Chá, café, curare e clima tropical nos experimentos da fisiologia brasileira em fins do século XIX 1

Té, café, curare y clima tropical en los experimentos de la fisiología brasilera a finales del siglo XIX

Tea, Coffee, Curare, and Tropical Climate in the Experiments of the Brazilian Experimental Physiology in late Nineteenth-Century

Ana Carolina Vimieiro Gomes 1
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Chá, café, curare e clima tropical nos experimentos da fisiologia brasileira em fins do século XIX 1

Revista Ciencias de la Salud, vol. 13, 2015

Universidad del Rosario

Recepção: Dezembro 10, 2014

Aprovação: Março 08, 2015

Financiamento

Fonte: capes, fapemig e cnpq

Resumo: Objetivo: este trabalho trata do desenvolvimento da fisiologia experimental brasileira em fins do século XIX. Desenvolvimento: analisa alguns experimentos sobre plantas tóxicas, efeitos nutricionais do café, erva mate, carne seca e o consumo de alimentos no clima frio e quente, acontecidos no Laboratório de Fisiologia Experimental do Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado em 1880. Este laboratório era financiado pelo governo Imperial, a partir do Ministério da Agricultura e patrocinado pessoalmente por D. Pedro II. Foi criado e dirigido por um médico brasileiro João Baptista Lacerda e um fisiologista francês Louis Couty. Conclusões: Embora a organização do laboratório tenha seguido os modelos da fisiologia europeia, suas pesquisas privilegiavam temas nacionais. Os fisiologistas se interessavam não só por temas clássicos da fisiologia, mas pelos efeitos fisiológicos de plantas e produtos naturais que tinham papel importante na economia brasileira do período. Eles até mesmo criaram seus próprios aparatos experimentais como uma câmara fria para estudos climáticos. Para legitimar a fisiologia brasileira, no Brasil e no exterior, os pesquisadores aliavam interesses científicos e práticos nos seus estudos. Os usos sócio-econômicos dos estudos locais explicam o interesse da elite brasileira no laboratório e o apoio do Ministério da Agricultura.

Palavras-chave Fisiologia experimental, circulação de conhecimentos, História das Ciências no Brasil.

Resumen: Objetivo: este trabajo trata el desarrollo de la Fisiología experimental brasilera a finales del siglo XIX. Desarrollo: analiza algunos experimentos sobre plantas tóxicas, efectos nutricionales del café, hierba mate, carne seca y el consumo de alimentos en clima frío y caliente, realizados en el Laboratorio de Fisiología Experimental del Museo Nacional de Río de Janeiro, fundado en 1880. Este laboratorio era financiado por el gobierno Imperial, desde el Ministerio de Agricultura y patrocinado personalmente por D. Pedro II. Fue creado y dirigido por el médico brasilero João Baptista Lacerda y el fisiólogo francés Louis Couty. Conclusiones: a pesar de que la organización del laboratorio haya seguido modelos de la fisiología europea, sus investigaciones privilegian temas nacionales. Los fisiólogos se interesaban no solo por temas clásicos de la Fisiología, sino también por los efectos fisiológicos de plantas y productos naturales que cumplían un papel importante en la economía brasilera de aquel periodo. Ellos hasta consiguieron crear sus propios aparatos experimentales tales como una cámara fría para estudios climáticos. Para legitimar la fisiología brasilera, en Brasil e en el exterior, los investigadores evalúan intereses científicos y prácticos en sus estudios. Los usos socioeconómicos de los estudios locales explican el interés de la élite brasilera en el laboratorio y el apoyo del Ministerio de Agricultura.

Palabras clave: Fisiología experimental, circulación de conocimientos, História de las Ciencias en Brasil.

Abstract: Objective: This work deals with the development of the Brazilian experimental physiology in the late nineteenth-century. Development: It analyzes some experiments on toxic plants, on the nutritional effects of coffee, mate herb, dried meat and food consumption in hot and cold environments, held at the Laboratory of Experimental Physiology in the National Museum of Rio de Janeiro, created in 1880. This laboratory was financed by the Imperial Government, the Ministry of Agriculture, and personally supported by Emperor Pedro II. It was created and headed by the Brazilian Physician João Baptista Lacerda and the French physiologist Louis Couty. Conclusions: Although the Laboratory's organization was based on the European physiology, its researches privileged national themes. The physiologists were interested not only in the classical issues of physiology, but in plants and natural products that played a role in the Brazilian economy. They even created their own experimental devices, such as a cold chamber for climatic studies. In order to legitimate the Brazilian physiology, in Brazil and abroad, the researchers associated scientific and practical interests in their studies. The chance of social-economical use of their studies could explain the interests of the Brazilian elite and the support of the Ministry of Agriculture.

Keywords: Experimental physiology, Circulation of knowledge, History of science in Brazil.

Introdução

Este trabalho discute a inserção da fisiologia experimental no Brasil em fins do século XIX. O intuito é produzir uma história da fisiología que abranja o processo contingencial que fez essa disciplina se tornar relevante para a agenda científica brasileira naquele momento e não a busca das suas origens ou seus primórdios no Brasil. A abordagem aqui proposta engloba uma ideia que vai além de mera difusão de conhecimentos da Europa em direção ao Brasil. Parte-se de uma concepção que destaca a complexidade, a interatividade e a dinâmica sócio-cultural do processo de apropriação e prática da disciplina, consequentemente, pensando-a em termos de circulação de conhecimentos (1). Isso implica analisar os esforços e estratégias dos cientistas para validar os conhecimentos produzidos localmente no cenário científico internacional bem como legitimá-los nas instâncias extra-científicas da sociedade brasileira.

A emergência da fisiologia experimental no Brasil deu-se num contexto histórico em que o império atravessava um momento de modernização e transformações culturais, sociais e econômicas. Nesse período, a ciência e a técnica passaram a ser elementos fundamentais para o progresso da nação, conforme observado no investimento para o desenvolvimento das atividades científicas do país, com a criação, reforma e consolidação de várias instituições científicas e educacionais, financiadas pelo governo imperial. Como exemplo, podemos citar a separação da Escola Central em Escola Militar e Escola Politécnica, visando a formação técnica de militares e engenheiros e a criação da Escola de Minas de Ouro Preto, sob direção do cientista francês Gorceix, para formação, técnico-científica de engenheiros de minas e geólogos (2).

Como outra iniciativa de ampliação da ciência no Brasil pode-se destacar o Museu Nacional, que em 1876 foi completamente reformado, alcançando a sua suposta “idade de ouro”: momento em que as coleções de suas diversas seções formam ampliadas, cientistas estrangeiros foram contratados, seu periódico passou a ser publicado e difundido por todo o mundo, cursos de história natural foram ministrados e, além disso, os estudos a respeito da fisiologia experimental tiveram seu início com João Baptista Lacerda (3) —o que culminou na criação, oficialmente apoiada pelo governo imperial, de um Laboratório de Physiologia Experimental naquela instituição, em 1880. É um período que consistiu também em um conjunto de transformações nos modelos para a medicina brasileira, nas quais passaram a ter notoriedade saberes mais práticos e experimentais na educação médica (4).

Portanto, nosso argumento, em termos gerais, é que a fisiologia experimental portava naquele tempo um ideal de ciência que se queria para o país, capaz de traduzir —em um sentido latouriano— os interesses das elites agroexportadoras e simbolizar progresso e civilização para o Brasil que se modernizava (5). A análise parte de alguns experimentos realizados no Laboratório de Physiologia Experimental do Museu Nacional do Rio de Janeiro, nos primeiros anos da década de 1880, tendo predominantemente como fontes as práticas científicas e os conhecimentos produzidos pelos cientistas envolvidos na inserção da fisiologia experimental mediante aquele Laboratório. Serão destacadas as pesquisas experimentais lá realizadas sobre café, erva mate, curare e a diferença no consumo de alimentos em exposições ao clima frio e quente. Consideramos que a partir dessas temáticas os pesquisadores aliavam interesses científicos e práticos nos seus estudos, com o intuito de legitimar a fisiologia no Brasil e no exterior. O discurso utilitarista sobre a possibilidade de usos econômicos a partir dos resultados dos estudos experimentais é um dos principais fatores que, conforme procuraremos demonstrar, explicam o interesse da elite brasileira e o apoio das autoridades e instituições imperiais ao laboratório, como o Imperador e o Ministério da Agricultura.

A fisiologia no século XIX: ciência, progresso e civilização para o Brasil

É possível que tais verdades sejam novas, devem, porém abraçá-las todos os povos que desejam progredir: e esta necessidade é ainda mais palpitante no Brasil justamente porque o progresso, manifestando-se nele com rapidez maior em tudo, tornaria as diferenças atuais ainda mais sensíveis. Se o Brasil deseja atirar o seu desenvolvimento intelectual, é de seu imediato interesse trilhar desassombradamente a senda das investigações científicas (6, p. 219).

Para se compreender a história da fisiologia experimental no Brasil é preciso discutir algumas transformações, epistemológicas e práticas, ocorridas nessa disciplina no curso do século XIX. Destaca-se que na Europa, sobretudo na França, a fisiologia —que pode ser caracterizada como ciência que estuda as funções orgânicas dos seres vivos— passou por transformações que definiram seu estatuto de ciência autônoma, isto é, independente nos âmbitos intelectual, institucional e pedagógico. Como desdobramento desse movimento, ela tornou-se separada da anatomia e praticada no laboratório, o que significava para as “ciências biomédicas” naquele período: ser uma disciplina experimental e baseada nos princípios de ciências como a física, química e mecânica. Estas eram então as principais características que definiram seus contornos de ciência autônoma durante aquela época (7).

Essa redefinição nas concepções de cientificidade para a fisiologia foi acompanhada do desenvolvimento de novas práticas científicas. Nos laboratórios, a ela dedicados, os estudos passaram a focar nos fenômenos orgânicos, buscando os seus princípios e leis físico-químicos-mecânicos, cujos experimentos lançavam mão de experimentos de vivissecção em animais e utilizavam sofisticados instrumentos de medição e registro de dados. Isso porque, sobretudo a partir de meados daquele século, a sofisticação tecnológica começou a ser recurso importante para as análises dos fenômenos pelas ciências biológicas e médica, porque era considerado um modo de saber-fazer mais objetivo (8).

Em decorrência, temos naquele momento uma inflexão na concepção de corpo como objeto de estudo científico: da anatomia e anatomo-clínica (onde se abriam os corpos pós-morte com intuito de empreender a análise morfológica dos processos desencadeadores da doença e morte) em direção a fisiologia, numa investigação minuciosa dos corpos in vivo, por meio das práticas de vivissecção. Continuavam as análises das pequenas partes, de cada órgão, tecido; mas cada parte a partir de então se inseria num todo, agora em funcionamento e movimento. Os corpos passaram a ser perspectivados como capazes de auto-regulação de suas próprias funções em face aos estímulos exteriores, a partir da teoria do “milieu interieur” de Claude Bernard. Os organismos vivos tornaram-se então máquinas, por vezes com movimento imanente, cujo funcionamento era explicado conforme leis e mecanismos vitais, de maneira semelhante às explicações de fenômenos naturais das ciências físico-químicas. Nessa concepção era preciso reger, controlar e, mais do que isso, deixar falar, por meio das inscrições e curvas de gráficos produzidos, de modo objetivo, pelos instrumentos de registro das funções corporais, conforme pregado, sobretudo, pelo fisiologista francês, do Collége de France, Jules Etienne Marey (1830-1904).

Diante desses padrões epistemológicos e de cientificidade da fisiologia do século XIX, podemos argumentar: por que, no final daquele século, houve esforços deliberados para a inserção da fisiologia experimental no Brasil? Ou formulada de outra maneira: o que fazia da fisiologia experimental uma disciplina exemplar para o ideal de ciência que se queria para o Brasil? Uma das respostas a esse questionamento passa por alguns sentidos atribuídos à ciência no contexto brasileiro da segunda metade do século XIX.

Este é um período em que ocorreu uma renovação do pensamento brasileiro, emergindo na intelectualidade brasileira ideias progressistas vinculadas às aspirações de dar novo rumo ao país, isto é, melhorar a sua imagem e, desta maneira, elevá-lo ao status de um país civilizado (9, 10). Inclusas nesse ideário estavam a ciência e a técnica, que eram tidas como fatores transformadores fundamentais da sociedade, símbolos de progresso e civilização, em função da sua pretensa infalibilidade e da universalidade de seus métodos, conforme pregado pela filosofia positivista. Ora, o modelo de fisiologia que se configurou no curso do século XIX contemplava tal ideário. Como demonstrado acima, ela era uma ciência experimental, praticada no laboratório e ancorada nos princípios epistemológicos das ciências físico-químicas —a saber, na busca da determinação de fatos controlados, neutros, objetivos, quantitativos para posteriormente elaborar leis fixas e universais que explicariam os fenômenos da vida. Além disso, esse era exatamente um modelo de produção de conhecimento que então tentava se forjar na medicina brasileira de fins do século XIX, como evidenciado nas práticas científicas dos médicos em torno da dita “Escola Tropicalista Baiana”, desde meados dos oitocentos ou nas propostas de reformas do ensino médico brasileiro da década de 1880 (4, 10).

Para uma nação como o Brasil que queria se mostrar, desenvolvida intelectualmente, moderna e civilizada, investir em uma forma de institucionalização da ciência experimental, com a criação de laboratórios, poderia ser uma boa maneira de angariar prestígio científico para o país no cenário internacional. Todavia o laboratório, como “gabinete de máquinas bem dispostas”, não tinha valor em si. Era preciso, como proposto pelo fisiologista francês Louis Couty (6), melhorar no país os meios de estudos que já constavam na época e que fossem criados novos, pois os meios existentes, segundo ele, “não estão em relação com a grandeza do Brasil”. Esse aprimoramento nos meios de pesquisa, através da criação de verdadeiros centros de pesquisas providos dos melhores instrumentos de investigação e capaz de formar cientistas experimentadores, proporcionaria prestígio e autonomia científica para o Brasil perante as demais nações. Louis Couty considerava que:

[...] um povo, um grande povo que deseja manter-se e prosperar não deve aproveitar-se somente dos trabalhos científicos dos vizinhos [...] tanto mais descobertas e novos progressos uma nação dá as outras, quanto mais rica se torna, ao passo que se arruína a que vive sempre de empréstimo e da importação (6, p. 226).

Junto com um ideal de cientificidade e o modelo de institucionalização, podemos considerar que uma das principais características da fisiologia do século XIX era o fato dela ser representada como uma ciência prática, porque experimental e, dessa maneira, poder ser considerada como potencialmente útil para o progresso da nação. Para garantir legitimidade diante das demandas da agenda científica brasileira de fins do século XIX, procuramos demonstrar que, ao ser inserida no país, buscou-se ajustar a fisiologia experimental à realidade e aos interesses da elite agro-exportadora do Brasil naquele tempo. Ela deveria, portanto, ser uma ciência, antes, do Brasil. Para além de responder questões intrínsecas ao campo de conhecimento, para se afirmar e se fazer importante, era preciso traduzir os interesses dessa elite. Por esse motivo, era primordial demonstrar ter utilidade para responder, sobretudo, questões científicas exclusivas e típicas do país, de preferência relacionadas com seus problemas de ordem social, econômica ou comercial; mesmo que os enfoques de pesquisa, à primeira vista, não tivessem relação imediata com as práticas de diagnóstico e de terapêutica da medicina.

O Laboratório de Physiologia Experimental do Museu Nacional e a emergência da fisiologia no Brasil

Na segunda metade da década de 1870, a fisiologia experimental se tornou um modelo para o desenvolvimento das ciências biomédicas no Brasil. Várias pessoas envolvidas em debates pela reforma do ensino médico pediam por um aumento dos estudos experimentais e criação de laboratórios nas Faculdades de Medicina brasileiras. Num primeiro momento, a pesquisa fisiológica era realizada principalmente por médicos em suas próprias clínicas privadas e não em instituições públicas, como laboratório em escolas médicas (11, 12). O primeiro local de pesquisa fisiológica institucionalizada foi o Laboratório de Fisiologia Experimental do Museu Nacional do Rio de Janeiro, criado em 1880. O novo papel do Museu foi definido como um lugar de estudos em história natural, porém dos recursos naturais do Brasil, relacionados à agricultura, indústria e artes. Com essas atividades e a nova organização institucional, o Museu Nacional passou a ser considerado como importante lugar de desenvolvimento das ciências no Brasil. Suas ricas coleções tornaram possível uma produção científica prolífica e suas pesquisas científicas alcançaram visibilidade em vários fóruns científicos internacionais. O Museu também passou a ser reconhecido por seus múltiplos intercâmbios e trocas com cientistas estrangeiros e instituições ao redor do mundo. A abertura de um laboratório de fisiologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro foi parte dos esforços para elevar o status científico da instituição (3).

O Laboratório de Physiologia Experimen­tal do Museu Nacional —pioneiro no Brasil naquela época— foi oficialmente estabelecido como instituição provisória no início de 1880, com apoio deliberado do governo imperial, a partir de financiamento do Ministério da Agricultura e mecenato do Imperador Pedro II, autoridade que era um visitante assíduo dos experimentos do Laboratório. Este laboratório foi idealizado e dirigido por um fisiologista francês Louis Couty —vindo ao Brasil para ser professor da cadeira de Biologia Industrial na Escola Politécnica do Rio de Janeiro— e um médico brasileiro João Baptista Lacerda, funcionário do Museu na seção de Antropologia, Zoologia e Etnologia —o que já nos indicia uma mistura da cultura científica francesa e brasileira no Laboratório (13, 14).

Para fazer funcionar tal “empreendimento investigativo” —que foi planejado baseando-se naquelas instituições congêneres da França— observamos que foi necessário dotar o Laboratório das condições estruturais e de organização, por meio da apropriação de métodos, práticas e modelos teóricos para estar de acordo com a fisiologia experimental europeia (15). Com esse intuito, a partir de verba liberada pelo Ministério de 13.260 francos (o que equivalia na época aproximadamente mais de 1000 sacas de café ou cerca de 7 escravos), foram trazidos da França, encomendados por Couty junto aos melhores fornecedores de livros e equipamentos médicos, e construtores de instrumentos científicos da França, uma série de aparatos e instrumentos, livros e periódicos necessários para a instalação e funcionamento das pesquisas no Laboratório. Iniciativas visando a estruturação da instituição e a apropriação dos métodos que, portanto, já podemos considerar como primeiro movimento para aproximar os modos de fazer e de conhecer da fisiologia experimental brasileira àqueles dos modelos europeus.

Ao adentrarmos as práticas científicas do laboratório percebemos que os estudos tinham como principais procedimentos a vivissecção de animais e o manuseio de sofisticados instrumentos científicos para a realização de registros gráficos das experiências. Tais procedimentos portavam todo um apelo retórico e estético, fazendo dos experimentos um verdadeiro “teatro da prova”, cujas demonstrações dramatizadas faziam os fenômenos serem vistos “preto no branco”, tornados indiscutíveis, tudo com o intuito de chamar a atenção, legitimar e convencer os pares e as forças exteriores à dinâmica do laboratório sobre os produtos das experiências (16, 17). Isso pode ser observado no caso das investigações experimentais sobre as ações do veneno curare (substância encontrada nas flechas dos índios da Amazônia), que foi um tema central tratado pelos fisiologistas do Museu Nacional:

[...] sobre os cães curarizados bruscamente por injeções intravenosas sucessivas de soluções pouco ativas, pudemos ver se suceder, sempre na mesma ordem os diversos períodos da curarização confirmada [salivação abundante e prolongada, espasmos convulsivos, tremores nos membros, levando a problemas respiratórios]. Após a parada dos movimentos voluntários dos membros e depois a cessação da respiração, os nervos motores e também a medula permanecem muito excitáveis; e os membros, as pupilas etc., eram capazes de movimentos reflexos e asfíxicos. Além disso, novas injeções faziam desaparecer a excitabilidade reflexa dos músculos estriados, e quase ao mesmo tempo, os movimentos asfíxicos tornavam-se impossíveis; neste momento, a excitabilidade dos nervos motores é muito diminuída, e a contração produzida por cada excitação apresentou um atraso muito notável. Nestes períodos também, e algumas vezes em muitos momentos, o nervo agiu sobre o músculo por uma excitação única ou por excitações repetidas, mesmo em bastante tempo, uma a duas vezes por segundo, mas o músculo só se contrai com o fechamento e algumas vezes também com a abertura de uma corrente [elétrica] induzida, [...] (18, p. 583).

Simultâneas às observações das reações orgânicas dos animais in vivo, foram também empreendidas medidas de variáveis fisiológicas por meio do uso de instrumentos de registro e inscrição das funções corporais. Para ter os conhecimentos legitimados perante as comunidades científicas era preciso então estar de acordo às exigências metodológicas da prática da fisiologia experimental da época. Eram frequentes, nos relatórios de experimentos e nas publicações, relatos acerca de observações realizadas por meio do uso de aparatos de intervenção no organismo e de instrumentos tais como pode ser constatado nas frases: “cuja carótida estava ligada ao quimógrafo registrador”, “munido de um quimógrafo registrador”, “nervo ciático excitado pela corrente do aparelho Du Bois-Reymond”, etc. No caso da apresentação e divulgação dos resultados, vemos, principalmente nos artigos analíticos mais completos, a reprodução dos gráficos contendo as inscrições produzidas pelo quimógrafo durante as experiências em animais vivos, para fenômenos orgânicos como o pulso cardíaco e frequência respiratória, por exemplo. Nestes gráficos podia ser comparada a curva da função fisiológica normal com aquelas após os procedimentos experimentais, com injeção de uma substância, conforme podemos notar na figura 1, que traz a representação dos traçados das medidas do pulso cardíaco referente a um estudo com veneno curare em cães.

Curva do pulso cardíaco. Experiência feita em cão, com injeção de veneno
curare
Figura 1
Curva do pulso cardíaco. Experiência feita em cão, com injeção de veneno curare


Fuente: Couty et al (19)

Todavia, observa-se que esta apropriação dos modos de prática fisiológica não aconteceu de forma passiva. Isso é evidente nos estudos sobre o veneno curare, que era um tema clássico da fisiologia e substâncias tóxicas, assunto muito estudado por Claude Bernard (20). Louis Couty e João Baptista Lacerda (1880), para afirmarem a novidade de suas investigações no Museu Nacional, ressaltavam que nos seus estudos não se tratava de qualquer veneno curare, mistura do veneno das flechas do Amazonas — como já demonstrado por pesquisadores como o já referido Claude Bernard— mas de um novo curare. Veneno cuja ação curarizante (inibição do movimento ao exercer a sua ação específica sobre o nervo motor) foi por eles observada a partir de uma única planta, a strychnos triplinervia (19). Valia, portanto, deixar claro a particularidade desse vegetal strychnos, fornecido especialmente pelos botânicos do Museu Nacional, Glaziou e Ladislau Netto, que era “especial à província do Rio e a algumas zonas daquela de Minas, ele nunca foi visto nas províncias do norte do Brasil, e é muito diferente das espécies conhecidas, utilizadas pelos índios na fabricação de seu veneno” (19, p. 583). Dessa maneira concluíam Couty e Lacerda sobre a relevância de seu estudo sobre o “novo curare”:

Este novo curare, menos ativo, mas fácil de obter em grande quantidade, oferecerá talvez algumas vantagens aos fisiologistas, justamente porque ele permite produzir, em alguns instantes uma curarização que podemos deter em seus diversos períodos. [...] podemos, por diversos meios mais simples e mais diversos, extrair de uma única planta [...] uma substância que produz todos os problemas característicos da ação do curare dos índios (19, p. 584).

Claramente, uma das características mais notáveis das práticas científicas da fisiologia experimental brasileira era a pesquisa de temas nacionais: efeitos fisiológicos do veneno de serpentes e seus antídotos, recursos naturais como diversas plantas e substâncias venenosas e medicamentosas; além de investigações sobre a higiene, climatologia e patologias nacionais. Aliás, o experimento desenvolvido por João Baptista Lacerda no Laboratório do Museu que obteve maior repercussão e controvérsia, no cenário médico-científico nacional e internacional, foi sobre o uso experimental e clínico do permanganato de potássio como antídoto contra venenos de cobras de espécies brasileiras (14, 21). Os fisiologistas do Museu afirmavam, para cooptar a aliança do governo imperial e das elites agro-exportadoras, que os temas deveriam ter não só relevância científica, mas também utilidade para o país, porque se constituíram de questões de interesse econômico, comercial, para a agricultura e, algumas vezes, médico-terapêuticos. Portanto, a reapropriação da fisiologia experimental europeia se deu segundo os interesses da cultura científica brasileira, com uma forte tonalidade utilitarista.

Produtos nacionais e o clima tropical na fisiologia experimental brasileira

Vale ressaltar que os temas de pesquisa experimental privilegiados pelos cientistas do Laboratório não eram somente de interesse para a ciência e sociedade brasileira em decorrência do potencial de utilidade prática e simbólica para a nação. Muitos consistiram de clássicos da fisiologia experimental, como os estudos sobre a fisiologia do cérebro em macacos, por exemplo, e; outros, também tinham potencial para contemplar alguns interesses da ciência e sociedade europeia, conforme se constata nas investigações sobre a comparação entre os efeitos fisiológicos do clima frio versus clima quente. Aqui vale lembrarmos que alguns países da Europa, como a França, em fins do século XIX, estavam no auge da exploração neocolonialista em várias regiões tropicais, com condições de meio similares àquelas do Brasil. Todos esses temas representavam a inovação e originalidade dos estudos brasileiros, o que se constituiu de fator determinante para o retorno desses saberes em direção à Europa.

Todavia, com a criação do laboratório não era almejada só a promoção da ciência do Brasil na Europa, mas também a promoção de seus produtos e de seus recursos naturais diante dos mercados consumidores europeus. Produtos e recursos que a partir de então, passaram a ser cientificamente e experimentalmente analisados pela fisiologia. Conforme dizia Louis Couty sobre a relevância do laboratório de fisiologia no Brasil:

Um de seus resultados indiretos, o mais desejável, talvez será ajudar a melhor fazer conhecer o Brasil na Europa e a fazer apreciar o seu verdadeiro valor: e este objetivo, uma das melhores maneiras de o fazer atingir é certamente estabelecer pelos fatos as riquezas do Brasil, tão mal conhecidas sob todos os aspectos; é mostrar o valor e a importância de suas substâncias alimentares ou medicamentosas conhecidas e desconhecidas; é de estabelecer cientificamente os inconvenientes, mas também as vantagens de seu clima; é também pesquisar um remédio para os flagelos e para as doenças que podem depreciar suas riquezas (22, s. p.).

Essa retórica que enfatiza um valor extra-científico para a fisiologia foi fundamental na legitimação do Laboratório no Museu Nacional perante a comunidade científica brasileira e as elites agroexportadoras do Brasil. Este é o caso dos experimentos sobre mate, carne seca e café que foram feitos pelo fisiologista francês Louis Couty e pelo seu discípulo e preparador do Laboratório, Eduardo Guimarães, respectivamente.

Dada a sua participação numa cadeira de Biologia Industrial —que reunia conhecimentos sobre Agronomia, Zootecnia e Economia, para o entendimento do homem na sua relação com o solo e seus produtos animais e vegetais— Couty começou a se envolver com o estudo de algumas das culturas agrícolas emergentes no país naquele momento: o mate, o charque ou carne seca, o café; realizando visitas a diversas fazendas no Sul do país (23). Em relatório ao Ministério da Agricultura (24), ele afirmava que essas culturas necessitavam ter seus meios de plantação e preparação aprimoradas para sua introdução e expansão nos mercados nacional e internacional. Portanto, podemos afirmar que este trânsito pelas fazendas produtoras desses tipos de culturas agrícolas foi significativo para o delineamento dos temas privilegiados pela fisiologia experimental quando da implantação do Laboratório do Museu. Em uma carta ao ministro da agricultura, para auxiliar na promoção desses produtos no estrangeiro, Couty ressaltava, sobre o mate e a carne seca, a necessidade de experiências alimentares em pequena escala e, interessante observarmos, propunha fazê-las até mesmo no exército francês ou hospitais:

O comitê de subsistência do Exército Francês me autorizou a alimentar de carne seca durante alguns dias uma ou duas companhias de soldados; e, eu espero obter para o mate as mesmas facilidades. Podemos também organizar experiências do mate em alguns hospitais de convalescentes e de idosos, onde o café não é empregado por causa de seu preço elevado [...] (25, s. p.).

Como argumento para esses estudos, considerava-se que, antes de empreender a promoção e comércio de determinada cultura, era necessário desenvolver cientificamente meios e instrumentos de cultivo de acordo com as características agrícolas próprias do país e conhecer, por meio da experimentação, as suas propriedades alimentícias e seus efeitos sobre o organismo. Louis Couty realizou e publicou um primeiro trabalho sobre a ação fisiológica do mate, no qual são expostos alguns resultados preliminares relativos às suas propriedades nutritivas (26). Este trabalho foi apresentado por Alfred de Vulpian (mestre de Couty) na Academia de Ciência de Paris e também publicado no periódico daquela instituição (27). Essas experiências foram realizadas por ele no próprio laboratório de Vulpian na França, a partir de amostras de mate enviadas pelo então ministro da agricultura do Brasil João Lins Vieira Cansansão de Sinimbú. Em face dos resultados observados, Couty apontava as possíveis utilidades da planta para a medicina e higiene:

Em todo caso, permanece saber que o mate excita somente, ou ao menos primitivamente, o sistema simpático naqueles órgãos que são os mais independentes dos centros nervosos; e é esta ação tão especial sobre a maior parte dos órgãos intra-abdominais, além de seu valor fisiológico, que nos parece ter uma grande importância para os médicos clínicos e também para o higienista, sobretudo se, como podemos esperar, esta substância pouco custosa e muito ativa tornar-se de um uso mais geral como agente terapêutico e alimentar (26, p. 2).

Segundo Couty, em decorrência da apresentação desse trabalho sobre o mate na Academia de Paris, no ano seguinte, foi nomeada —por Vulpian e pelo General Morin (diretor do Conservatoire des Arts et Métiers)— uma comissão científica na França que seria encarregada de apreciar, melhor dizendo, chancelar em um relatório, os trabalhos realizados no Brasil sobre este assunto. Esta comissão acabou na verdade por ser formada pelos cientistas Vulpian, Edwards e Marey (22).

Outro tema de pesquisa fisiológica relacionado aos interesses econômicos, comerciais e de importância para a agricultura brasileira do período foi o café. O preparador do Laboratório de Physiologia Experimental, Eduardo Guimarães, tido como principal discípulo de Louis Couty, realizou vários experimentos em cães com o intuito de confirmar efeitos estimulantes e tonificantes do café sobre a nutrição e, dessa maneira, suas propriedades alimentícias e higiênicas de prevenção da fadiga (28). A intenção era abordar discussões até então controversas sobre o café tais como: “o café é um moderador da nutrição? É um excitante especial ou um dinamizante? É um verdadeiro alimento?” Questões a serem tratadas por meio do ponto de vista da fisiologia experimental e não mais a partir de controvérsias fundadas em empiria ou “teorias baseadas em observações incompletas” (28). Por meio da fisiologia, é que se buscaria “explicar esta função indireta, este aumento de esforço, esta poupança aparente de força, ou melhor, de fadiga, constatadas por todos os bebedores de café” (28, p. 259). Os vários experimentos procuraram medir e comparar a circulação, a respiração, o gás no sangue, a temperatura, o açúcar no sangue e urina, e a ingestão de alimentos etc. em cães normais e submetidos à injeção estomacal de café. Concluiu-se com a análise das medidas fisiológicas que por suas propriedades nutritivas, o café permitia “consumir e usar mais alimentos” e ao garantir uma reparação perfeita do organismo, o café facilitaria uma maior capacidade de trabalho, sendo indicado como produto a ser consumido e “aconselhado a todos aqueles cuja vida é ativa e útil” (28, p. 286).

Outra forma de dar notoriedade e legitimidade para a fisiologia brasileira foi demonstrar a originalidade e ineditismo decorrentes das especificidades das condições de pesquisa particulares do Brasil, que não se encontravam disponíveis na Europa. João Baptista Lacerda lançava mão desse tipo de retórica para enfatizar as especificidades dos estudos nacionais e criar expectativas sobre a sua originalidade em comparação àqueles estudos sobre o mesmo tema realizados na Europa, como podemos observar no artigo dos Arquivos do Museu Nacional acerca dos efeitos fisiológicos do veneno de uma espécie de sapo típica do Brasil em relação àqueles de uma espécie europeia. Tais comparações justificavam-se pois:

[...] não foi pequena a nossa surpresa quando vimos os resultados obtidos com o veneno da espécie brasileira divergirem em certos pontos essenciais dos resultados colhidos na Europa com o veneno das duas espécies já citadas. Escusado é dizer que foi justamente para tornar desde logo conhecidas essas diferenças essenciais, que nos impusemos o dever de dar á luz da publicidade este trabalho.

Cada vez fortalece mais no nosso espírito a convicção de que não se podem aplicar inteiramente aos produtos tóxicos da America as conclusões fisiológicas tiradas com relação aos produtos similares de outro continente (29, p. 33).

Conforme Louis Couty afirmava, todos os “fatos novos e interessantes” que em pouco tempo foi possível observar eram decorrentes, sobretudo, das “condições especiais do meio” do Brasil, além das próprias condições experimentais especialmente criadas. Os pesquisadores em fisiologia do Museu Nacional simplesmente utilizaram os materiais que tinham em mãos: elementos do curare, venenos de serpente, cérebros de macacos e o próprio tipo de clima que o permitiu observar os fatos tais como eles apresentavam-se (30).

Outra forma de garantir a originalidade dos estudos feitos no Brasil, contrastando as particularidades do meio europeu e nacional, esteve na invenção de outras práticas científicas, também originais, tal como o desenvolvimento de técnicas próprias de investigação mediante a criação de utensílios e instrumentos específicos para este fim. Couty, ainda em 1880, esboça em correspondência ao ministro da agricultura seu anseio de mandar construir, se os recursos do orçamento para o ano seguinte permitirem:

[...] uma câmara fria, com temperatura constante, onde os animais poderiam ser deixados dias e semanas. Eu já combinei vários modelos, sobre os quais, eu tomarei em Paris, antes de escolher, as opiniões competentes. Este aparelho será da maior utilidade para nossos estudos comparativos dos climas: mas ele pode ser muito custoso (31, s. p.).

Esse fato concretizou-se no ano seguinte, quando Louis Couty, na sua ida à França, elaborou em conjunto com o engenheiro Pommier e mandou construir tal câmara fria junto a um construtor de equipamentos de ventilação, Sr. Hamelincourt, com o custo de 1500 francos. A câmara denominada “modelo Pommier e Couty” foi, em princípio, engenhosamente preparada para manter a temperatura constante, com regulação da temperatura entre 0 a 8°C e aparelhada com renovador de ar no interior (32). Basicamente, a câmara fria tinha a dimensão de um metro de largura, por um metro e vinte centímetros de comprimento e um metro de altura e era envolvida por uma segunda cobertura, preenchida de gelo ou uma mistura refrigeradora. Para garantir a refrigeração e a circulação de ar dentro da câmara, essa segunda cobertura continha também tubos verticais, que no topo se comunicavam com o exterior e na base com o interior da câmara. Seu funcionamento resume-se da seguinte maneira: uma vez hermeticamente fechada, ela recebia por intermédio desses tubos envolvidos em gelo o ar exterior; uma chaminé na parte superior da câmara levava o ar viciado e aquecido pelo animal para o lado de fora. A temperatura no interior era regulada por meio de uma chama a gás regulável localizada na chaminé e a ventilação pela regulagem da entrada de ar nesse mesmo lugar (33).

Todo esse aparato foi desenvolvido com o intuito de empreender estudos sobre a fisiologia do clima, notadamente, sobre a influência do meio sobre o organismo e, especificamente, de maneira original, as respostas à exposição ao frio prolongado em comparação às condições naturais do clima quente brasileiro —cabe lembrar que o paradigma climático tinha uma presença muito marcante na ciência brasileira naquela época. Para vislumbrarmos a importância dessa estratégia de afirmação da originalidade dos estudos do laboratório do Rio de Janeiro, cabe-nos descrever as práticas realizadas a partir de tal aparato. Um desses estudos, apresentado pelo cientista d’Arsonval na Societé de Biologie e publicado nos anais da mesma (33), teve como objetivo analisar os efeitos da exposição ao frio sobre a alimentação. Para tanto, cães foram expostos ao frio (9 a 15°C), dentro da referida câmara durante vários dias, onde foram observadas em três sessões experimentais as funções da circulação, “calorificação”, isto é, temperatura do corpo, o peso e a quantidade de alimentos consumidos pelos animais. Naquela ocasião, concluiu-se preliminarmente que os animais provenientes de um clima mais quente —o estudo foi realizado em pleno verão brasileiro— quando submetidos ao frio prolongado aumentam o consumo de alimentos, principalmente azotados (nitrogenados). Entretanto, segundo os autores, novos experimentos, com novas medidas, em diferentes espécies animais, feitos numa câmara fria mais sofisticada, seriam necessários para melhor esclarecer as modificações nos mecanismos até então observadas.

Cabe ressaltar que essas investigações tiveram que ser interrompidas em função dos seus custos elevados (33) —cada experimento custou aproximadamente 600 francos— provenientes da grande necessidade de gelo para o resfriamento da câmara. Só no mês de fevereiro de 1883, a quantidade de gelo fornecida pela “Casa de Gelo Nacional” foi de 1.500 quilos, o que representou um custo de 250 mil reis ou 600 francos ao Laboratório (34). Esse valor correspondia a cerca de 2% do orçamento anual destinado a todos os gastos do laboratório.

As justificativas de originalidade dos estudos da fisiologia experimental brasileira estavam nesta ideia de diferença e particularidade: as condições do nosso meio natural —nosso clima quente e as decorrentes especificidades e diversidades de nossas espécies animais e vegetais— influenciariam as ações das substâncias tóxicas e alimentícias e as respostas fisiológicas, o que por si já constituiria fonte rica de temas a serem investigados experimentalmente. Podemos considerar que esse foi um fator fundamental para fazer tais conhecimentos da fisiologia brasileira circularem e se legitimarem nos fóruns científicos internacionais.

Conhecimento local como universal: os esforços de validação internacional da fisiologia brasileira

Uma das características centrais da história da fisiologia brasileira consistiu nos esforços dos cientistas para fazerem os conhecimentos produzidos localmente terem visibilidade e serem validados nos fóruns científicos estrangeiros. O principal horizonte de afirmação dos estudos do Laboratório era a comunidade científica francesa, sobretudo na Academia de Ciências de Paris no Comptes Rendu de l’Academie de Sciences —onde mais de 30 comunicações foram publicadas de 1878 a 1884. Para tanto, o fato de Couty ser portador de capital científico acumulado durante o tempo em que foi aluno e trabalhou no laboratório de importantes fisiologistas franceses foi fundamental. Naquela instituição, as apresentações dos trabalhos e a publicação nos anais de não-membros só eram permitidas sob a tutela de um membro, não importando de qual seção. Couty tinha a tutela de seu mestre Alfred de Vulpian (membro da seção de medicina e cirurgia), este último para tal fim, recomendava os trabalhos para o presidente perpétuo da Academia:

Senhor Secretário perpétuo,

Eu acabo de receber uma nota na qual os autores Sr. Couty e Lacerda (do Rio de Janeiro), me pedem para apresentar na Academia. Estes dois fisiologistas já fizeram comunicações interessantes, inseridas no Comptes Rendu. Eu creio que podemos lá inserir também essa nota. Queira aceitar, Senhor Secretário perpétuo, a garantia de meus sentimentos respeitosos (35, s. p.)

Além da Academia de Ciências, vemos que os estudos foram apresentados —muitos pelo próprio Couty— e publicados em outra importante sociedade francesa, entretanto mais específica, ou seja, de debate sobre as investigações relativas à ciência biomédica naquela época, a Sociedade de Biologia. Esta sociedade foi fundada em 1848, tinha inspiração no ideário positivista e teve como primeiros presidentes médicos e fisiologistas de destaque como Charles Robin, Claude Bernard e Brown-Séquard. O escopo da Sociedade consistia no estudo da vida no seu estado normal e patológico (36). Encontramos aproximadamente dezoito comunicações ou notas decorrentes dos estudos do Laboratório do Museu Nacional, que foram apresentadas —muitas delas pelo próprio Couty ou pelos fisiologistas franceses d’Arsonval e Bochefontaine— e, por isso, em seguida publicadas nos anais daquela Sociedade, chamado Comptes Rendu de la Société de Biologie.

Um importante periódico científico onde os estudos da fisiologia brasileira circularam foi os Archives de Physiologie Normale et Pathologique, principal periódico de publicação exclusiva para estudos da medicina experimental, dirigido pelos fisiologistas Brown-Séquard, Charcot e Vulpian. Nela encontramos os relatos das investigações analisados de maneira completa, no formato de memórias —e não meras notas ou comunicações— nas quais estão descritos circunstancialmente os experimentos e debatidos os resultados das investigações.

As pesquisas também foram divulgadas na Revue Scientifique de la France et de l’étranger, revista que tinha notadamente um caráter muito mais de divulgação científica das teorias, descobertas e invenções, que eram então compiladas, das mais importantes revistas científicas semanais francesas. Nela vários trabalhos do Laboratório foram publicados de maneira resumida, alguns até seguidos de comentários, ou publicados integralmente, como no caso do estudo sobre o veneno curare e aqueles sobre produtos agrícolas brasileiros —referentes aos estudos de Couty quando professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Na maioria das publicações dos trabalhos brasileiros nos fóruns científicos franceses, com o intuito de fazer universais os conhecimentos locais, podemos observar, mais uma vez, a tentativa de se colocar em evidência as especificidades das práticas empreendidas nos estudos brasileiros proporcionadas pela particularidade dos recursos naturais e condições climáticas do país. Essas iniciativas de afirmação do conhecimento nacional como relevantes para a ciência internacional parecem-nos uma característica do fazer ciência que era almejada pelos atores envolvidos no Laboratório do Museu, como podemos notar nas palavras de Couty em relatório ao Ministério da Agricultura, publicado no periódico médico Gazeta Medica da Bahia:

A impossibilidade que haveria em tentar na Europa diversos estudos que temos empreendido aqui dá a razão porque no Brasil, em tão pouco tempo, podemos obter sobre questões importantes, resultados novos e um tanto diferentes d’aqueles que são já conhecidos; mas, é preciso convir, que todos esses fatores mostram também a grande utilidade que há para este país em aproveitar os seus imensos recursos, sob este ponto de vista, como sob muitos outros, e contribuir por sua parte para o progresso científico (37, p. 370).

A análise dos experimentos fisiológicos a partir de temáticas de interesse para o Brasil, como plantas tóxicas, mate, café e clima, nos permitem ver que os modelos científicos vindos da Europa (especialmente da França) e pretendidos como universais, não foram simplesmente difundidos e apropriados de modo passivo no país. Mais do que isso, eles circularam no Brasil e retornaram para a Europa, após serem tratados a partir de temáticas locais. Justamente porque circularam —e por isso eram passíveis de ser reutilizados e reapropriados em outras culturas, outros espaços e tempos— que os saberes da fisiologia ocidental acabaram por poder ser representados como referências de cientificidade a serem seguidas no país.

Podemos perceber que as várias práticas dos cientistas e conceitos da fisiologia oitocentista adquiriram sentido no país amalgamados à cultura científica brasileira daquela época — muitas vezes utilitarista— e, por conseguinte, porque estavam de acordo com os interesses agrícolas, econômicos e comerciais das elites agroexportadoras dominantes. Podemos observar esse movimento de reapropriação e a divulgação das investigações experimentais com o mate e sua utilidade em que, dizia Couty:

Os resultados de todas estas experiências serão apresentados nas academias e nas sociedades da Europa: eles serão consignados em seus boletins ou em suas melhores coletâneas, e estes meios serão os melhores para fazer conhecer a todos o mate e seu valor nutritivo e, assim, estas experiências, fora de seu resultado direto e científico, também terão servido para resol­ver secundariamente a questão a meu ponto de vista econômico e comercial (22, s. p.).

E, no momento de maior produtividade do Laboratório do Museu Nacional, foi justamente por ter tratado de temas típicos e caros para o país que, no movimento de retorno à Europa, se conseguiu caracterizar a fisiologia experimen­tal praticada no Brasil como original. Essa origi­nalidade, para além de proporcionar identidade científica ao país e, assim, significativa notorie­dade para a ciência nacional perante os fóruns científicos internacionais —especialmente na França— fez da fisiologia experimental, em termos simbólicos, elemento importante no processo de modernização do Brasil de fins dos oitocentos. Percebe-se, portanto, na presente análise as resignificações, reapropriações e os usos —não só científicos, mas políticos, eco­nômicos, sociais— dos modelos de prática da fisiologia experimental diante da realidade brasileira daquele período.

Agradecimentos

Estudo apoiado pela capes, fapemig e cnpq.

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Notas

1 Uma versão da história das pesquisas e dos experimentos do Laboratório de Physiologia Experimental do Museu Nacional pode ser encontrada no livro Uma ciência moderna e imperial: a fisiologia brasileira no final do século XIX (1880-1889).

Autor notes

1 PhD

Informação adicional

Para citar este artigo: Vimieiro Gomes AC. Chá, café, curare e clima tropical nos experimentos da fisiologia brasileira em fins do século XIX. Rev Cienc Salud 2015; 13 (esp): 29-45. Doi: dx.doi.org/10.12804/revsalud13.especial.2015.03