Ensayos
PODCASTS JORNALÍSTICOS DE MULHERES COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE RECONHECIMENTO EM CONTEXTO DE NARRATIVAS TRANSMÍDIA E ALGORITMOS
Podcasts periodísticos de mujeres como experiencia estética de reconocimiento en el contexto de narrativas y algoritmos transmedia
Journalistic Podcasts by Women as an Aesthetic Experience of Recognition in the Context of Transmedia Narratives and Algorithms
Laan Mendes de Barros, Universidade Estadual Paulista (Brasil)
Daniela Borges de Oliveira, Universidade Estadual Paulista (Brasil)
Bernardo Fontaniello, Universidade Estadual Paulista (Brasil)
Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social "Disertaciones", vol. 17, núm. 2, pp. 1-18, 2024
Universidad del Rosario
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial 4.0 Internacional.
DOI: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13981
Recebido: 6 de dezembro de 2023
Aprovado: 29 de abril de 2024
Data de pré-publicação: 18 de junho de 2024
RESUMO
Neste artigo, propomos articulações entre comunicação, ecologia dos meios e experiência estética, bem como, problematizamos tensionamentos relacionados aos mecanismos de controle dos sistemas de streaming e às possibilidades de interação sensível, reconhecimento e engajamento político e social no âmbito dos podcasts. Confrontamos, assim, a existência de monitoramento de dados dos usuários na era da plataformização aos formatos de podcasts que dão voz a pautas minoritárias, femininas, como experiências insurgentes de (re)existência. Discutimos a questão do reconhecimento e emancipação das espectadoras/es no contexto da sociedade em rede, que se configura em um tecido complexo de interações e recriações, consensos e dissensos, compartilhamentos e pertencimentos. Analisamos produções feitas por mulheres, como “partilha do sensível” e experiência estética, que constroem um “sensus communalis” mesmo em ambientes regidos por algoritmos. Utilizamos, para tanto, critérios da hermenêutica, da interpretação, e os processos de apropriação por parte de espectadoras/es, para problematizar o fenômeno do podcasting a partir de estudo de caso dos podcasts Mamilos e Conversa de Portão. Dessa forma, combinamos a abordagem teórica com discussões empíricas sobre o fenômeno dos podcasts.
Palavras-chave: experiência estética; podcasts; streaming; narrativas transmídia, podcasts de mulheres.
RESUMEN
Este artículo reúne comunicación, ecología de los medios y experiencia estética, y problematiza las tensiones relacionadas con los mecanismos de control de los sistemas de streaming y las posibilidades de interacción sensible, reconocimiento y compromiso político y social en el ámbito de los podcasts. Por lo tanto, contrasta la existencia de monitoreo de datos de usuarios en la era de la plataforma con formatos de podcast que dan voz a agendas femeninas y minoritarias, como las experiencias insurgentes de (re)existencia. Para ello, se discute la cuestión del reconocimiento y emancipación de las espectadoras en el contexto de la sociedad-red, que se configura en un tejido complejo de interacciones y recreaciones, consensos y disensos, intercambios y pertenencias. Analiza producciones realizadas por mujeres, como el ‘compartir lo sensible’ y la experiencia estética, que construyen un “sensus communalis” incluso en entornos gobernados por algoritmos. Utiliza criterios hermenéuticos, interpretación y procesos de apropiación por parte de los espectadores, para problematizar el fenómeno del podcasting a partir de un estudio de caso de los podcasts Mamilos y Conversa de Portão. De esta manera, combina un enfoque teórico con discusiones empíricas sobre el fenómeno de los podcasts.
Palabras clave: experiencia estética; podcasts; transmisión; narrativas transmedia, podcasts de mujeres.
ABSTRACT
This paper articulates communication, media ecology and aesthetic experience and problematizes tensions related to the control mechanisms of streaming and the possibilities of sensible interaction, recognition and political and social engagement on podcasts. Contrasts, then, the existence of user data monitoring in the platform era with podcast formats that give voice to minority, female agendas, such as insurgent experiences of (re)existence. Therefore, it discusses the issue of recognition and emancipation of spectators in the context of network society, which is configured in a complex network of interactions and recreations, consensus and dissensus, sharing and belonging. The paper analyzes productions made by women, such as “partition of the sensible” and aesthetic experience, which build a “sensus communalis” even in environments governed by algorithms. It uses criteria of hermeneutic, interpretation and appropriation processes by the public, to problematize the phenomenon of podcasting from a case study of the podcasts Mamilos and Conversa de Portão. In this way, it combines a theoretical approach with empirical discussions about the phenomenon of podcasts.
Keywords: Aesthetic experience; podcasts; streaming; transmedia narratives; women’s podcasts.
Trazemos, neste artigo, articulações e tensionamentos entre comunicação, ecologia dos meios e experiência estética, a partir da noção de sensibilidade, para discutirmos formas de reconhecimento no âmbito da produção e consumo de podcasts. Trata-se de um trabalho que se utiliza de critérios da hermenêutica, da interpretação e dos processos de apropriação por parte de espectadores/as, para problematizar o fenômeno do podcasting a partir do estudo de caso dos podcasts Mamilos e Conversa de Portão. Dessa forma, combina-se abordagem teórica com discussões empíricas sobre o fenômeno dos podcasts, a partir de uma perspectiva interacional, das hibridizações e de suas possibilidades dialéticas e dialógicas.
Em tempo de interconexão e mobilidade, mulheres produtoras de conteúdo encontram terreno fértil na produção de podcasts, cuja audiência brasileira vem crescendo. Desde o início do século 20, com as primeiras experiências de transmissão de rádio no Brasil (Ferraretto, 2021), a escuta de notícias e seriados de entretenimento marcou o cotidiano das pessoas, principalmente de mulheres, parte do conjunto de espectadores que vivenciou uma tardia inserção feminina nas emissões. De maneira síncrona à época, os/as ouvintes realizavam atividades durante a escuta, o que é parcialmente herdado pelos hábitos na escuta de podcasts. Os podcasts tornam-se acompanhantes da rotina diária, em especial com dispositivos mobile e plataformas streaming, que, com a internet, possibilitam consumir episódios em territorialidade e temporalidade ditadas pelo ouvinte, os quais acessam os mais diversos temas —de histórias sobre crimes reais a humor, do jornalismo às discussões feministas—.
Com quase duas décadas de existência, os podcasts têm como marco o ano de 2004, quando pela primeira vez teria sido usado o termo “podcasting”, em texto do jornalista Ben Hammersley, publicado no The Guardian (Hammersley, 2004). O acontecimento é associado ao radialista e apresentador Adam Curry (Castro, 2005) e ao programador Dave Winer, norte-americanos criadores do programa iPodder para download de programas de rádio em iPods. O fato é que essa modalidade de comunicação radiofônica (que posteriormente ganhou também formato audiovisual) abriu novas possibilidades de interação entre comunicadores e espectadores de maneira direcionada e interacional, características da nova ecologia dos meios, que apresenta estruturas complexas de produção, circulação e consumo de narrativas, que transitam entre diferentes plataformas e permitem a sua transposição de uma para outra mídia. Estruturas essas que geram também possibilidades de interação e, ao mesmo tempo, sistemas de monitoramento e controle dessas interações.
Abordamos aqui o cenário brasileiro dos podcasts a partir do olhar para a plataforma de streaming mais utilizada para a escuta dos programas, o Spotify, considerando recentes pesquisas que apontam o perfil dos ouvintes. A escolha dos objetos analisados, podcasts conduzidos por mulheres, deve-se à constatação da forte presença masculina na podosfera (Associação Brasileira de Podcasters [abpod], 2021), aqui expressos no Mamilos, da plataforma B9, e Conversa de Portão, do site jornalístico Nós, mulheres da periferia.
A relação entre ouvinte e programas de podcast envolve a criação de um ambiente intimista, como caracteriza Richard Berry (2016), de aproximação de interesses e até vivências, neste que é um ramo mais livre e personalizável de produção de conteúdos sob demanda. Em ambientes midiatizados, problematizamos as lógicas dos algoritmos que governam as plataformas digitais e as possibilidades de afirmação de identidades em espaços de convergência. Mais do que uma escuta individual, pretendemos mostrar a dimensão comunal, comum e vinculativa que envolve esses podcasts, desmembrados em outras experiências midiáticas como plataformas de notícias e perfis no Instagram. Os podcasts tornaram-se um formato fácil de consumir e produzir, de forma que espectadoras/es detêm também a mídia, podendo tanto criar suas produções como participar cada vez mais ativamente com sugestões e pedidos de conteúdos nos programas já existentes.
“Nestes novos meios, as mensagens veiculadas devido às suas características de fluidez, numeralização, plasticidade e instantaneidade são mais facilmente suscetíveis às interferências dos receptores que podem contribuir diretamente na sua construção e tornarem-se também autores-produtores do conhecimento ou, dito de outra forma, sujeitos da comunicação e do processo cognitivo” (Porto-Renó et al., 2011, p. 204).
É pensando em apropriações coletivas na compreensão da realidade e na participação do ouvinte-espectador como sujeito histórico que propomos aqui a produção de sentidos em articulações com a questão do reconhecimento e a comunicação como “partilha do sensível”, conforme define Jacques Rancière (2009), as relações entre estética e política, no plano do comum, do coletivo. Quando esse reconhecimento e experiência sensível se dão nas relações cotidianas e da comunidade, dos grupos de apropriação, ocorre mais que um consenso social, mais que o sensus communis. Quando comunicadoras trazem a voz de mulheres e minorias, das realidades cotidianas, abre-se espaço aos movimentos sociais e ao confronto de compreensões da realidade, e se torna lugar de afirmação e reconhecimento, de afetos e saberes produzidos a partir de um “sensus communalis”, como nos sugere Herman Parret (1997) em A estética da comunicação.
Mais que “interferências dos receptores”, preferimos considerar sua participação como experiência estética interacional, sensível e potencialmente emancipadora, como nos propõe Rancière (2012) em O espectador emancipado. Assim, de fato, os espectadores se constituem em “autores-produtores” de conhecimento, como bem argumenta Porto-Renó, como sujeitos da ação e não apenas como aqueles que sofrem a ação, a quem cabe a reação. E, com as possibilidades de compartilhamento e interação multimídia, a participação dos espectadores se configura de maneira complexa em novos territórios que integram a nova ecologia dos meios.
Podcasts: novos territórios
São várias as definições de podcast. Interessa-nos pensá-las para além de sua caracterização instrumental e tecnológica em si. E, ao abordarmos o fenômeno do podcasting a partir de experiências de reconhecimento nele envolvidas, algumas conceituações são relevantes para que possamos posicionar o tema. Vale indagarmos, por exemplo, se o deslizamento dos formatos radiofônicos tradicionais para o formato podcast difundido na sociedade interconectada atual e a própria transposição de narrativas de uma para outra plataforma, em formatos híbridos e interativos que geram outras narrativas, podem ser compreendidos, ou não, como uma dimensão da transmidiatização e suas estruturas complexas.
Em uma compreensão alargada das perspectivas discutidas por Gosciola (2012), a partir das proposições de Hans Ulrich Gumbrecht, os podcasts refletem, mesmo que de maneira difusa, as dimensões de destemporalização, de destotalização e de desreferencialização em sua materialidade. Ao recorrerem a transições de temporalidade, em retrospectivas e histórias de vida revisitadas no tempo presente, ao transitarem entre as dimensões de territorialidade, em sobreposições entre o local e o global, e ao valorizarem a intersubjetividade das relações pessoais e grupais, em rupturas com referências e enquadramentos presentes nas estruturas tradicionais, os podcasts se afirmam como fenômeno da convergência midiática. Devemos considerar os podcasts como territórios de interação, que permitem que autores e receptores participem como interlocutores, quando suas narrativas experimentam desdobramento em diferentes suportes de comunicação da sociedade em rede. Devemos reconhecer a sua “força convergente” quando eles estão abertos “engajamento colaborativo, onde a audiência pode expressar suas questões, mas, principalmente, pode contribuir determinantemente com o desenrolar das narrativas” (Gosciola, 2012, p. 13); narrativas que deslizam intermidiaticamente.
As primeiras experimentações de arquivos de áudio na internet, que se desenvolveram no modelo atual de podcasts, tiveram como característica uma “abertura do seu mecanismo de distribuição” (Sullivan, 2019, p. 2). Antes mesmo das redes sociais, iniciou-se a circulação dos arquivos a partir do sistema de Really Simple Syndication (rss), que permitia a atualização de episódios em sites ou blogs, de forma gratuita, e subscrição do público, e através dele recebia seus programas de preferência em algum agregador de áudio digital, como o iTunes, da Apple. David Winer foi responsável à época por atualizar esse sistema, permitindo a publicação do que seriam considerados os primeiros podcasts (Sullivan, 2019).
O podcasting vai se transformado no decorrer dos anos com o surgimento das plataformas de streaming, como se a plataformização moldasse novas experiências e começasse a definir seus rumos (Sullivan, 2019). Na cultura do acesso, o crescimento das assinaturas e anúncios dessas plataformas na América Latina fica a cargo principalmente do Spotify e do Apple Music (sucessor do iTunes) nos últimos anos (Vicente et al., 2018). O streaming está no caminho de se tornar cada vez mais independente da tecnologia de rss, apesar de ainda ocorrer que o armazenamento, o consumo e a descoberta de podcasts não acontecem em uma só plataforma (Sullivan, 2019). Talvez essa fragmentação seja mais um motivo da abertura para o fator humano na escolha dos programas.
No início, acessado somente por adeptos da tecnologia, que sabiam como encontrar e baixar os episódios em áudio, hoje o podcast tornou-se fácil de produzir, distribuir e consumir. Com smartphones, microfones simples e softwares de edição gratuitos, novas possibilidades se abrem para produtos independentes de determinados grupos sociais e identidades. Essa natureza de desintermediação na produção de podcast, como nos diz Berry (2016), é observada nas primeiras experiências no Brasil, com iniciativas independentes, e só depois grandes veículos de comunicação investem em podcasts. Essas iniciativas independentes não apenas mobilizam minorias, contribuindo para a diversidade nos ambientes midiatizados, mas também possibilita a entrada de produções baseadas em discurso de ódio, negacionismo e informações falsas.
No Brasil, o agregador mais usado no país para escuta e distribuição de podcasts é o Spotify (abpod, 2020, 2021). Anteriormente, não havia uma plataforma padrão ou ideal para consumo da mídia. Se antes o usuário tinha que fazer o download do podcast diretamente do site do produtor ou assinar via rss, com o avanço dos smartphones, foram surgindo aplicações exclusivas para podcasts, de uma maneira mais direcionada para esse tipo de escuta. A chegada do Spotify no mercado podcasting, em 2017, trouxe outras possibilidades na forma de consumo e distribuição desse conteúdo. Já consolidado na indústria musical, começa a oferecer aos usuários o consumo de podcasts uma nova forma de consumir essa mídia.
Em 2018, a empresa lançou a primeira campanha específica para essa mídia. A decisão condiz com o crescente interesse do público: “Em 2010, o número de ouvintes mensais de podcasts era de 32 milhões, e esse número mais que dobrou até 2018, atingindo 73 milhões de ouvintes” (Época Negocios, 2021, par. 9), dado que extrapola o levantamento de mais de 30 milhões de ouvintes de podcast no Brasil pela abpod (2021). Ainda segundo a pesquisa (abpod, 2021), a composição do público é de principalmente jovens adultos, com média de 28 anos, sendo a maioria de ouvintes e produtores homens —o que vem se alterando, visto que, na América Latina, mulheres ultrapassam o número de ouvintes homens (Encuesta Pod, 2022)—. Por isso, cabe observar podcasts como comunidades de reconhecimento com menos destaque nesse nicho.
Vivemos um aumento exponencial de produção de podcasts no mundo, principalmente a partir de 2020. No mesmo período, de pandemia da Covid-19 e medidas sanitárias de distanciamento social, cresce o número de ouvintes no Brasil (Globo, 2021). Somos o segundo país do globo em número de podcasts produzidos, atrás apenas dos Estados Unidos (Listen Notes, 2024). Além disso, recentemente o Brasil foi elencado como o terceiro país no mundo em quantidade de consumidores de podcasts (Rovaroto, 2022), o que coloca nossa região como importante agente na podosfera. Durante 2020 e 2021, a preferência dos ouvintes ao redor do globo se debruça sobre temáticas diferenciadas, de perspectiva sensível e descontraída: o tema mais escutado se referia à tag do Spotify “sociedade e cultura” (Listen Notes, 2024), apropriado para encaixar iniciativas de podcasts sobre transformações da sociedade. A forma de contação de histórias é outro fator associado à sensação de partilha e acolhimento, com abordagem pessoal dos locutores ao compartilharem experiências vividas, criando um ambiente íntimo:
A contação de histórias do rádio e dos podcasts está perfeitamente posicionada para explorar experiências pessoais vividas. Diferentemente de histórias produzidas para as telas, em que emoções são representadas de forma visual, histórias em áudio (prontamente disponíveis em smartphones) exploram nossas vidas por meio de sons e da palavra falada, sussurradas intimamente em nossos ouvidos. O espaço personalizado de escuta criado por fones de ouvido acomoda ainda mais o vínculo criado entre as vozes na história e o ouvinte. (Lindgren, 2020, p. 114)
A dialogia do podcast está presente desde seu surgimento quando promove debates e discussões, e na intenção de tocar e ser tocado pelo ouvinte, o que cria formas de interação (Primo, 2005), principalmente por meio das redes sociais. Diferentemente da relação do rádio, no podcast, o espectador dita o contexto de escuta e decide o assunto que quer consumir, o que cria um ambiente em que se vê afetivamente envolvido: “Ao combinar um ambiente de escuta altamente pessoal com conteúdo que possui apelo imediato ao ouvinte e é consumido no tempo e lugar de sua escolha, temos motivos para considerar que os podcasts são capazes de um nível profundo de intimidade” (Berry, 2016).
Cabe, no entanto, considerar que mais que “experiências pessoais vividas”, a produção e a fruição dos podcasts devem ser vistas como estruturas de relacionamento, de manifestação e repercussão de experiências comuns, de grupos de identidade e de compartilhamento; além disso a participação do espectador reflete suas relações de convivência, suas “mediações culturais”, no sentido do que propõe Martín-Barbero (2021). Ou seja, esses afetos partilhados na experiência sensível dos podcasts devem ser compreendidos também como experiência de reconhecimento e de pertencimento, na dimensão da sociabilidade e da convivência entre pares. No entanto, cabe problematizar se tais experiências são, de fato, autônomas e emancipadas, pois a datificação das dinâmicas de navegação dos espectadores e a própria segmentação do consumo são monitoradas por sistemas de algoritmos, que direcionam tal consumo.
Streaming, plataformização e algoritmo
O Spotify oferece uma nova maneira de se produzir, distribuir e consumir podcasts. A facilidade em acessar o conteúdo e, inclusive, a possibilidade e simplicidade de criar uma playlist que alterne episódios com outros conteúdos da plataforma —um fator que chama atenção de quem consome produtos sonoros—.
Além disso, outra possibilidade é criar comunidades em torno dos ouvintes, graças à sensação de pertencimento criada e às possibilidades de interconexão, principalmente pelas redes sociais, o que gera um ciclo de propagação dos programas. Assim, percebe-se um vínculo entre o produtor e o consumidor de podcasts, fazendo com que haja uma interdependência entre ambos, tanto no quesito de divulgação, financiamento alternativo, consumo de propaganda, indicação etc., quanto uma metarreferência da própria mídia que, por estar mais próxima dos consumidores, acaba por experimentar novos formatos e assuntos.
Outra particularidade do Spotify que potencializa essas trocas é a possibilidade de ver a atividade de amigos, sendo eles adicionados diretamente por lá ou importados de redes sociais, o que gera uma interação entre os consumidores mais direta que no modelo anterior, no qual se ouvia um episódio por um agregador e havia a interação sobre os temas em uma rede social ou até na seção de comentários da página que hospedava o podcast; ou, ainda, encontrava-se um amigo e aí então discutia-se sobre o episódio; o que se dava uma interação menos orgânica do que em plataformas como Telegram e os novos recursos do Spotify.
Por meio da interação usuário-plataforma, as plataformas mensuram e analisam dados sobre sua audiência para oferecer um fluxo de conteúdo ao consumidor em playlists, a fim de mantê-los interagindo com as plataformas. É estratégico que sejam propostas novas opções de programas para a escuta, de modo a estimular o desejo do usuário a continuar usando os serviços do streaming, mesmo após ouvir os produtos de sua escolha.
Em The mediated construction of reality, Couldry e Hepp (2017, pp. 70-75) discutem e propõem o conceito de midiatização profunda —a fase de intrínseca associação entre sociedade e mídia que extrapola a midiatização para a “datificação”, fase na qual a cultura dos algoritmos e do data science está em processo avançado de integração aos meandros do trato social, ou seja, os algoritmos que mensuram dados começam a reger as escolhas sociais—. E é nesse novo ecossistema dos meios que a fruição dos podcasts se insere, usando as estruturas que as plataformas disponibilizam para que a circulação dos episódios tenha um caminho construído de quem produz a quem ouve, tensionando as compreensões em um caminho guiado pelos mecanismos de dados que ditam a experiência estética dos ouvintes e a reconfigura em poética na criação desse conteúdo sonoro.
Quanto à mídia podcasting, os mecanismos de recomendação de algoritmos sugerem novos episódios. No Spotify, a homepage do usuário apresenta indicações a partir da interação. Além disso, existem recomendações de diferentes podcasts e artistas parecidos. Como as músicas, o podcast está envolvido empreendimento afetivo, condição explorada pelos algoritmos dos serviços streaming: “técnicas que busquem pelo menos direcionar o gosto dos indivíduos através da manipulação de dados” (De Marchi et al., 2021, p. 21).
Figura 1. Sugestões do Spotify baseadas no consumo dos autores
Fonte: captura de tela do Spotify.
Figura 2. Recomendações segundo o consumo dos autores, 25/06 às 20h40
Fonte: captura de tela do Spotify.
Figura 3. Lista de artistas parecidos indicados na página do podcast afetos
Fonte: captura de tela do Spotify.
Nos serviços de streaming, percebe-se que tais operações buscam atuar junto a nossas preferências e percepções sensíveis ante os produtos midiáticos: “Plataformas […] são capazes de associar nossas preferências com categorias de escolha específicas, reconhecendo que tipo de experiência estética nos atrai” (Arielli, 2018, p. 78).
Apesar da semelhança da lógica algorítmica entre as diferentes mídias no streaming, é preciso considerar que, no podcasting, existe maior complexidade para facilitar a experiência do usuário aos mecanismos de busca e recomendação dos programas. As plataformas passam a ser consideradas os principais lugares para a descoberta dos programas. “Essas grandes plataformas de distribuição estão operando cada vez mais como guardiões do público, canalizando sua atenção para um número menor de programas já consolidados” (Sullivan, 2019, p. 2). Com a plataformização, a visibilidade para o formato podcast aumenta e, consequentemente, o número de programas produzidos e investimento no produto, mas percebe-se que seus sistemas de recomendação mantêm a atenção do público a um pequeno número de programas —estão longe de serem plataformas neutras (Sullivan, 2019)—.
Mesmo com essas estratégias, a recomendação e a escolha dos ouvintes por podcasts ainda se destacam por serem personalizadas, com ênfase no fator humano, como a indicação de amigos e familiares, as menções em outras mídias digitais e a publicidade ou a simples busca por assunto. A experiência de escuta está, portanto, envolta em um contexto compartilhado entre produtores e audiência, e familiaridade cultural, características difíceis de quantificar e datar para os mecanismos de busca (Jones et al., 2021, p. 1560). O cenário é observado no Brasil em pesquisa da abpod (2020): “A maioria dos ouvintes descobre novos programas por indicação de podcasters e amigos” (p. 18). Também fazem parte da experiência de busca e escolha de podcasts a pesquisa por temas nos aplicativos, o acompanhamento de tendências nos agregadores, as recomendações de portais e blogs, e,
por fim, as tags em redes sociais. Comparados à experiência da música no cotidiano, os podcasts são preferidos para a escuta ativa e atenta ao conteúdo, principalmente em deslocamentos, e não como plano de fundo de outras atividades (Jones et al., 2021).
Serviços de streaming de música e outros conteúdos sonoros são chamados também “rádio social”, associado à criação de programações musicais, passando de milhares para milhões de ouvintes. Em tal movimento, “[a] automação de processos, como a gestão de catálogos e a rotatividade de faixas na programação, é incontornável, diante do enfraquecimento do mercado radiofônico, com queda de faturamento e inédita perda de postos de trabalho” (Kischinhevsky et al., 2021, p. 160). Diante de tal cenário, oportunidades de mercado e experiência abertas pelas produções de podcast podem ser chave para a sobrevivência também do rádio no ambiente digital.
Cabe, portanto, ressaltar essa complexidade das estruturas que organizam a oferta e induzem o próprio consumo de conteúdos disponibilizados na internet. Com isso, as lógicas de mercado devem ser tensionadas com as lógicas do consumo e das relações de sociabilidade e de pertencimento a comunidades de apropriação e de reconhecimento. O tema merece ser pensado de maneira dialética, de maneira complexa. E, nessa perspectiva, sem ingenuidade, optamos em destacar dimensões e aspectos do universo dos podcasts que se apresentam como possibilidades de compartilhamento, de emancipação e empoderamento, em uma relação de confrontar os jogos e estruturas das redes.
Mulheres podcasters
Conforme avaliam Winter e Viana (2021), a presença de mulheres nas mídias sonoras, desde o rádio até sua participação na podosfera, foi aumentando simultaneamente à aquisição de direitos: “A democratização da produção de podcasts [...] caminha em paralelo com a expansão de espaços ocupados por mulheres na sociedade contemporânea” (p. 61). Na lista dos podcasts mais ouvidos segundo as paradas do Spotify, destacam-se alguns programas apresentados exclusivamente por mulheres, como Mamilos, O assunto e Papo de política. No Brasil, entre as podcasters citadas como referências para a ocupação desse espaço por mais produtoras, estão Ira Croft, do Ponto G, Aline Hack, do podcast Olhares, e Juliana e Cris Bartis, do Mamilos.
Sobre a composição da podosfera, Winter e Viana (2021) consideram que o podcast “democratiza a produção e recepção do radiojornalismo” (p. 54) também com relação ao gênero. Entre 2018 e 2019, por exemplo, foi constatado um surgimento maior de podcasts de mulheres, sendo o perfil dessas produções com uma ou duas produtoras, principalmente como debate ou opinião, tratando de assuntos diversos sempre permeados pelo universo feminino (Winter & Viana, 2021).
O fenômeno do podcasting, porém, está longe de se afunilar somente em produções em áudio. Além das dinâmicas das plataformas em que são disponibilizados, podcasts avançam em possibilidades audiovisuais, como com os mesacasts no Youtube, e com frequência estão associados a projetos mais amplos, que ampliam as conexões midiáticas, como em discussões transmídia em sites e redes sociais. Assim, selecionamos podcasts idealizados por mulheres, os quais simbolizam diferentes experiências inicialmente jornalísticas —o Mamilos, originalmente com a proposta de um “jornalismo de peito aberto”, e o Conversa de Portão, do coletivo de jornalistas mulheres Nós, mulheres da periferia—. Diferentemente de formatos tradicionais de notícias, eles proporcionam abertura para elementos sensíveis no tratamento de acontecimentos.
Em avaliação de Báez et al. (2022), podcasts femininos e feministas atuam na compreensão das desigualdades e das violências sofridas por mulheres também nos meios tradicionais, e por isso podem ser considerados espaços de resistência. Nesse sentido, destaca-se nas produções de mulheres a partilha de experiências e a criação de comunidades.
Mamilos
Um dos trabalhos pioneiros em se tratando de podcasts de cunho jornalístico no Brasil foi o Mamilos, criado em 2014 e apresentado pelas publicitárias Cristiane Bartis e Juliana Wallauer. Ao se referir como podcast que faz “jornalismo” ou “diálogo de peito aberto”, as produtoras apresentam em seus episódios temas polêmicos pela via do diálogo e do debate, a fim de criar um espaço que preze a emancipação e o conhecimento, a partir da dimensão de alteridade, de reconhecimento de uma pluralidade de pontos de vista com seus entrevistados. Cria-se uma relação de uma comunidade de fãs ligada afetivamente com seus ouvintes, chamados “mamileiros” e “mamiletes”, o que reforça uma sensação de pertencimento.
Como aponta Souza (2019), a ideia de polêmica é ponto central para a criação de pautas que permitam debate, o que não quer dizer dar voz a discursos conspiracionistas. Assim, o podcast tem “abordagem e condução de fronteiras flexíveis, vivas, que expandem e se retraem na mesma proporção em que abraçam mais dados, informações, depoimentos, vozes e questionamentos abertos em detrimento das certezas inegociáveis” (Souza, 2019, p. 58). Ideia bastante presente introduções dos episódios: “O podcast que sai do raso, articulando conversas onde o debate está interditado” (Bartis & Wallauer, 2022, segs. 41 a 46).
Ambas as produtoras, Juliana Wallauer e Cris Bartis, são apontadas como podcasters que inspiram novas produtoras a adentrarem na podosfera, ao ocuparem um espaço midiático masculinizado e trazerem um espaço de segurança na discussão de pautas feministas, segundo levantamento de Hack e Lima (2023).
O Mamilos é produzido junto à Brainstorm9, empresa de mídia e produtora de podcasts. O podcast é semanal e busca criar repertórios para que ouvintes tenham embasamento para a tomada de decisões e opinião, além de trazer “aprofundamento do assunto[s] com empatia, respeito, bom humor e tolerância” (Bartis & Wallauer, 2014-2024). A diversidade está presente, aqui, principalmente através de seus entrevistados, prezando por uma variedade de temáticas, entre elas: direitos lgbtqia+, maternidade/mulheres, diversidade racial e bem-estar.
Conversa de Portão
O podcast Conversa de Portão é idealizado pelo Nós, mulheres da periferia, coletivo exclusivamente formado por mulheres, principalmente negras, e que conta com um site na intenção de produzir jornalismo “por e para mulheres” com a missão de dar voz à opinião e à história de mulheres negras e periféricas, em defesa da pluralidade, em prol do antirracismo e contra a sociedade patriarcal. Em setembro de 2020, surge o podcast, que atualmente possui
parceria com o uol Plural,1 projeto colaborativo que traz produções de coletivos e veículos independentes ao portal.
O programa traz opinião, análise e histórias de mulheres sobre diversos assuntos do país. As temáticas tratam de pautas femininas, periféricas, raciais e políticas. Como o próprio nome remete, o podcast cria ambientação intimista, na ideia de proximidade entre vizinhos e vivências de bairro. A abertura dos episódios reforça esse entendimento, ao contar com sons como latidos de cachorro, buzinas e barulhos de bicicleta, misturados para compor a paisagem sonora de uma rua movimentada. Ouvimos palmas, como se faz para chamar moradores de casas sem interfone, e o som que nos faz imaginar a abertura do portão. O recurso adianta a dinâmica sensível do podcast, de abrir as portas da casa para deixar entrar o outro, acolher e ouvir em relação de alteridade.
O podcast, cuja atividade diminuiu no decorrer do ano de 2023, é um dos formatos adotados na produção de conteúdo pelo Nós. No portal de notícias do coletivo, as jornalistas acionam acontecimentos recentes com análises pertinentes para a autonomia de mulheres e pela diversidade em sociedade: alguns exemplos são reportagens sobre as religiões de matriz africana, a importância do desenvolvimento de inteligência artificial na perspectiva feminista e a indigenização feminina de espaços políticos. As discussões se desdobram em perfis como do Twitter (X) e Instagram, cujas publicações dão especial enfoque à realidade de mulheres negras.
O coletivo sustenta suas atividades por meio de parcerias e assinaturas, e tem como tronco o site de notícias que se desmembra em demais formatos midiáticos. Tais produções partem do “intuito de contribuir para a construção de narrativas jornalísticas mais humanas e contextualizadas, dialogando com a tríplice raça, classe e território, tendo a periferia de São Paulo como contexto”. A noção de periferia perpassa a constituição do coletivo e suas produções. Em manifesto do grupo, a condição de gênero e raça, sendo mulher negra, é apontada como “periférica em qualquer endereço” em uma sociedade marcada pelo patriarcado, pelo racismo estrutural e institucional. Suas atividades se sustentam na ideia que constroem da periferia, que mais que um lugar, é “ponto de referência. É uma perspectiva, um lugar de fala, um corpo no mundo. [...] É subjetividade, identidade, sentimento, memória afetiva. Periferia são narrativas contra a História única” (Nós, s. d.).
Em vários episódios, são usadas estratégias sonoras de criação de um ambiente ficcional dessa “conversa no portão” ou diálogos na rua em geral, como propostos em manifestações políticas. Existe a ênfase em dar voz a mulheres especialistas, além de contextualizar e aprofundar temas relacionados à desigualdade social referentes à condição de gênero e raça. No primeiro episódio, a apresentação dos assuntos tratados pelo podcast sintetiza a relação com o cotidiano das mulheres periféricas e a condição de ser permeado pelo protagonismo feminino. Segundo Bianca Pedrina (Conversa de Portão, 2020, set.) “esse podcast, [...] vai ser um exercício de escuta também. De escutar as mulheres que moram nas bordas das cidades, de escutar nossa vizinha, de escutar quem mora na periferia e que muitas vezes não é ouvido, as nossas especialistas”.
O podcast se transforma no decorrer dos episódios, no lidar com os problemas técnicos que surgem, das jornalistas se afetarem pelas narrativas das mulheres que ouvem e de estarem em comunhão com os ouvintes, em relação de cumplicidade. Percebe-se uma produção simples e experimental, com ruídos e interferências. Ouvimos sons de mensagens no celular, o volume das vozes é diferente, não há cortes ou edição. Tais detalhes se ligam a uma identificação dessas produtoras, que nos fazem ter a dimensão do espaço de fala de cada uma e quais marcas existirão em seus discursos.
No episódio “Durban: desafios do combate ao racismo 20 anos depois” (Conversa de Portão, 2021, set.), por exemplo, apresentado pela jornalista e cofundadora Jéssica Moreira, o início é o som de clamor de uma multidão ao fundo, que repete a frase entoada por uma voz feminina: “não posso respirar”. A voz intensa da mulher, que transmite angústia e tristeza nas palavras entrecortadas, dá a impressão de uma falta de ar e peso no peito. O tema desse episódio é o racismo, com gancho no assassinato de George Floyd em maio de 2020 nos Estados Unidos, mas que perpassa aspectos históricos da luta por direitos da população negra, como as propostas das conferências contra o racismo da Organização das Nações Unidas (onu), em especial a realizada em Durban, que completou 20 anos. As entrevistadas, recebidas no “portão”, foram a primeira negra brasileira relatora da onu, Edna Roland, e a militante da Marcha das Mulheres Negras, Juliana Gonçalves.
São diversas as inserções de registros de falas e gravações que ilustram o tema e enriquecem com informações dos episódios. A estrutura proposta se assemelha às grandes reportagens produzidas para meios televisivos, apesar de o podcast ser produzido exclusivamente por áudio. Outra ilustração, desta vez do primeiro episódio do podcast no Spotify (Conversa de Portão, 2020, set.), é interessante para compreender a proposta do produto. “Como é que começa uma conversa?” é o título da apresentação, uma metalinguagem ao mostrarem para o ouvinte a intenção e a sensação que querem provocar com o podcast.
Para apresentar o produto, a equipe do Nós, mulheres da periferia começa o primeiro episódio com um encontro casual. Na transcrição, percebemos marcas de oralidade, ruídos e teor do diálogo entre as apresentadoras: “Ô de casa! Ô Regiany? Ô de casa! Ô, Regiany. Ô, Mayat! Ô Semayat! [risos] Bi já tá aí? Bianca? Estamos gravando. [Latidos] Deixa o áudio desligado por agora. [Voz 1] Peraí, um minuto, um minuto. [Voz 2] Ah, isso que acontece no meio da Conversa de Portão: A mãe sai, vai atender o filho, o cachorro da outra late... É isso aí, gente” (Conversa de Portão, 2020, set.).
O recurso, apesar de não contribuir com informações relevantes logo de início, adiantava como é a dinâmica sensível do podcast, de abrir as portas da casa para deixar entrar o outro, acolher e ouvir em relação de alteridade. Além disso, as intervenções mostram que a produção é caseira, solução comum para produtores de conteúdo e os chamados “jornalistas móveis” durante a pandemia. Ouvimos sons de mensagens no celular. O volume das vozes é diferente, umas mais distantes que outras. Não há cortes e edição, somente a gravação da conversa, provavelmente feita por um celular.
O tema, “como iniciar uma conversa”, converge para a apresentação dos assuntos que são tratados pelo podcast. Destacamos uma das falas: “[Voz 1] Eu acho que pra nós, mulheres da periferia, todos os assuntos são importantes, principalmente os assuntos que estão relacionados com a nossa vida, com o nosso cotidiano. [Voz 2] Como transporte público, cultura, moradia. [Voz 1] Boa, eu acho que é por isso mesmo que a gente tá lançando Conversa de Portão [...]” (Conversa de Portão, 2020, set.).
O podcast não é apenas pautado por temáticas femininas ou periféricas. Como destaca a equipe no trecho, todo assunto é relevante, na condição de ser permeado pelo protagonismo feminino tanto na produção das entrevistas como na esfera das fontes especializadas.
“E haja mulher que a gente conhece no portão. Se tem uma coisa que a gente conhece aqui no ‘Nós’ é a história de mulheres. [Troca de voz]. Exatamente, então toda semana a gente vai trazer uma especialista, uma personagem, alguém que vai ajudar a gente a olhar sobre as notícias da semana pela perspectiva das mulheres, pela perspectiva das mulheres periféricas” (Conversa de Portão, 2020, set.).
A equipe se apresenta, não pela forma comum de anteciparmos nossos nomes por nossas conquistas profissionais (exemplo: Meu nome é Maria, sou jornalista do jornal X), mas por outras características singulares que as constroem. É na perspectiva da autoidentificação, não do reforço a uma posição de trabalhadora e consumidora da sociedade capitalista, que a apresentadora do Conversa de Portão se revela. Comentam seus locais de moradia, suas preferências pessoais, signos, assuntos de interesse para pautas, que nos fazem ter a dimensão do espaço de fala de cada uma e quais marcas existirão em seus discursos.
Nos episódios, são abertos espaços de partilha de experiências com destaque à voz das mulheres silenciadas, de pessoas que tangenciam o discurso jornalístico tradicional. Não só espaço de partilhas sensíveis, o podcast parece ser lugar de partilha política, de existência e resistência, de fraternidade e liberdade desse grupo.
[...] a comunicação e a própria vida não podem ser reduzidas à mera estratégia, a um conjunto de regras e técnicas, a sequências infinitas de dados e modelos estatísticos e/ou epidemiológicos (embora importantes); a reflexão ética, agora de novo tão urgente, encontra na prática de comunicar (e informar) um universo de discurso tão vasto e articulado como sempre e, portanto, chamado a abraçar a “nova” hipercomplexidade, constituída por modalidades de agir de forma totalmente original e inovadora que se entrelaçam com uma densa rede de direitos e deveres. (Dominici, 2020, p. 34)
Nesse tensionamento entre estética e política, tal como defende Rancière (2009), acreditamos que esse projeto contribui para iluminar criticamente a participação da classe feminina e periférica obscurecida em outros formatos jornalísticos.
Considerações finais
Mais do que a forte presença de podcasts em alta no Spotify que abordam a sensibilidade em temas como bem-estar e com entonações que sugerem acolhimento, defendemos que iniciativas sensíveis devem avançar nas formas de promover identificação e enfatizar os vínculos humanos, como sugerida por produções alternativas do jornalismo. Iniciativas de jornalismo independente, como o Conversa de Portão, produzido por minorias de raça e gênero, localizadas regional e perifericamente, são necessárias como forma de resistência e (re)existência da representação e envolvimento sensível com mulheres e demais pessoas nessas mesmas condições. Trata-se de um exercício de (re)existência, como sugere Catherine Walsh (2013) em suas “pedagogias decoloniais”, experimentado por meio de “práticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)viver”.
Embora o ambiente das redes seja potencialmente participativo e favoreça a presença de segmentos marginalizados na mídia tradicional, ainda é reduzida essa participação e o seu uso é majoritariamente relegado a ações independentes. Existe, porém, aberturas no formato de podcast para novas formas de tratar informações, como pudemos ver no podcast Conversa de Portão, que não fala exclusivamente sobre a periferia, sobre minorias. Não fala para ouvintes passivos, mas fala com as pessoas, como sujeitos interlocutores, em seu território de (re)conhecimento. O referido podcast propõe um diálogo entre mulheres, a partir de entrevistas com mulheres, no espaço da comunidade.
Trata-se de pensar a comunicação como experiência estética, plena de estesias, que alimente a solidariedade e a empatia, a indignação e a mobilização, o confronto das ideias diferentes e a defesa das diferenças. Mais que a construção de consensos, de um sensus cummunis, interessa-nos pensar no “sensus communalis” proposto por Parret (1997): “o sensus communis é o sensus de uma comunidade que [...] não é nem argumentativa nem consensual: Ela é afetiva” (p. 197). A indagação que ele nos faz sobre a política serve também para nos indagarmos sobre o jornalismo: “por que, então, não estetizar o político a partir da ideia de temporalidade essencial da comunidade afetiva?” (p. 199).
Ressaltamos a relevância da subjetividade para a criação de um ambiente de conhecimento e reconhecimento, que só é possível em conjunto, na partilha. Dessa forma, convém pensar essas iniciativas dentro de uma noção de comunicação como experiência estética e esta como “estética relacional”, como nos sugere Nicolas Bourriaud (2009, pp. 20-21) ao definir uma arte “que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado”. Ou, ainda, a comunicação no plano do comum e do sensível, que cabe tanto às obras de arte como às da indústria cultural, como elabora Muniz Sodré (2016): “O estético —melhor ainda, o ‘estésico’, para se desembaraçar a estética da tradição filosófica de julgamento de obras de arte ou mesmo industriais— aparece aí, então, como o conteúdo afetivo da vivência cotidiana” (p. 90).
Na perspectiva da comunicação compartilhada que o reconhecimento se dá. O reconhecimento das identidades e das lutas partilhadas, o reconhecimento de que existe um “eu” no “outro”, como nos ensina Paul Ricœur (1991), na obra O si-mesmo como um outro. Deve ser compreendido a partir do tensionamento entre identidade, ipseidade e alteridade (Barros, 2022). E o conhecimento resultante do reconhecimento é mais que explicação das identidades e ideologias no chaveamento estreito do racionalismo. A racionalidade precisa ser articulada com a sensibilidade, que devolve à importância dos sentidos humanos, e nesse caso especialmente a importância do ouvir. As palavras lúcidas e sensíveis de Hannah Arendt (2006), como em O que é política, merecem a nossa atenção e percepção estética, com estesia. Precisamos, mesmo, pensar a “comunicação sem anestesia” (Barros, 2017).
Se alguém quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é “realmente”, só poderá fazê-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que está entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um de maneira diferente e, por conseguinte, só se torna compreensível na medida em que muitos falam sobre ele e trocam suas opiniões, suas perspectivas uns com os outros e uns contra os outros. Só na liberdade do falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala, em sua objetividade visível de todos os lados (Arendt, 2006, p. 60).
É na perspectiva da práxis que propomos o fazer comunicacional como exercício de reconhecimento, de maneira a superar a pandemia da desinformação tão profunda em tempos de discurso de ódio (Barros, 2020). Mais que reforçar a informação, como antídoto da desinformação, mais do que defender a racionalidade na construção do conhecimento em oposição à irracionalidade, preferimos pensar a comunicação como experiência estética,
sensível, profundamente inserida no contexto histórico e lugar social em que as pessoas se encontram e se reconhecem. Em um processo interacional, que permita nos reconhecermos no plano da alteridade. Preferimos “socializar o sensível” e “sensibilizar o social”, como nos sugere Herman Parret (1997).
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1A notícia do uol Plural coloca em questão a possibilidade de coprodução com seus jornalistas, o que nos leva a crer que existe certo tipo de apoio ao coletivo Nós, mulheres da periferia, na produção de conteúdo (uol, 2020).
Para citar este artigo: Barros, L. M. d., Oliveira, D. B. d., & Fontaniello, B. (2024). Podcasts jornalísticos de mulheres como experiência estética de reconhecimento em contexto de narrativas transmídia e algoritmos. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 17(2). https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13981