Ensayos
OS NOVOS HÁBITOS CULTURAIS NO ECOSSISTEMA DOS WEARABLES
Nuevos hábitos culturales en el ecosistema de los wearables
New Cultural Habits in the Wearable’s Ecosystem
Eduardo Campos Pellanda, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (pucrs) (Brasil)
Mágda Rodrigues da Cunha, Humans Connected Lab (Brasil)
Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social "Disertaciones", vol. 17, núm. 2, pp. 1-11, 2024
Universidad del Rosario
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial 4.0 Internacional.
DOI: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13962
Recebido: 4 de dezembro de 2023
Aprovado: 21 de fevereiro de 2024
Data de pré-publicação: 17 de maio de 2024
RESUMO
As tecnologias vestíveis desenham novos hábitos culturais contemporâneos. Muitos são os fatores que levam a estas transformações e elas não ocorrem em prazos de tempo curtos, mas se constroem na soma de camadas que envolvem interesses do público e oferta da indústria. Uma revisão da bibliografia mostra que a presença do som, com o uso rotineiro de fones, em um contexto no qual as imagens se mostravam hegemônicas, se constitui em um destes hábitos que marcam mudanças graduais de consumo. No ambiente da mídia, são criadas tecnologias destinadas à apropriação individual do áudio. O aprendizado, que já vem também da pandemia, se confirma para o futuro, em aspectos nos quais os sujeitos estão sempre ativos, amplificando ou cancelando o mundo ao seu redor.
Palavras-chave: wearables; mobilidade; ecossistema midiático; hábitos culturais.
RESUMEN
Las tecnologías portátiles dan forma a nuevos hábitos culturales contemporáneos. Hay muchos factores que conducen a estas transformaciones y no ocurren en cortos períodos, sino que se construyen sobre la suma de capas que involucran intereses públicos y oferta industrial. La revisión de la bibliografía permite contrastar que la presencia del sonido, con el uso rutinario de los auriculares, en un contexto en el que las imágenes eran hegemónicas, constituye uno de esos hábitos que marcan cambios paulatinos en el consumo. En el entorno de los medios, se crean tecnologías destinadas a la apropiación individual del audio. El aprendizaje, que también proviene de la pandemia, se confirma para el futuro, en aspectos en los que los sujetos están siempre activos, amplificando o anulando el mundo que los rodea.
Palabras clave: wearables; movilidad; ecosistema mediático; hábitos culturales.
ABSTRACT
Wearable technologies shape new contemporary cultural habits. There are many factors that lead to these transformations, and they do not occur in short periods of time but are built on the sum of layers involving public interests and industrial supply. A review of the bibliography shows that the presence of sound, with the routine use of headphones, in a context where images were hegemonic, constitutes one of those habits that mark gradual changes in consumption. In the media environment, technologies are created for the individual appropriation of audio. Learning, which also comes from the pandemic, is confirmed for the future, in aspects in which the subjects are always active, amplifying or annulling the world around them.
Keywords: Wearables; mobility; media ecosystem; cultural habits.
As linguagens (texto, áudio, imagem) no ecossistema da mídia organizam-se, historicamente, conforme as plataformas de distribuição de conteúdo e este desenho torna-se mais complexo a cada momento de transformação tecnológica, especialmente a partir da apropriação dos sujeitos. O áudio, no processo que reúne tecnologia, informação e o público, tem papel fundamental. Neste trabalho, o objetivo é analisar o que denominamos —tendo como base nossas investigações sobre indivíduos e conexão com tecnologias de comunicação— a expressiva presença do som em um contexto de imagens, com foco no uso rotineiro de fones em um hábito cultural contemporâneo. Isto já se evidenciava antes da pandemia da Covid-19 e ganhou força pela demanda de consumo individual de informação. A reflexão está apoiada em três eixos: a expansão do áudio em um contexto no qual as imagens se mostravam hegemônicas,1 no ambiente da mídia, o desenvolvimento de tecnologias destinadas ao consumo individual de áudio2 e o aprendizado ocorrido na pandemia e que se consolida para o futuro. São aspectos que desenham um novo hábito cultural no qual os sujeitos estão allways on, amplificando ou cancelando o mundo ao seu redor. É possível filtrar, escolher sons e frequências específicas, pelo uso intenso de fones, em situações diversas, simultâneas a outras atividades, inclusive ao consumir imagens.
Esse desenho tem raízes no rádio, com características de uma máquina social, que permite experiências individuais. O poder do rádio de envolver as pessoas em profundidade se manifesta no uso que propicia um mundo particular próprio, em meio às multidões (McLuhan, 1964). O uso de fones, no atual contexto de mídia, também segue o modelo de evolução radiofônico, ao oferecer uma experiência individual. A invenção do transistor torna o rádio uma tecnologia condizente à mobilidade da voz.
Por conta do interesse em tornar a voz móvel, no que era possível naquele contexto tecnológico, as possibilidades se ampliam. Shirky (2011) afirma que as motivações humanas mudam pouco ao longo dos anos, mas as oportunidades mudam pouco ou muito, dependendo do ambiente social. Quando a oportunidade muda muito, o comportamento faz o mesmo, desde que as oportunidades sejam atraentes para as verdadeiras motivações humanas. Dos estudos de McLuhan sobre o rádio como experiência imersiva e de mobilidade da voz, muitas mudanças ocorreram em um mundo no qual tudo é mediado (Hidalgo et al., 2020). Na transição digital, quando o smartphone assume o papel de protagonista no uso de tecnologias pessoais, há a introdução de diversos novos motivos para a propagação do áudio. Isto, alinhado aos fones sem fio e ergonômicos nos ouvidos, potencializou um novo tipo de uso. A mídia se multiplica na vida cotidiana, tornando-se ubíqua, está em todo o lugar e é pervasiva, não pode ser desligada (Deuze, 2012). No entanto, viver na mídia, para Deuze (2012), não é o mesmo para todos.
O hábito cultural do uso de fones rotineiramente traz do rádio a experiência individual, mas permite, numa sociedade repleta de inputs e especialmente imagens, uma vida na mídia filtrada, em certa medida, pelo sujeito consumidor. Neste sentido, a indústria já se movimenta para encontrar alternativas.3 Não só ouvir, mas filtrar os sons pode ser o novo paradigma neste contexto de sons e imagens em larga escala.
Wearables: a tecnologia para vestir
Múltiplos são os fatores que, na trajetória dos aparatos, chegam ao que se denomina uma tecnologia vestível. A proximidade como extensão torna-se distância se, sob algumas perspectivas, os sujeitos e seus dados passam a ocupar os ambientes de circulação de informação. Na reflexão aqui proposta entende-se que os aparelhos para consumo de áudio são aperfeiçoados pela indústria em um contexto no qual o consumo de imagens se expande. Este movimento responde a perguntas dos usuários para imergir ainda mais no ambiente onde os sujeitos compartilham incansavelmente seus dados. Considera-se a construção de um cenário de consumo e escolhas coletivas e individuais, filtrando cada vez mais a realidade no entorno e vivenciando a simultaneidade de possibilidades de acesso. Tais fatores combinados levam com o aprendizado a hábitos culturais que se atualizam permanentemente em camadas.
A convergência de fatores como a miniaturização de componentes eletrônicos com a expansão dos conteúdos de streaming, podcast ou vídeo conferências fez com que houvesse um espaço para dispositivos individuais de interação por áudio. Com uma média diária de 7 bilhões de mensagens de áudio4 na plataforma WhatsApp, o uso de comunicação usando esta linguagem é evidente. Este uso prolongado de tais aparelhos exigia que fossem melhor incorporados ao corpo na forma de ‘vestir’. Para tanto, a subtração de qualquer tipo de fio era um objetivo de desenho de produtos que até o começo da década de 2010 parecia difícil de materializar.
Em 2015 a empresa Braggi5 foi uma das pioneiras em produzir dois fones de ouvido que tanto se comunicavam sem fio, com um dispositivo tipo smartphone, como também entre os fones do lado esquerdo e direito do ouvido. Nascia um novo design de aparelhos que se conectavam ao ouvido de forma muito semelhante aos aparelhos de correção de audição. Era possível usar o dispositivo eletrônico por um longo tempo sem perceber.
Em setembro de 20166 a Apple lançou os AirPods e aprimorou as tecnologias wireless ao inaugurar uma estabilidade de conexão similar ao uso de aparelhos com fio. Em 2017, a empresa obteve usd 1,76 bilhões7 em receita, o que resultou em elevações subsequentes até chegar em 2022 com usd 14,5 bilhões em receita. A estimativa é de que mais de 100 milhões de AirPods estejam em uso.8 A categoria wearables, somada aos Apple Watches, foi a que mais representou crescimento na empresa. Ainda em 2017, o ceo da Apple, Tim Cook, denominou os AirPods como “fenômeno cultural”9 pelo fato de as pessoas serem observadas ‘vestindo’ o aparelho nas ruas e em ambientes públicos. Neste ponto houve a transição do conceito de fones de ouvido, usados pontualmente para uma tarefa ou o consumo de determinado conteúdo, para um dispositivo que está acoplado aos corpos como roupas. O smartphone, porta de entrada para os conteúdos online, já induzia ao hábito de consumo individualizado, que com os AirPods se potencializou para além do conteúdo visual.
O passo evolutivo seguinte foi a transformação dos AirPods em plataformas computacionais que incrementam novas funcionalidades com potencial de transformação e amplificações dos usos inicialmente propostos. Possibilidades como o bloqueio ativo de ruídos em volta do usuário tornaram possível a criação de uma espécie de bolha de silêncio mesmo em lugares como aviões ou ruas movimentadas. A função recente, de poder filtrar sons como sirenes ou voz humana, permitiram o rompimento deste silêncio em caso de interações com os indivíduos ou ambientes ao redor. Esta tecnologia se assemelha, no campo do áudio, ao que os óculos de realidade aumentada (ra) criam na linguagem visual. A interpolação ou supressão de objetos virtuais ou reais em uma combinação que modifica a percepção de realidade.
As transformações do ambiente
A abordagem sobre percepção da realidade está cercada de diversas variáveis. Busca-se aqui organizar o pensamento a partir da lógica de ecossistema, uma vez que, para chegar ao estágio atual de análise, muitas camadas históricas se somaram em tecnologias, apropriações e transformações. O grau de complexidade amplia-se a cada mudança, soma de um novo objeto ou demanda e interfere na totalidade do sistema. Logan (2015) relembra que um sistema ecológico, tradicionalmente, se referia a um sistema biológico, um ambiente natural físico e os organismos vivos que nele habitam. Já o ecossistema de meios é composto por seres humanos, os meios e as tecnologias de comunicação pelos quais interagem e se comunicam.
A ecologia da mídia é uma teoria generalista, que procura abarcar quase todos os processos das teorias da comunicação, desde as relações entre os meios e a economia, até as transformações perceptivas e cognitivas dos sujeitos a partir de sua exposição às tecnologias da comunicação (Scolari, 2015). Não se concentra em nenhum meio em especial ou em um período de tempo limitado e sua reflexão começa com a aparição da linguagem. Scolari (2015) ressalta que a ecologia segue com a transição da oralidade à escrita, chega aos nossos dias da vida digital e, muitas vezes, não desiste de traçar cenários futuros. Por isso, refletir sobre os hábitos e as rotinas da comunicação, a partir apenas de um eixo ou um comportamento do usuário, torna-se cada vez mais difícil, uma vez que muitas variáveis estão entrelaçadas e tornam o processo complexo. Quando abordamos um hábito cultural, por exemplo, temos as linguagens e a elas somam-se as plataformas.
Os ciclos das linguagens poderiam ser descritos a partir de sua associação aos meios tradicionais como jornal, rádio e televisão e posteriormente a web, somando-se ao que se desenvolveu no seu entorno e as chamadas “new things” que se constituem na sequência, como apontam Hidalgo Toledo et al. (2020). Estes novos objetos cercam a audiência onde quer que esteja e levam à ruptura das fronteiras de tempo e lugar. Ampliam-se as discussões da informação móvel, quando as escolhas também se dão relacionadas à possibilidade de consumo conforme a localização. No entanto, dada a complexificação crescente do processo, observar uma organização linear impõe o risco de superficialidade. Desde o período pós Segunda Guerra, com o desenvolvimento da televisão, circulação nas grandes cidades, ampliação das tecnologias móveis de comunicação, o movimento é intenso no ambiente de mídia. A audiência, de certa forma, reduz o consumo de tv e amplia a preferência para serviços de streaming, o que juntamente com conteúdos audiovisuais, tem um salto desde o primeiro ano da pandemia do Covid-19. Foi estimado um número perto de 1 trilhão de horas10 dedicadas ao consumo de vídeos nos aparelhos móveis.
Levinson (2015) analisa os princípios da evolução dos meios e cita o cinema mudo e o rádio como exemplos, o primeiro de perda de sentido e o segundo de permanência. Em efeitos práticos, pensa o autor, isto pode significar que escutar sem ver, aparentemente, é um meio mais adequado do que ver sem escutar. Os meios evoluem na direção do mundo pré-tecnológico, ou seja, o som sem imagens nos meios reflete algum elemento essencial da comunicação da vida real.
En el mundo pretecnológico, escuchar sin ver es algo común y fisiológicamente práctico. Para escuchar sin ver tan sólo debemos cerrar los ojos. Utilizamos este método cada vez que un sonido nos despierta —y, en la práctica, cuando escuchamos relatos en la oscuridad, oímos a escondidas lo que se cuece en la habitación de al lado, ladeamos las orejas para escuchar qué sucede detrás de una colina, etcétera—. Por el contrario, ver sin escuchar es fisiológicamente incómodo y prácticamente inaudito en el ambiente natural: en el mundo real, la vista se acompaña casi siempre de un sonido simultáneo. (Levinson, 2015, cap. 12, sec. 1, para. 3)
Em resumo, o rádio sobrevive porque se aproxima de um método de comunicação pré- tecnológico, a exemplo do princípio geral da evolução dos meios, diretamente proporcional a sua proximidade com o ambiente de comunicação humano pré-tecnológico. Mas se os meios evoluem próximos de uma gradual réplica do mundo real, como aponta Levinson (2015), o que se observa, nos primeiros anos pós-pandemia, pelo uso de dispositivos para ouvir, é uma concomitância de hábitos que bebem no período pré-tecnológico, somam as camadas históricas na construção de uma cultura e reposicionam linguagens no ecossistema. Ouvir, por conta das possibilidades de eliminar ‘o ver’, retoma um espaço relevante exatamente pelo excesso desta demanda por ‘ver’, necessário ao entendimento das informações, que espalhou-se por todo o ambiente. Para ampliar as possibilidades, os sujeitos voltam-se à audição por sua proximidade com a vida real e por abrir nova camada de informação simultânea às imagens. Neste caso, não podemos afirmar que se trata da sobrevivência de um meio, mas da ressignificação de uma linguagem para atender a interesses de apropriação da audiência. O áudio assume um novo sentido no ambiente da mídia e no contexto social, por contribuir com novos formatos de percepção da realidade.
Com o desenvolvimento do ecossistema que reúne estes fatores, o ambiente foi ganhando nuances cada vez mais específicas. Em uma determinada época era possível separar cada linguagem, associada à plataforma que melhor lhe coubesse e ainda dialogasse com o momento mais adequado do dia para consumo. A própria mobilidade, descrita inicialmente a partir do transistor e também do áudio, como linguagem que permite a simultaneidade, oferece na sua transformação, que chega aos smartphones, múltiplas possibilidades, cruzando horários, lugares e especialmente interesses. Neste avançar, que vai somando camadas de oferta e apropriação, constroem-se os hábitos e na mesma medida se constitui a cultura.
Logan (2019) discute as transformações da existência na mídia, a partir do conceito original de McLuhan. O autor descreve uma reviravolta, a partir da mídia digital, e defende que neste ambiente os sujeitos se tornam uma extensão, pois seus dados são recolhidos e usados em múltiplos interesses, levando inclusive a questionamentos sobre as implicações da perda de privacidade. Neste ponto Logan (2019) faz uma aproximação com a ideia de utensílios usados pela humanidade ao longo da história, como extensões do próprio organismo, para suprir lacunas, com existência independente. Os sujeitos, por intermédio dos seus próprios dados, circulam no processo, reduzindo a dimensão da extensão e ampliando a existência como conteúdo.
O que se observa, no processo de transformação, é um ambiente em que dados e utensílios se somam. A partir do pensamento mcluniano, ao qual se refere Logan (2019), a mídia ocupava o espaço de utensílio para o consumo de informação. Com o desenvolvimento, especialmente do ambiente digital, na entrega de dados permanentemente, seja por conteúdo ou apenas um like, não existe mais existência independente. Neste texto, a proposição é de que na soma de camadas históricas, em diálogo com os interesses de apropriação, cada vez mais os sujeitos submergem no ambiente de dados que eles mesmos oferecem em circulação, filtrando o mundo externo. Se consumir imagens exige atenção visual, mergulhar no ambiente auditivo quando se faz qualquer outra atividade, oferece à ação a possibilidade de consumo simultâneo e paradoxalmente isolamento ou filtro.
Nesse sentido, estabelecendo um cruzamento com Levinson (2015), é possível descrever a existência de outro nicho ecológico humano, na soma de imagem, áudio e dados, por uma aproximação satisfatória do mundo pré-tecnológico. Mais ainda, como refere o próprio autor, não se trata de mera recuperação do ambiente pré-tecnológico, mas de uma ampliação, para além de seus limites biológicos originais, por preservar, ao mesmo tempo, sua capacidade de extensão. A discussão proposta por Levinson (2015) se relaciona à sobrevivência de alguns meios e ao caráter evolutivo destas transformações, reunindo linguagens e tecnologias. Aqui, buscamos alguns aspectos que interessam à discussão, especialmente na construção sobre hábitos culturais, em diálogo com as motivações do público em apropriar-se dos aparatos.
Plataformas e motivações
As plataformas não são neutras e nem isentas de valor, como analisam Van Dijck et al. (2018). Trazem, no entanto, em suas arquiteturas, normas de valores específicos. Nesta organização se desenham as interações entre os usuários finais, mas também pessoas jurídicas e órgãos públicos, voltando-se à coleta sistemática, processamento algorítmico, circulação e monetização de dados do usuário, o que coincide com o pensamento de Logan (2019), quando avança na discussão sobre as extensões propostas por McLuhan.
Shirky (2011) ao escrever sobre o excedente cognitivo, definido como o tempo livre dos cidadãos escolarizados do mundo, a partir das transformações ocorridas desde a Segunda Guerra Mundial, aponta que os meios para direcionar isto são agora as novas ferramentas que recebemos, mecanismos que possibilitam e recompensam a participação na mesma medida. As motivações para usar essas ferramentas são as antigas e intrínsecas que, antes mantidas na esfera privada, agora estão irrompendo em público. Para se transformar em algo real, este potencial natural ainda precisa de oportunidades que sejam atraentes para as verdadeiras motivações humanas.
Nesse ambiente, pensa Shirky (2011), o caráter humano é o componente essencial do comportamento sociável e generoso, mesmo quando coordenado com ferramentas de alta tecnologia, que possibilitam esses comportamentos, não podem causá-los. “Muitas histórias que contamos a respeito das ferramentas que usamos são na verdade histórias sobre a motivação humana” (Shirky, 2011, p. 92).
Os hábitos e a cultura
O que observamos até aqui é a construção de um ecossistema ao qual somam-se camadas diversas, com motivações múltiplas de apropriação e que vão, a cada etapa, gerando transformações. Entrelaçando-se a estes movimentos constroem-se hábitos que atuam no desenvolvimento da cultura e assim sucessivamente.
Hábitos, conforme analisam Cristo e Günter (2015), sob a perspectiva da psicologia, podem ser apontados como comportamentos aprendidos que, após várias repetições, tornam-se automáticos, com pouca ou nenhuma deliberação do indivíduo. A importância deste automatismo para o ser humano é a sua utilidade na obtenção de algum resultado ou objetivo sem tomar novas decisões o tempo todo. Ao mesmo tempo, alivia o esforço cognitivo do indivíduo de ponderar sempre os prós e os contras das mais diversas situações. A partir da análise de artigos científicos, os autores refletem sobre o hábito como um tipo de automatismo. Concluem que a complexidade dos esforços para influenciar a intenção de comportamento pode ser em vão devido às peculiaridades inerentes a esses comportamentos. “Assim, quando os comportamentos são realizados frequentemente e se tornam habituais, eles são menos guiados pela intenção e vice-versa, pois o hábito diminui a necessidade de obter informações para poder julgar e decidir” (Cristo & Günter, 2015, p. 234).
O hábito é, portanto, concluem os autores, um construto psicológico que vai além da simples história de repetição do comportamento. É necessário que existam outras características como a automaticidade, a constância situacional e a funcionalidade. Neste ponto, Cristo e Günter (2015) somam a sua reflexão algo fundamental para este texto, aspecto já destacado por Shirky (2011): a motivação dos sujeitos na relação com as apropriações. Sem isto, como na adoção de tecnologias ou plataformas de comunicação, o pensamento estaria alinhado ao determinismo.
Comportamentos habituais, menos guiados pela intenção ou julgamento, no interesse do consumo de informação com menor esforço, no conjunto, junto às demais variáveis já abordadas, atuam na construção da cultura. Barthes (1988) aponta que o homem precisa dessa cultura que é tudo e é também linguagem. Relacionadas a certas regras que vêm de uma lógica milenar da narrativa, constituem os sujeitos antes mesmo do nascimento. Autores e leitores não são mais do que uma passagem desse imenso espaço cultural (Barthes, 1988).
Já ao pensar sobre uma cultura participativa, Jenkins et al. (2016) buscam em Williams (1958) a ideia da cultura como algo “comum”, na “soma total da experiência humana”, tudo o que, como humanos, indivíduos criam ou fazem juntos, desde os aspectos mais simples da vida cotidiana até as realizações artísticas ou crenças sagradas. Logo, a cultura participativa, para Jenkins et al. (2016), descrevem aspectos por vezes muito comuns da vida na era digital.
Os públicos se fazem nitidamente presentes ao modelarem ativamente os fluxos de mídia. Paralelo a essas práticas populares de audiência, Jenkins et al. (2014) reconhecem o surgimento de uma ampla variedade de ferramentas de comunicação online para facilitar o compartilhamento informal e instantâneo. Alertam, no entanto, que não é possível supor que meios mais participativos de circulação possam ser explicados exclusivamente pelo surgimento da infraestrutura tecnológica.
“Nossa abordagem não supõe que as novas plataformas liberem as pessoas das velhas limitações, mas, em vez disso, sugere que as facilitações da mídia digital funcionam como catalisadoras para reconceituação de outros aspectos da cultura, exigindo que sejam repensadas as relações sociais” (Jenkins et al., 2014, p. 25).
Observa-se um contexto de demandas e motivações por consumo de informações que circulam em abundância. Nascem as respostas que se organizam por ofertas da indústria, que por sua vez estão presentes na construção de hábitos cotidianos e que acabam por construir ou transformar a cultura. Chega-se a um ponto que questiona pela adição de outros conceitos que possam dar conta da interpretação destes fenômenos cuja complexidade se expande.
Uma relação amorosa
Nessa trama soma-se o amor à mídia, como proposta de Deuze (2022). Se uma vida na mídia (Deuze, 2012) já não é suficiente, ao estudarmos as pessoas e os seus dispositivos midiáticos, a forma como respondem e dão significado às mensagens mediadas ou como atuam profissionalmente em comunicação, estamos estudando o amor (Deuze, 2022). Mesmo sendo ubíqua e pervasiva, presente e permanentemente ligada, a vida na mídia não é igual para todos (Deuze, 2012).
Deuze (2022) defende que a maioria dos problemas reais ou percebidos associados aos meios de comunicação social e à comunicação (de massa) se beneficiariam de uma articulação mais explícita com o amor, concebido de forma ampla e que isto não negaria abordagens, teorias ou métodos existentes, mas acrescentaria um repertório significativo de possíveis hipóteses, histórias e explicações ao campo. Justifica esta sugestão num momento em que o mundo, como descreve, está abalado profundamente por uma pandemia paralela e uma infodemia. Este mundo precisa dos cientistas da comunicação para nos ajudar a explicar o que perdemos, e possivelmente ganhamos, por ficar em casa, gerenciando a complexidade.
Entre os exemplos, Deuze (2022) concentra suas atenções no período da pandemia e ressalta que especialmente durante a crise global do coronavírus de 2020 (e em diante), temos testemunhado variações do “amor mediático” com destaque para os vários confinamentos, políticas e experiências de protocolos de distanciamento social em todo o mundo. Cita o crescimento exponencial das videochamadas e dos serviços de streaming (para jogos, filmes e televisão) que permitem ligações e experiências partilhadas. Outro exemplo é o rápido uso da telemedicina e da saúde digital, como aplicações de rastreio de contatos em smartphones, além das campanhas de hashtags e de ativismo nas redes sociais —incluindo #StayHomeStaySafe e #YoMeQuedoEnCasa—.
Deuze (2022) relembra que nos últimos anos tornou-se evidente para muitos, se não para a maioria dos acadêmicos, que os meios de comunicação e a comunicação de massa não agem apenas sobre processos estabelecidos na sociedade, mas também ajudam a criar rotinas dentro e através das instituições da sociedade. A midiatização do amor, por sua vez, se manifesta, sugere o autor, de duas maneiras. Primeiro, como uma consideração do papel difundido e onipresente que os meios de comunicação desempenham em todos os aspectos da vida, incluindo especificamente na organização, experiência e expressão dos nossos sentimentos íntimos. A maioria dos estudiosos da área hoje, entende Deuze (2022), reconheceria que se tornou pouco útil estudar a mídia fora de contexto, pois nossa relação se tornou muito íntima não só sob o aspecto tecnológico. Nossos dispositivos sentem e ‘vivem’ bastante perto de nós, num sentido afetivo, pois claramente amamos (e às vezes odiamos) a nossa mídia.
Considerações finais
A conexão de um aparato tecnológico com hábitos culturais pode revelar uma dependência recíproca que só ocorre com objetos que ganham escala de adoção. Após o desenvolvimento das formas de acesso a conteúdo online de maneira ubíqua, como os smartphones, os acessórios que circundam este ecossistema ganham em potencialidade para transformar o próprio espectro da produção e consumo de conteúdos, bem como a interação de indivíduos em ambientes online ou físicos.
O ruído das cidades e dos ambientes públicos é característica intrínseca destes espaços desde a Revolução Industrial, com a expansão dos meios de transporte, entre outros objetos que emitem sons altos. Foi no desenvolvimento dos espaços urbanos, de certa forma, que os sujeitos organizaram seu cotidiano e excedente cognitivo. Na mesma medida, as cidades trouxeram desafios como a demanda por ver e observar melhor para circular e buscar alternativas para minimizar os sons diversos. O potencial de filtrar áudios indesejados e permitir a passagem seletiva da voz humana ou ruídos que significam a segurança como buzinas e alarmes tem um poder transformador. Fazendo novamente um paralelo com a realidade aumentada, em que podemos projetar objetos virtuais interpolados aos reais, temos o potencial de criação de um mundo próprio. Não se trata da bolha de isolamento, mas sim de uma transformação do ambiente ou uma adaptação da convivência em lugares antes não convidativos.
Entre os wearables, o fone evolui para ser um objeto vestível. Torna-se possível permanecer ligado e conviver com o mundo externo. São ações que se desenham há algum tempo, na apropriação do público, tomam forma cotidiana durante a pandemia da Covid-19 e são alvo de estudos para o futuro. O áudio permanece por sua conexão com o mundo real e características pré-tecnológicas. Como linguagem, se mescla com as transformações a cada etapa histórica. Se relaciona com as questões propostas e se expande para além dos meios em que está presente. Os sujeitos, de sua parte, consomem cada vez mais dados por eles disponibilizados no ambiente digital. Plataformas evoluíram na direção da mobilidade em áudio, vide o transistor com o rádio, mas a imagem entrou neste ambiente em larga escala com o streaming, entre outros aspectos.
No processo de soma de camadas, as imagens passam a viver um processo hegemônico. Afinal, o que o rádio descrevia em detalhes, tornou-se possível observar. Neste contexto, de raízes pré-tecnológicas, ver sem ouvir parece não resolver a informação. Os próprios dados em circulação são tantos que sempre é necessário oferecer mais e mais alternativas para melhor conhecer. Na linha do pensamento mcluniano, e somando outros autores aqui citados, extensão e circulação são variáveis que acabam por se aproximar no fluxo da informação. Os sujeitos submergem ainda mais no ambiente e filtram a percepção da realidade. Para o excedente cognitivo há ampla variedade de ferramentas. Para tanto, o interesse é pelo menor esforço, o que gera comportamentos habituais, menos guiados pela intenção, menos necessidade de obter dados para julgar e decidir. Assim, num emaranhado de articulações, onde não há neutralidade e nem isenções, constrói-se um mundo de complementaridades, que na apropriação social conjunta, desenha traços da cultura.
O objetivo desta reflexão é apontar e descrever transformações que se desenham no horizonte a partir de hábitos que, por conta de um menor esforço, chegam ao extremo do amor à mídia e às facilidades proporcionadas. Entende-se, nesta etapa, que os eixos iniciais —a expansão do áudio em um contexto de imagens, o desenvolvimento de tecnologias para o consumo individual de áudio e o aprendizado resultante da pandemia— reúnem aspectos mais complexos a cada camada histórica no ecossistema da mídia. São trajetos, no entanto, que se consolidam para o futuro. Realidade aumentada com áudio, além das possibilidades visuais dos óculos, caracterizam-se por ter impacto social e cultural. Filtrar pode ser um novo hábito cultural.
Referências
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3https://9to5mac.com/2023/04/25/airpods-pro-concerts-hearing-protection/, https://www.dyson.com/headphones/zone
4https://techcrunch.com/2022/03/30/people-are-sending-7-billion-voice-messages-on-whatsapp-every-day/
Para citar este artigo: Campos Pellanda, E., & Rodrigues da Cunha, M. (2024). Os novos hábitos culturais no ecossistema dos wearables. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 17(2). https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13962