivalem ou superam velhas técnicas (“o quadro” no cinema).

Dois artigos indicam, ainda, as ferramentas tecnológicas digitais, incluindo-se dispositivos das próprias mídias sociais, como meios capazes de reduzir “as crenças em ideias falsas”, efeito das fakenews.

Mito abordado como oposição à realidade

Tabela 4.
Análise do mito como oposição à realidade
Análise do mito como oposição à realidade


Fonte: elaboração própria.

Os nove artigos que mencionam mitos ou mitologias no sentido de oposição à realidade, sem tratar do objeto de suas narrativas, e sem especificar as estruturas subjacentes à construção de suas representações, apontam as redes sociais como espaços de circulação e disseminação de notícias falsas geradoras de “mitos”. Cinco deles se centram na pandemia da covid-19, dois tratam de outras doenças (infeciosas como Ebola, sars, câncer de mama). Outros dois artigos tratam, respectivamente, da relação entre jogos digitais e violência e do boicote às marcas de produtos de consumo de fluxo rápido. Por fim, um deles trata do fenômeno abordando as redes sociais, a internet e os meios de comunicação de massa como transmissores de mitos (tabela 4).

Conclui-se que os artigos desta seção não têm o fenômeno mítico como tema central de sua reflexão, mas usam os termos mito ou mitologia em um sentido próximo ao senso comum, não conceitual nem teórico. O objeto efetivamente tratado pelo conjunto desses artigos é centrado em fenômenos de comunicação nas redes sociais (8) e nos jogos digitais (1).

Mito abordado como parte da argumentação da pesquisa de diferentesabordagens teóricas

Para a análise dessa categoria, busca-se identificar o tratamento teórico dado ao mito e à mitologia e o tipo de relação estabelecida entre tal abordagem e a cultura digital. A Tabela 5 identifica a ocorrência dos termos mito, mítico ou mitologia no artigo, indica o tipo de abordagem teórica para tratar de mito e a relação com o digital.

Tabela 5.
Mito abordado como parte da argumentação da pesquisa de diferentes abordagens teóricas
Mito abordado como parte da argumentação da pesquisa de diferentes abordagens teóricas


Fonte: elaboração própria.

A partir da leitura dos sete textos acima retratados, é possível identificar algumas referências bibliográficas fundamentais para os estudos do mito no século xxi. Trata-se das referências aos estudiosos ocidentais que, no século xx, ao invés de tratar o mito como o fizeram seus predecessores como fábula, invenção ou ficção, “o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma ‘história verdadeira’ e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (Eliade, 1972, p. 6). São eles os já citados Eliade, Lévi-Strauss, Barthes, Kerenyi, Jung, Durand, Maffesoli e Campbell.

Para além desses autores fundamentais, um dos textos analisados cita uma bibliografia relativa à relação entre mitos como expressões arquetípicas e narrativa jornalística (Lule, 2001; Eko, 2010; Gutsche & Salkin, 2013). Chama a atenção o fato das demais referências bibliográficas serem relativas aos fenômenos midiáticos digitais e não propriamente à noção de mito. Infere-se que o foco das análises nessas pesquisas recai mais sobre o fenômeno midiático do que sobre o mito.

Dois artigos se referem à mídia digital como lugar de circulação e renovação dos mitos da cultura pop. Dois tratam do fenômeno da criação e disseminação de notícias e memes com conteúdo político pelas redes sociais. Um centra seu olhar para a nova configuração midiática digital e suas consequências sobre a atividade jornalística em momentos de crises. Um mostra que as novas dinâmicas de emissão e circulação de informações nas mídias sociais, sobretudo com o fenômeno dos fandoms (Jenkins, 2013) ou neo-tribos (Maffesoli, 2019), determinam a forma como os mitos são preservados pelos fãs.

O sétimo texto diferencia-se dos demais por centrar seu foco em uma vivência mítica de ritualística indígena, propondo a ideia de imersão por meio da “Technepoiesis”, junção entre técnica e poesia, cujo poder imersivo é comparável ao das modernas tecnologias digitais. Para esse estudo, o autor se refere às noções de episteme, techne e poiesis em Aristóteles.

Nota-se que entre os textos que centram suas reflexões nas relações entre mito e cultura digital numa pers­pectiva teórica, apenas um não deu a primazia ao mito. No entanto, dos seis que fizeram alguma abordagem ao mito de forma teórica, quatro se fundamentaram em referências básicas dos estudos do imaginário, os outros dois ficando com uma concepção teoricamente imprecisa das relações entre mito e arquétipo e entre mito e mídia.

Discussões e conclusões

O objetivo deste artigo centrou-se na identificação das abordagens ao mito tratadas na produção científica mais recente em Comunicação e na identificação das formas como tais abordagens se relacionam com os objetos da cultura digital tratados pela área. Conforme já exposto na metodologia, não se tratava de constituir um corpus necessariamente amplo (o que corresponderia a uma revisão de literatura), mas um corpus que nos informasse sobre o escopo, inclusive sobre as lacunas, a falta ou mesmo a quase ausência de estudos, particularmente em se tratando de bases indexadoras com perspectivas científicas tradicionalmente voltadas às ciências exatas e ciências da saúde, cujo critério de seleção principal é o fator de impacto.

Em um primeiro momento identificou-se que a área da Comunicação concentra um maior número de publi­cações no escopo do que cada uma das demais áreas, aproximadamente um quinto da produção sobre o tema no total das áreas. É provável que esse resultado se deva à atenção vocacional dos pesquisadores em Comunica­ção quanto às transformações dos modos de produção, circulação e consumo de informações, hoje parcialmente determinados pelas tecnologias digitais. No entanto, as demais áreas juntas publicaram 178 artigos, o que também denota um forte interesse de todas as áreas pelo fenômeno das transformações na comunicação digital. O alto grau de ocorrência da palavra-chave “saúde” mostra uma possível vinculação desse interesse à área de saúde que vem sendo afetada pelos fenômenos de informação/desinformação nas redes sociais.

Na Comunicação, o foco maior da quase totalidade das pesquisas foi colocado nas temáticas das fakenews, da desinformação, dos memes que circulam nas mídias sociais e na busca de meios para minimizar seus efeitos. A atenção às mídias sociais é dominante sobretudo quando os termos “mito(s)” e “mitologia(s)” são empregados como sinônimo de mentira, falsidade ou engano. Esta constatação merece um esforço analítico para maior compreensão.

Conforme já citado em Eliade (1972), corroborado por Bachelard (2006) e Durand (2002), a imaginação foi tida como a “louca da casa” e o mito como “a infância da consciência” (Durand, 2002, p. 21) por toda a tradição filosófica ocidental desde os gregos, passando pelos medievais e se confirmando entre os racionalistas. É compreen­sível, portanto, que uma parte considerável dos pesquisadores se refira ao mito nesse sentido. Porém, quando o termo aparece nas palavras-chave, no resumo ou no título de uma publicação científica, supõe-se que ela não seja apenas um termo utilizado em sua acepção comum, mas que, enquanto termo referencial, seja suficientemente importante para merecer cuidado. Ora, a utilização do termo, muitas vezes, parece não merecer a atenção dos pesquisadores que o empregam, de fato, em seu senso comum, não científico.

Como já visto, foi apenas no século xx que um olhar atento à complexidade das culturas e da própria episteme passou a considerar o mito a partir de uma nova perspectiva, tentando compreendê-lo à maneira como os gregos antigos e as populações tradicionalmente estudadas pela etnologia o viviam. Esse esforço resultou em uma larga produção sobretudo durante a segunda metade do século xx tanto na perspectiva dos historiadores, como dos antropólogos, sociólogos, filósofos, linguistas e estudiosos da literatura que, hoje, podem ser considerados teóri­cos do imaginário, como mostrado na introdução deste artigo. Os pesquisadores em Comunicação que publicaram entre 2016 e 2020 em periódicos indexados nas duas bases estudadas (Scopus e Web of Science), não parecem dar importância a esse aparato teórico.

Encontrar o termo mito, em seu uso mais banal, quase coloquial de fato, em meio aos termos indexadores de um artigo científico aponta para uma realidade a ser levada em conta: é um indicador de como a ciência de alto fator de impacto lida com o mito, que espaço lhe concede, que sentido lhe atribui. Mas é também indicador da falta de interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade da ciência, em pleno século xxi.

Uma explicação possível reside na proposta de Eliade (1972), segundo a qual para o homem arcaico, o mito tinha a mais alta importância, diferentemente das ficções, assumia maior dimensão por referir-se às origens de todas as coisas, sendo constantemente recontado para explicar e reforçar tais origens. Ora, nas culturas modernas, a escrita teria fixado a narrativa mítica, privando-a das características dinâmicas dignas da recorrência oral, da polissemia do símbolo e da riqueza do imaginário. Tal constatação não parece justificar que o mito e as mitologias sejam ignorados enquanto sistemas simbólicos dotados de profundeza semântica e psíquica, atuante na cultura. Com Barros (2014) é possível afirmar que “não apenas manifestações do imaginário tradicionalmente identificadas, como as ficções, são carregadas de mitologias, mas também [...] as teorias sociais, econômicas, culturais etc. apresentam traços que as tornam mitológicas” (p. 59). Ou ainda, sobre a produção audiovisual contemporânea, por exemplo, por mais que se destaque a degradação do mito, e por mais que se critique a exploração mercadológica do filme pela indústria do cinema, é inegável a incessante irradiação do imaginário antropológico ancorado no mito (Fantinel, 2021).

Constata-se, por outro lado, que alguns pesquisadores em Comunicação, entre os que veem no mito uma forma de representação simbólica, recorreram em seus artigos a concepções enunciadas pelos mitólogos, como a de imaginário social (Castoriadis, Moscovici), a de arquétipo (Jung, Durand, Morin) e a de mitologia midiática (Barthes, Eco, Morin). Estas três noções são as mais recorrentes, mas aparecem também as ideias de estrutura narrativa (Campbell, 1997), de rito e de sagrado (Eliade, 1972). Todavia, poucas vezes as referências mencionadas são citadas nos textos, com exceção daquelas explícitas a Jung sobre a noção de arquétipo, a Lévi-Strauss ao se referir aos mitos como estruturas recorrentes na cultura, e a Barthes quanto à mitologia midiática.

Conclui-se que existe uma lacuna a ser preenchida nos estudos em Comunicação sobre o espaço ocupado e o papel do mito e da mitologia em relação à cultura digital e que os estudos do imaginário poderiam ser melhor aplicados para se estudar o fenômeno midiático e suas transformações. A pesquisa ainda permitiu perceber que as mídias sociais e os modos de comunicação digital na internet constituem um campo aberto para investigação.

Em torno do fenômeno das fakenews e da desinformação, para além de uma preocupação pragmática com a minimização de seus efeitos negativos, os estudos do mito podem fornecer instrumentos de compreensão do fenômeno e de elucidação do seu modus operandi no ambiente digital. As relações entre mito e verdade, mito e histó­ria, mito e política por exemplo, já foram amplamente estudadas pelos mitólogos, mas parecem ter sido esquecidas pelos pesquisadores em Comunicação, cujos textos foram trazidos a esta pesquisa.

Quanto à temática das narrativas ficcionais em série, dos jogos digitais e dos fenômenos de imersão media­dos por tecnologia, eles também poderiam ser melhor compreendidos à luz dos pensamentos já elaborados pelos teóricos da literatura, da arte e pelos mitólogos que estudaram as técnicas xamânicas e outras formas ritualís­ticas de expansão da consciência, por exemplo.

Alguns artigos fizeram um exercício inicial de releitura das mitologias propostas por Roland Barthes sobre a década de 1950 e seus mitos, quase todos derivados das relações entre o espírito do tempo e a mídia. Essa tarefa foi apenas iniciada e poderá render, assim como Morin propôs a seu tempo sobre o cinema e suas estrelas (Morin, 1961), novos estudos que permitam lançar um olhar renovado para a mitologia da mídia digital.

Note-se, ainda, que com o recorte metodológico que limitou a revisão à área de Comunicação, uma palavra descritora que tinha dado resultados no primeiro levantamento em todas as áreas acabou não aparecendo depois do recorte: o termo “pensamento mítico”. Isto parece ser um forte indicador de que o mito não é pensado pelas pes­quisas na área da Comunicação como episteme, base de um tipo de lógica existente na cultura. No entanto, vários são os teóricos que defendem essa ideia, não só nos estudos do imaginário, mas na própria Epistemologia (Bachelard, 2006; Feyerabend, 1975; Santos et al., 2016; Morin, 2010). Ora, se o fenômeno das falsas notícias e a noção de pós-ver­dade é tão citada nos estudos em Comunicação, talvez valesse uma consideração ao pensamento mítico. Retomar suas bases para refletir, por exemplo, sobre um tipo de pensamento onde a noção de verdade se dilui naquela de incerteza e onde a imaginação adquire um novo estatuto cultural? Ou como sugere Arnau (2020) um tempo em que o paradigma dominante da biologia e das neurociências não sabe o que fazer com a consciência, abriu uma imensa brecha entre os seres humanos e a totalidade, a alma e a natureza. Em um mundo dominado pela lógica algorítmica, o “fake” destruidor, estaria ocupando essa brecha e substituindo o mito e a imaginação criadora?

Por fim, propõe-se a continuação desta revisão de escopo, a partir dos textos levantados nas demais áreas do conhecimento, para se obter um olhar mais amplo sobre o que domínios tão diversos como as Ciências da Computação e da Informação, as Ciências da Saúde e as Artes, para citar apenas alguns, pesquisam e como pesquisam, com que bases teóricas e que tipo de abordagens, quando lançam seu olhar para o entrecruzamento entre os saberes transdisciplinares do mito e do digital. Por outro lado, seria desejável ainda ampliar o recorte desta pesquisa de modo a alcançar publicações indexadas em outros bancos como os latino-americanos (Latindex, Redalyc) ou ainda o indexador Ebsco que congrega mais estudos em Comunicação, para além dos dois estudados aqui. Tal foco certamente daria resultados diferentes que permitiriam uma abordagem comparativa entre o que se encontra nas bases fechadas das ciências de altos fatores de impacto mensurado e o que se encontra nas bases abertas, onde os critérios de seleção de textos não são voltados ao fator de impacto.

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Notas

* Este artigo é fruto de pesquisa de pós-doutoramento realizada no Centro de Investigação em Arte e Comunicação da Universidade do Algarve (ciac/ualg, Portugal), entre março e agosto de 2021, sob supervisão da profa. Dra. Mirian Tavares, com apoio da Universidade Católica de Brasília.