Ensayos
DASEIN DIGITAL: O SIGNIFICANTE DE MUNDO E SUA VERDADE VIRTUAL
El dasein digital: el significante del mundo y su verdad virtual
The Digital Dasein: The Signifier of the World and its Virtual Truth
Rodrigo Malcolm de Barros Moon, Universidade Estadual Paulista (Unesp) (Brasil)
Maria Cristina Gobbi, Universidade Estadual Paulista (Unesp) (Brasil)
Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social "Disertaciones", vol. 17, núm. 2, pp. 1-11, 2024
Universidad del Rosario
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial 4.0 Internacional.
DOI: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13971
Recebido: 5 de dezembro de 2023
Aprovado: 21 de fevereiro de 2024
Data de pré-publicação: 28 de maio de 2024
RESUMO
Imersos em um mar caótico de dados, estamos a todo momento buscando sentido nas informações que nos chegam, a fim de orientar nossa ação e nosso pensamento. Ao longo da história fabricamos meios cada vez mais sofisticados para armazenar e transmitir informação, da escrita à representação 3D em computação gráfica. Cada aparelho com sua linguagem, seu programa e função. A consequência natural deste desenvolvimento é uma produção e circulação cada vez maior e mais Intensa de informação, exigindo novos métodos capazes de filtrá-la a fim de que consigamos apreender a realidade em sua constituição. A metodologia de análise é baseada em uma revisão teórica. Devido à miríade de problemáticas que surgem na atualidade, da intersecção entre informação e tecnologia digital, nos debruçaremos sobre teorias que possam validar uma razão suficiente para nos orientarmos no agora. Discutiremos a imagem como informação: sua ontologia e métodos de fabricação para compreender seu estado na atualidade. Correlacionando a situação no mundo (dasein) com a interpretação de imagens, surge a principal problemática deste artigo: como utilizar imagens digitais para nos situarmos no mundo hoje?
Palavras-chave: informação; imagem digital; tecnologia; ontologia; dasein.
RESUMEN
Inmersos en un mar caótico de datos, buscamos constantemente significado a la información que nos llega, para poder guiar nuestra acción y nuestro pensamiento. A lo largo de la historia, hemos fabricado medios cada vez más sofisticados para almacenar y transmitir datos, desde la escritura hasta la representación 3D en gráficos por computadora. Cada dispositivo con su propio idioma, programa y función. La consecuencia natural de este desarrollo es una producción y circulación de información cada vez mayor e intensa, lo que requiere nuevos métodos capaces de filtrarla para que podamos captar la realidad en su constitución. La metodología de análisis se basa en una revisión teórica. Debido a la infinidad de cuestiones que surgen hoy en día, en la intersección entre la información y la tecnología digital, nos centraremos en teorías que puedan validar una razón suficiente para orientarnos en el ahora. Discutiremos la imagen como información: su ontología y métodos de fabricación para comprender su estado actual. Correlacionando la situación del mundo (dasein) con la interpretación de las imágenes, surge el principal problema de este artículo: ¿cómo utilizar las imágenes digitales para situarnos en el mundo de hoy?
Palabras clave: información; imagen digital; tecnología; ontología; dasein.
ABSTRACT
Immersed in a chaotic sea of data, we are constantly searching for meaning in the information that reaches us, in order to guide our action and our thinking. Throughout history, we have produced increasingly sophisticated means of storing and transmitting information, from writing to 3D representation in computer graphics. Each device with its own language, program, and function. The natural consequence of this development is an ever-increasing and intense production and circulation of information, which requires new methods capable of filtering it so that we can grasp reality in its constitution. The analysis methodology is based on a theoretical review. Due to the multitude of issues that arise today, at the intersection between information and digital technology, we will focus on theories that can validate a sufficient reason to guide us these days. We will discuss the image as information: its ontology and methods of fabrication in order to understand its current state. Correlating the situation of the world (dasein) with the interpretation of images, the main problem of this article arises: how to use digital images to situate ourselves in today’s world?
Keywords: Information; digital image; technology; ontology; dasein.
Sobre o mundo, e como nos situamos nele
A linguagem atua, através da representação, como mediação entre ser e realidade. Fazemos sentido do mundo quando entendemos a relação entre signo e objeto. A articulação dos signos, objetos potenciais do pensamento, permite a articulação de mundos virtuais. Assim, para pensar em algo, nos utilizamos de um signo que faça a mediação entre esse algo e a representação. A ontologia do signo se faz pela relação triádica entre objeto e um representâmen, que gera um interpretante para uma mente (Peirce, 1991, 2005). Assim, o processo de significar é uma relação entre um objeto, uma mente e uma imagem de pensamento. São crenças que compõem nossa heurística, a base do pensamento que sustenta quaisquer elaborações e articulações.
Percebemos signos através de nossos sentidos, são informações que nos chegam por perturbações no ambiente, sejam raios luminosos ou ondas sonoras, e que percebemos através dos canais de percepção, que transmitem ao cérebro sinais elétricos que assim são dotados de sentido. A isso, nos referimos como umwelt (Uexkull, 1934), o universo particular do ser, ou até onde nossos sentidos percebem o mundo. Fisicamente temos limites para o universo que podemos conceber. Contudo, ao longo do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, criamos máquinas que percebem o mundo para além do que nosso corpo é capaz. Com essa expansão, podemos ter dimensão do tamanho da Terra, da galáxia, do cosmos. Não percebemos diretamente, mas sim através da mediação da representação técnica: seja imagem, conceito ou ideia.
O conceito de dasein para Heidegger (2012) se refere à colocação da existência como um problema para o ser: quem somos frente ao cosmos? Implica, necessariamente, na autoavaliação ontológica do ser, partindo do princípio de sua identidade, ou seja, distinção em relação ao ambiente pelo processo de gênese do indivíduo enquanto individualidade, informação (Simondon, 2020). Percebe-se o mundo para se compreender, de tal maneira a orientar a existência para a resolução deste mesmo problema: qual o devir? Entende-se, porém, que todo ser existe em um espaço e um tempo que determinam as condições de sua existência, que lhe impõem limitações para seu potencial de ação e formas de compreensão. Tal operação de alocação no mundo perpassa uma lógica de causalidade e contiguidade entre tudo aquilo que pertence ao universo imediato do sujeito, aquilo tangente ao seu potencial de ação. Para daí extrair o significado de sua existência no mundo.
Para bem situar-se, é necessário que haja verossimilhança entre os signos apreendidos e empregados no pensamento com a realidade imediata. A concepção errônea de certas existências ou processos de transformação impedem o sujeito de tomar responsabilidade sobre suas ações, visto que não é possível compreender a consequência de seus atos. Falamos aqui de um conceito de verdade que toma o mundo como parâmetro de verossimilhança. Os signos devem representar virtualmente aquilo que se percebe atualmente. Para que isso seja alcançado, necessita-se de uma operação lógica que designe signos para os objetos, e que disso decorra um pensamento que compreenda os processos de transformação do mundo. Aí reside um ser-estar: compreensão da existência e aquilo que o tempo lhe reserva.
Contudo, o conceito de verdade colocado na história produz regimes de verossimilhança, por assim dizer. Cada formação histórica (Deleuze, 2017) possui suas verdades em virtude dos saberes e poderes em jogo. Ou seja, para cada época, há uma forma verdadeira de ver e falar sobre as coisas ao redor. Os saberes são regimentados por dogmas e heurísticas coletivas sobre como deve ser o mundo. E sobre como devemos transformá-lo: o exercício de poder se regimenta sobre certos atores individuais ou coletivos e se fundamenta sobre uma essência verdadeira do mundo a se desvelar pelo potencial da ação. Tais verdades se estabelecem através de agenciamentos coletivos de enunciação, quando as formas de visibilidades e enunciados se padronizam acerca de determinados parâmetros. Não sem terem uma função essencial na manutenção de uma hegemonia, elevando ao status de dogma certos enunciados sobre outros.
Assim, o sujeito frente ao mundo percebe ser apenas uma formiga frente a um colosso de complexidade. Incapaz de conceber o mundo em sua completude, partimos para signos capazes de gerar uma imagem compreensível e funcional. Falamos de uma certa magia (Flusser, 2002) pois na ausência de uma explicação causal sobre o mundo, aceitamos um signo que represente o incompreensível. A isso chama-se imagem tradicional, uma imagem que visa situar o sujeito no mundo. O significante que isso produz é uma noção que comporta simultaneamente a individualidade do ser e a alteridade do mundo. Ou seja, não possui método de fabricação, ela se cria no processo do ser em dasein.
Flusser (1994) aponta como resultante de tal processo uma tríade do trabalho, sendo este um gesto antinatural pelo qual vencemos a resistência do mundo para realizar nossos desejos. Ou seja, para transformar o mundo através da ação, a ontologia das coisas é fator determinante para que o sujeito compreenda aquilo que lhe cerca. Para além das coisas, uma metodologia suficiente que permita transformar as coisas segundo uma deontologia que guie o processo e o produto. Assim, não somente perceber o mundo se torna necessário, mas o processo de situação do ser também gera tanto método como valores que orientam a ação. A depender das noções sobre o mundo do sujeito, estes podem ser rendidos inúteis pois discrepantes com a realidade.
Dessa maneira, as representações que aglutinamos no significante de mundo compõem não somente as condições de interpretação da realidade do sujeito, mas principalmente as fundações do pensamento que orientam a ação. Assim, coloca-se uma problemática deveras perniciosa: se antes as representações e imagens eram escassas e manufaturadas, portanto, fruto de trabalho humano, hoje nos deparamos com uma realidade digital que não somente armazena informação como permite sua fabricação e manipulação. E isso acarreta diversas problemáticas para o contexto da imagem nesse paradigma da informação em redes digitais.
O efeito das mediações digitais na imagem
A imagem tradicional, mágica, que representa uma situação, é fabricada pelo humano sem o auxílio de aparelhos, i. e., um programa, códigos que determinem o produto do procedimento de criação de imagens. Dessa maneira, a imagem técnica (Flusser, 2002) surge com a introdução do aparelho fotográfico, máquina de produção de imagens. Atribui-se a ela uma verossimilhança irrefutável, pois o programa químico da película de haleto de prata, o código linguístico do enquadramento e os signos de representação constroem uma cena que não somente situa o sujeito, mas comunicam uma mensagem. Mais precisamente, o conteúdo da mensagem acaba por denotar a forma e enquadramento, visto que a linguagem fotográfica se torna meio de comunicação —em contraposição com a função de representação dos grafismos e memória das pinturas e retratos—.1
A introdução da técnica sobre o olhar, a intervenção programática na composição da imagem e a construção científica da representação situam a imagem em um patamar quase onipotente em uma cultura visual. Uma imagem vale mais que mil palavras: precisamente pela horizontalidade e circularidade da leitura, permite a justaposição de elementos contraditórios que pela tensão da interpretação fundam uma fissura semântica, criando um universo intersticial de possíveis interpretações (Didi-Huberman, 2013). Contudo, pelo método interpretativo guiado por um alfabeto visual, ou talvez mais precisamente a constituição de uma linguagem visual para a representação de textos, o processo interpretativo é guiado para um significado preciso, desenhado, projetado: imagem técnica, forjada por procedimentos técnicos e científicos de comunicação, transmissão de informação (Flusser, 2011).
Os constantes desenvolvimentos tecnológicos —como um smartphone com câmeras que rivalizam com aparelhos profissionais em qualidade de imagem; e também softwares de manipulação e fabricação de imagens— amplificam as possibilidades comunicacionais da imagem, ao ponto de produzirmos memes cuja aparência nonsense se contrasta com uma precisão na construção de um conjunto muito reduzido de interpretações possíveis. Isso se explica pela natureza digital da imagem, cuja ontologia virtual permite reversão livre de estados de organização para futura atualização, ou seja, todos os objetos digitais se reduzem a longas linhas de códigos, que em sua natureza, nada se diferem, que podem ser alterados em sua ‘substância’ para produzir formas em seu ‘conteúdo’.
Tal livre manipulação quebra com a lógica de univocidade da imagem fotográfica para com a realidade: deep fakes são irreconhecíveis para olhos e ouvidos não treinados, toda imagem pode ser ‘photoshopada’ e, portanto, representa uma irrealidade. Operações de glitch subvertem o código de arquivos digitais para produzir erros, e daí extraindo arte. Tal premissa ontológica deve ser considerada para compreender a imagem hoje, pois sua desconstrução não mais se opera durante a interpretação, mas também durante sua produção. Cada sintagma tecnoimagético articulado a outro, compondo não somente cena, mas linearidade de representação, sintaxe entre elementos, produção de sentido determinado pela construção da informação.
O paradigma da informação em rede pode ser simplificado por uma estrutura física de redes de cabos submarinos que interligam o globo permitindo conectividade digital entre dispositivos de acesso como pc’s e smartphones; e por uma interface virtual que faz a ponte entre código de máquina (ontologia digital) e uma linguagem visual simplificada para interação funcional que determina as formas de consumo de informação e expressão. Tal interface é a porta de entrada de um usuário ao ‘espaço’ das redes, povoado de fluxos informacionais contraditórios e abundantes, dos mais diversos conteúdos e alinhamentos.
Isso se deve à facilidade de produção de conteúdo de um usuário comum. O que antes era somente viabilizado por loci especializados, espaços povoados de máquinas e profissionais que preparam, executam e disseminam informações, hoje pode ser realizado por smartphones, com uma digitalização quase completa dos requisitos técnicos e funcionais, sendo realizados por máquinas virtuais de cálculo e probabilidades. O primeiro fator imprescindível aqui é a perda do agenciamento humano na construção da informação. Para pensar como Flusser, criamos um aparelho comunicacional que agora condiciona nossa forma de expressão, delimitando os parâmetros técnicos que podem ser alterados, modulando os discursos que daí decorrem.
O segundo ponto essencial se refere aos agentes de construção dessa ambiência digital e de seu respectivo aparelho. Ao contrário do senso comum, a ‘internet’ enquanto infraestrutura é privada, gerenciada e mantida fisicamente por corporações que lucram com seu uso. Isso implica que tudo aquilo que ali acontece visa cumprir com interesses do grupo diretor em atingir certas metas de lucro, convertidas em métricas de engajamento e ‘interação de qualidade’ entre os atores em rede. Está nas próprias premissas da organização da plataforma que quanto maior o tempo gasto pelos usuários, melhores serão os índices de sucesso da empresa.
Ou seja, somos compelidos a criar conteúdo em todas as redes sociais que participamos. Na verdade, a condição para uma existência digital é a constante produção de informação, atestar o vínculo do sujeito com seu perfil através da constante migração de pensamentos e acontecimentos da experiência do indivíduo, codificadas nas linguagens das plataformas, e expressadas de acordo com os termos de uso. Não obstante, temos uma quantidade atroz de informação circulando nas redes diariamente. O que implica, também, que há uma concorrência pela ordem de prioridades no feed social de um indivíduo: ao se adequar às métricas de engajamento, um sujeito não somente modela sua existência a partir de tendências, mas também normatiza um padrão dentro de nichos de produção de conteúdo. Ou paga para impulsionar seu conteúdo para setores de público-alvo já mapeados pelas plataformas.
Enfim, instaura-se aí uma problemática da influência das ambiências digitais nos processos comunicacionais pelo código das plataformas se impor sobre o código de expressão do sujeito, sobre seu aparelho pessoal de comunicação. Emprestando essas linguagens, o indivíduo condiciona sua expressão, e consequentemente suas sensações, às formas de comunicação em vigor. Sentimos, assim, todos, os mesmos memes que produzimos para encapsular certos pathos da atualidade que texto e imagem individualmente são insuficientes para expressar. E nos obrigamos a utilizar cada vez mais essas plataformas para nos comunicarmos.
Em terceiro momento, focando mais exclusivamente na produção e disseminação de imagens, percebemos que o acervo visual, que antes se limitava em grande medida a uma memória do sujeito, ou ao seu acervo físico de signos, hoje pode ser acessado por pesquisas que utilizam termos textuais como indexadores de uma biblioteca virtualmente ilimitada de imagens. Entre elas, sem distinção, vemos fotografias, pinturas e grafismos de todas as épocas, bem como fotografias analógicas, digitais, capturas de quadros de vídeos, imagens manipuladas e até mesmo imagens criadas a partir de máquinas digitais. Metodologicamente, se torna quase impossível de discernir as imagens entre si, visto que a última categoria, ao se utilizar de bases de dados colossais, pode gerar todas as outras supracitadas. O sujeito, assim, acaba por não diferenciar uma da outra, embora suas ontologias revelem mundos distintos.
Não somente as ontologias, como os referentes das imagens se misturam. Crenças, ideologias, culturas e linguagens se misturam sem separação clara ou classificação que aponte as diferenças entre uma e outra se utilizando do mundo como referência. Em toda medida, são imagens vazias, simulacros (Baudrillard, 1991) que atuam mais como signos vazios do que referentes do Real. Se tornam funcionais, referem-se a hiper-realidades, portanto, mais remetem a uma simulação de um mundo do que a ele de fato: remetem a um significante de mundo irreal, segundo o qual todas as informações recebidas serão interpretadas.
O compromisso com a verdade, antes fundamento para a produção da imagem fotográfica, que a partir da técnica copiava o mundo, hoje se evanesce em detrimento de uma crença na visualidade: podemos produzir qualquer imagem, e a atuação de vieses cognitivos determina crenças individuais como verdades absolutas. Crê-se ver na imagem um referente inexistente que contribua com as crenças do sujeito, portanto corroboram com sua visão de mundo, ao invés de contrapô-la. Se torna assim de fácil assimilação por ressoar com os outros saberes do sujeito, introduzindo-o em um nicho social customizado por algoritmos.
Quando a imagem se lança pelas redes digitais, ela se torna bits, decomposta em operações matemáticas e armazenada e acessível por dispositivos, altera-se sua função social: da representação, se torna pura ferramenta de comunicação, dialogando com textos em prol de um significado projetado. Isso implica que o mundo, e sua imagem significante, podem sofrer da mesma transformação. O processo de situação cede espaço para a comunicação: não se decifra, mas comunica-se o mundo. E no atual paradigma da comunicação através das plataformas digitais, apreende-se a realidade a partir de discursos enviesados e sem compromisso com a verdade, a tal ponto que o resultado do processo de situação do sujeito acaba por endereçar um mundo que não existe. Por meio das mediações dos algoritmos, o mundo é recortado, desmembrado em categorias, e impulsionado internamente gerando câmaras de eco. Notícias falsas abundam, sem método eficaz para detecção de mentiras. Será possível baixar o celular e olhar para frente para ver para onde estamos andando?
Em suma, somos inebriados por imagens o tempo todo, refletindo diversos mundos —alguns fantasiosos do cinema ou animações, outras realistas, fotojornalísticos, e algumas outras criadas propositalmente para confundir refletem mundos falsos— sem saber exatamente em qual nos situamos. Somos compelidos a crer nas narrativas a fim de nos situarmos no Real com o pouco tempo que nos resta no cotidiano, e somos instigados nas redes a crer que existe um outro mundo em que as pessoas possuem as mesmas crenças. Porém confrontados com a atualidade lá fora, a contradição se esbanja e o sujeito recorre ao ódio ou indiferença como ferramentas para construir sua performatividade e posicionamento político sem destruir toda a heurística de seu pensamento, se recusando a acreditar que suas crenças não refletem a realidade. Como teorizar tal multiplicidade de contradições?
Sobre o admirável mundo novo, e como deveríamos nos situar nele
Hoje, pós-históricos, renegamos uma forma de situação no mundo que privilegia a linearidade história (contiguidade de acontecimentos cuja semântica deriva de sua irreversibilidade e ininterruptabilidade) em detrimento de um situacionismo relativista cuja explicabilidade metodológica suplementa a ausência de contiguidade, e, portanto, não se necessita saber dos acontecimentos de ontem para compreender o hoje, basta uma explicação suficiente. O emprego de imagens técnicas se traduz pela utilização de uma imagem e de um texto: situação imagética e explicação textual linearizam o conteúdo e situam o sujeito em um contexto suficiente. Não se expõe a realidade, mas sim uma face de uma complexidade multifacetada. Se explica o necessário para a condução da interpretação desejada: não há contracampo, a tecnoimagem possui suficiência interpretativa.
Toda imagem técnica explica o necessário para a compreensão de seu conteúdo, ou seja, relações imediatas de significação e contiguidade que justifiquem determinada interpretação, situação, forma de retratar. Assim, o sujeito não precisa conhecer a história para poder compreender aquilo que se diz: está tudo aí. Tal forma de alienação histórica presente neste meio de comunicação não somente explica o paradigma pós-histórico como também o ecossistema das redes como um reino sem tempo: a lógica do hyperlink implode a linearidade histórica como explicação causal, fazendo com que o sujeito privilegie conexões semânticas, uma explicação que constrói em si a história da imagem.
Tal é o paradigma descrito como pós-verdade, na qual a manipulação dos fatos se faz não somente como uso político, mas está implicitamente introjetado nos modos de expressão e cognição. Nossa conjuntura contribui para que a maneira pela qual nos informamos nos leve a considerar narrativas pessoais como relatos factuais, crendo em informações sem antes reflexão histórica. O que tentamos mostrar a partir desta incursão teórica é que o referido paradigma pós-histórico contribui em grande medida para que o conceito de verdade seja relativizado, bem como nossa forma de situação no mundo que não mais se baseia em verossimilhança, mas sim uma semântica apelativa e congruente com a heurística do sujeito.
Enfim, a questão que orienta o presente trabalho se refere a situação dos sujeitos em ambientes digitais frente às novas técnicas de produção imagética, através das quais explicações sobre a realidade podem ser forjadas sem a ciência de quem interpreta. Em grande medida, se antes um evento deveria ser testemunhado por observadores para ser comunicado, hoje pouco importa quem viu, ou o que viu. Mais importante é a forma de se comunicar a informação; e para o sujeito, qual informação será consumida, se ela convalida crenças a priori ou se quebra com a heurística individual. Para tanto, a metodologia referente à produção da informação se torna alvo central para nossa problemática, visto que a correspondência imagem-realidade se esfacela frente aos novos métodos de construção de imagens técnicas.
A imagem agora passa a referenciar e representar uma construção lógica e conceitual, uma justaposição de significados que produzem uma cena, um momento, um evento. Isso implica em grande medida que a linguagem factual também deixou de ser denotativa e se tornou conotativa: referência subjetiva, aproximada, metafórica, sem referente atual-factual. Amplificando a relatividade significante das tecnoimagens, como tais procedimentos técnicos fabricam significados precisos? Encontramos a resposta nas redes: forma-se uma trama de relações de significação que o sujeito se insere, de forma que uma dupla interpretação se articula com outra imagem técnica e produz assim relações lógicas de inferência, portanto, determinação precisa de significado por contexto semântico e relação sintática.
Como uma rede de simulacros, instaura-se uma heurística coletiva nas redes: um conjunto de informações que possuem ligação de hyperlink entre si, podendo saltar de um a outro com a dinâmica do acesso por cliques e palavras-chave indexadoras. Aliado ao poder de recomendação de algoritmos, um indivíduo facilmente consegue criar sua base de pensamento referente às informações dessa maneira absorvidas. O significante de mundo presente na mente do sujeito é modelado segundo operações matemáticas de curva padrão que instauram sobre as hecceidades uma planificação massificadora que não somente elimina as peculiaridades de uma individualidade, como também cria uma superfície de registro coletiva sobre a qual uma mediana interpretativa se forma. Diferente do senso comum, possui velocidade de mutação muito mais acelerada e é fortemente influenciada por procedimentos técnicos de cibernética e computação de dados.
A partir daí o sistema de conotação faz referência a essa trama significante em rede que homogeneíza os referentes das imagens técnicas. Isso mais se assemelharia à constituição de um novo dicionário e um consequente sistema denotativo, caso houvesse apenas uma trama. A cada bolha, ou diferentes categorias de classificação de indivíduos, um tipo de heurística digital se forma, permitindo que memes sejam interpretáveis somente dentro de uma trama. Isso constitui, enfim, um significante de mundo para cada nicho digital, quebrando com o processo de construção da verdade —e sua premissa principal de verossimilhança, que pressupõe que todos habitam o mesmo mundo, com as mesmas explicações causais—. Podemos aproximar a verdade hoje de um estatuto virtual: em potência, a verdade pode ser qualquer fato concebido, a depender de sua atualização. Atualizada, verdades concorrerão entre si para adquirir cada vez mais potência, maior possibilidade de estratificação na história.2
Neste caso o conceito de verdade adquire utilidade comunicacional. Parhésia (Foucault, 2017) implica em falar a verdade frente às consequências, imbui ética na informação, desvela um mundo por sob os simulacros; em contrapartida, hoje o dizer verdadeiro é pressuposto do discurso na pós-verdade —senão é fake news—, o que implica que não há nada a ser revelado, uma verdade obscura; e aquele que a revelar será perseguido (caso WikiLeaks).3 Tal relativização da verdade elimina seu estatuto ontológico, transformando-a em ferramenta discursiva, potencializadora de engajamento (caso Choquei)4 que nada tem a contribuir com o processo social de validação dos fatos perante a história. Tornou-se comum a expressão ‘vamos ver o que a história dirá’, com a pretensão de pensar que no futuro, e somente com o tempo, que a verdade virá à tona.
Os regimes de verdade se consolidam mediante retroalimentação dos saberes de uma época com as instituições e atores em poder, muito para gerar consenso sobre os fatos e os modos de ser e viver. Tal busca é infindável, e cada época tem sua jornada e procedimentos de verificação. O que hoje vemos, entretanto, é uma banalização daquilo que teria impacto social para uma condição factual, informação a ser comunicada sem impacto na vida do indivíduo, em sua narrativa pessoal. A tal ponto que, fruto da usabilidade das redes sociais, nos condicionamos a nos expressar constantemente em plataformas digitais, e inundar nossas redes sociais com conteúdo. O problema surge quando o mesmo dispositivo utilizado para se comunicar socialmente se funde ao utilizado para obter informações relevantes. Para que um veículo de notícias sobreviva nas redes sociais, qualquer manchete vira notícia para gerar engajamento.
Fruto das técnicas de produção e manipulação de informação por interface visual em dispositivos, conseguimos escrever, fotografar, fazer colagens de imagens, e mais uma infinitude de máquinas digitais esperando para serem baixadas em um dispositivo, postas a funcionar, processando informação e produzindo conteúdo. Enfim, produzimos uma miríade de informações sobre nós mesmos com a premissa de sermos sociáveis, interagir em redes com amigos, conhecidos, simpatizantes de causa. A realidade nua e crua é que todos esses processos foram cooptados por uma simples mecânica: mais-valia comportamental (Zuboff, 2019) extraída dos dados que produzimos enquanto sociabilizamos. Tais dados alimentarão algoritmos que, dentre muitas tarefas, incentivarão a circulação financeira pelas redes. Follow the Money (siga o dinheiro): anúncios e profiling5 são as atividades mais lucrativas das plataformas digitais, o que implica publicidade, marketing direcionado, comércio eletrônico e serviços de assinatura.
O que mais se deseja, portanto, é produção de dados, informação e conteúdo. Fomos convidados a nos expressar tanto, a todo o momento, que sequer temos tempo de pensar se o que produzimos de fato merece ser comunicado. Situamo-nos no mundo, percebemos as coisas, e comunicamos em sociabilidade uma visão de mundo, que culturalmente se modela na perspectiva de uma nação. A questão não é precisamente o quanto nos expressamos, mas sim a forma como temos acesso à expressão alheia, seu volume e velocidade, seu choque com nossas heurísticas. Ainda em experimentação, nossos modelos sociais no digital gradualmente transformam a forma como historicamente lidamos com a informação, a comunicação e nosso conceito de verdade. Isso produz uma grande responsabilidade sobre a forma como os indivíduos interagem com a realidade e se situam nela.
A partir disso, não há método preciso ou valor definido que orientem nossas ações futuras, visto que não temos o tempo necessário de reflexão sobre as novas atualizações de plataformas antes de utilizá-las. Para isso, colocamos três problemáticas que julgamos essenciais para orientar nossa utilização das plataformas digitais. A primeira é a possibilidade de o sujeito tomar fantasias por realidades, sem os procedimentos corretos que diferenciem um do outro. Por consequência, o indivíduo ao acreditar em mentiras, cria uma trama semântica de simulacros, que acabam por servir de heurística, base de interpretação da realidade. Por fim, isso altera a ontologia do conceito de verdade para seu estatuto virtual, potencial, no qual quaisquer fatos, dada as relações semânticas suficientes, podem vir a ser considerados como verdadeiros.
Considerações
Como experimentadores dessas novas mediações digitais, nos engajamos orgulhosamente no progresso da comunicação sem antes refletir sobre suas consequências nos modos de sociabilidade. Hoje, vemos que acabamos segmentando o mundo segundo diversas cosmologias, formas de explicar o mundo e seus movimentos, todos incongruentes entre si e com a realidade compartilhada. Da mesma forma que devemos cobrar uma responsabilização das companhias que administram tais sítios nas redes, poderíamos começar a construir uma moral e uma ética que possam guiar os sujeitos para um uso mais consciente das plataformas de comunicação. Talvez um primeiro princípio seja valorizar o silêncio como forma de refletir antes de falar, quebrando com a alimentação constante de informações pessoais nas plataformas, para que o que se diga seja relevante.
Se percebermos que nossos comportamentos são fortemente influenciados por técnicas de produção de mais-valia comportamental, por que ainda insistimos em nos entregar de corpo e alma à constante expressão que nossos avatares exigem? Talvez ainda haja algo de valor quando baixamos os celulares e olhamos para frente, uma realidade a ser descoberta pela ótica do sujeito, que acabe por construir nele uma subjetividade cidadã, crítica e ética. Ao mesmo tempo em que cobrar das plataformas o desenvolvimento de novas arquiteturas e ferramentas que atenuem as problemáticas aqui levantadas pode ser um pontapé inicial na atual discussão sobre sua regulamentação, cremos que existe potencial inaudito na conscientização dos sujeitos para o uso cidadão de tais serviços.
Por fim, ao tentar responder o problema que endereçou o presente trabalho, não encontramos solução óbvia, muito menos método para solução. Percebemos, entretanto, uma retroalimentação entre diversos fatores elencados que demonstram que o comportamento do sujeito exerce papel essencial na manutenção dessa organização social, possibilitando que uma intervenção moral e ética na utilização das plataformas pode ser uma saída inteligente, e através do ensino e conscientização sobre o funcionamento dessa realidade, poderemos compreender o mundo que nos cerca e agir de acordo.
Referências
1.Baudrillard, J. (1991). Simulacros e simulação. Editora Relógio d’Água.
2.Deleuze, G. (2017). Michel Foucault: as formações históricas. N-1 Edições e Politeia.
3.Didi-Huberman, G. (2013). A imagem sobrevivente: a história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Contraponto.
4.Flusser, V. (1994). Para além das máquinas (trad. G. Bernardo). Herder. http://www.geocities.ws/vilemflusser_bodenlos/textos/paraalemdasmaquinas.pdf.
5.Flusser, V. (2002). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Relume Dumará.
6.Flusser, V. (2011). Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. Annablume.
7.Foucault, M. (2017). A história da sexualidade III: o cuidado de si. Paz & Terra.
8.Heidegger, M. (2012). Ser e tempo. Editora Vozes.
9.Peirce, C. (1991). Peirce on signs: writings on semiotic by Charles Sanders Peirce. North Caroline University Press.
10.Peirce, C. (2005). Semiótica. Perspectiva.
11.Simondon, G. (2020). A individuação à luz das noções de forma e de informação. Editora 34.
12.Uexkull, J. (1934). A stroll through the worlds of animals and men. International Universities Press.
13.Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Public Affairs.
1Pois é precisamente quando a fotografia se instaura como método de representação da realidade que o impressionismo se desenvolve para a libertação dos artistas de uma função pragmática da pintura; agora a pintura se via liberta para representar outros mundos, ou oferecer lentes que aparelho fotográfico algum poderia permitir ver.
2Não apontamos o ineditismo de tal fenômeno visto que a verdade sempre passou por este procedimento de validação. A diferença se coloca quando, hoje, os procedimentos de atualização da verdade são segmentados em diversos nichos que permitem sua atualização concomitantemente, em volume e velocidade acelerados.
3Julian Assange, fundador do WikiLeaks, desde 2010 vem sendo perseguido mundialmente pela polícia dos eua pelo vazamento de documentos legítimos da segurança. Expor a verdade tem suas consequências quando ela tem o potencial de mudar o curso dos eventos.
4O veículo Choquei (presente em diversas mídias digitais) se utiliza da narrativa da verdade mais rápida como forma de gerar credibilidade e potencializar engajamento, pois não há confirmação para muitas informações ali publicadas, sendo uma mistura entre fofocas e fatos, que se misturam sem distinção precisa do receptor da mensagem.
5Profiling é o nome dado ao ato ou processo de extrapolar informações sobre uma pessoa com base em características ou tendências conhecidas, ou seja, consiste em reunir informações sensíveis sobre uma pessoa para sua categorização em diversas minúcias que geralmente são destinados à segmentarização de público-alvo para anúncios.
Para citar este artigo: De Barros Moon, R. M., & Gobbi, M. C. (2024). Dasein digital: o significante de mundo e sua verdade virtual. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 17(2). https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13971