Estudios
O CONTEÚDO ESPORTIVO NAS PLATAFORMAS DE STREAMING: UMA ANÁLISE AUDIOVISUAL
El contenido deportivo en las plataformas de streaming: un análisis audiovisual
Sports Content on Streaming Platforms: An Audiovisual Analysis
Ana Carolina Campos de Oliveira, Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (ppgcom/ufjf), Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) (Brasil)
Cristiane Turnes Montezano, Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (ppgcom/ufjf), Bolsista da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (rnp) (Brasil)
Susana Azevedo Reis, Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (ppgcom/ufjf), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (Capes) (Brasil)
Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social "Disertaciones", vol. 17, núm. 2, pp. 1-18, 2024
Universidad del Rosario
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DOI: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13943
Recebido: 8 de dezembro de 2023
Aprovado: 21 de março de 2024
Data de pré-publicação: 24 de maio de 2024
RESUMO
Este artigo objetiva compreender as construções de narrativa em séries documentais do segmento esportivo, mais especificamente no futebol. Acreditamos que essas narrativas se estruturam com base na “jornada do herói” (Campbell, 2007). Para tal, analisamos as séries All or nothing: Arsenal, produzido pelo Amazon Prime Video, e Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019, disponível no Globoplay, a partir da metodologia da análise da materialidade audiovisual, proposta por Coutinho (2018). Observamos que, ainda que ocorram adaptações e diferenças, as séries possuem, na composição de suas narrativas, personagens e estágios evidenciados na “jornada do herói”, o que aponta para uma transição desse tipo de narrativa. Na passagem para o ambiente digital, o formato utilizado é outro, mais fragmentado: o documentário seriado. Tal modelo permite que a narrativa ganhe novas nuances, sendo contada por outros prismas, produzindo subnarrativas, mas sempre mantendo uma perspectiva macro da história.
Palavras-chave: esporte; streaming; jornada do herói; séries documentais.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo comprender las construcciones narrativas en las series documentales del segmento deportivo, específicamente del fútbol. Los autores de este trabajo creen que dichas narrativas se estructuran teniendo como base el “viaje del héroe” (Campbell, 2007). Para ello, adoptando la metodología conocida como análisis de la materialidad audiovisual, propuesta por Coutinho (2018), analizamos las series All or nothing: Arsenal, producida por Amazon Prime Video, y Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019, disponible en Globoplay. A partir de los resultados del análisis efectuado, se observa que, a pesar de ciertas adaptaciones y diferencias, ambas series incorporan en sus narrativas los personajes y las etapas características del “viaje del héroe”, lo que señala una transición de ese tipo de narrativa de la televisión a las plataformas digitales. No obstante, en el cambio hacia el entorno digital, el nuevo formato utilizado es diferente, más fragmentado: el documental seriado. Este modelo permite que la narrativa adquiera nuevos matices, siendo contada desde otras perspectivas que producen subnarrativas, aunque conservando la visión general de la historia.
Palabras clave: deporte; streaming; viaje del héroe; series documentales.
ABSTRACT
This article seeks to understand the narrative constructions in documentary series within the sports segment, more specifically in football. We believe that these narratives are structured based on the “Hero’s journey” (Campbell, 2007). To this end, we analyzed two series: All or nothing: Arsenal, produced by Amazon Prime Video, and Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019, available on Globoplay, following the methodology of Audiovisual Materiality Analysis, proposed by Coutinho (2018). Our analysis revealed that, although there are some adaptations and differences, the narratives of these series incorporate the characters and stages shown in the “Hero’s journey”, which points out to a thematic transition. However, in the shift to the digital environment, a different format emerges: the serialized documentary. This model allows for the introduction of new narrative nuances, conveyed through various perspectives that produce sub-narratives while maintaining an overarching macro perspective of the story.
Keywords: Sport; streaming; hero’s journey; documentary series.
Introdução
Quando pensamos no campo da comunicação, esporte e mídiacaminham de mãos dadas. Das notícias veiculadas nos jornais às transmissões de competições nos mais diversos meios, o esporte midiatizado se configura como um negócio rentável, principalmente no meio audiovisual, e a relação entre ambas as partes é quase impossível de ser dissociada no contexto atual. Para além da televisão, no entanto, o segmento esportivo também tem se estabelecido como objeto de interesse de plataformas de streaming para a produção de conteúdos. Com base em um levantamento elaborado, tendo em vista as cinco principais plataformas de streaming disponíveis no Brasil, foi possível encontrar um grande universo de conteúdos sobre o esporte —desde a transmissão ao vivo de competições até filmes e documentários que abordam a temática sob diversos aspectos—.
Assim, o presente trabalho tem como objetivo compreender como são construídas as séries documentais sobre personalidades, times e eventos esportivos nas plataformas de streaming, tendo como escopo principal aquelas que possuem como tema central o futebol. Acreditamos que muitas dessas narrativas oferecem uma estrutura baseada na “jornada do herói” (Campbell, 2007) e apontam esta enquanto tendência na produção de conteúdo esportivo, para além daquele já feito na televisão e em outros meios.
A partir dos dados obtidos no levantamento, optamos por escolher enquanto recorte para este estudo a temporada mais recente da série All or nothing: Arsenal, com foco no clube inglês, do Amazon Prime Video, e o conteúdo com a mesma proposta disponibilizado na plataforma Globoplay, com a série Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019. Assim, realizamos uma análise comparativa das duas séries documentais, procurando semelhanças e diferenças entre elas, amparadas pela metodologia de análise da materialidade audiovisual, proposta por Coutinho (2018).
Os documentários em série na tela das plataformas de streaming
Percebemos, contemporaneamente, como o novo contexto sociotécnico está modificando a forma como consumimos as narrativas midiáticas, inclusive as audiovisuais. Segundo Paula Barreto de Oliveira e Carlos Eduardo Marquioni (2020), as transformações tecnológicas estão alterando a forma de consumo e de produção, e a interação entre os indivíduos.
A partir dessas novas dinâmicas, os canais tradicionais de televisão, e outros grupos midiáticos, buscam oferecer serviços paralelos ao fluxo de planejado, que necessitam “que o telespectador esteja assistindo televisão com uma grade pré-determinada, com a emissora enviando sinais eletromagnéticos que serão recebidos pela população, dessa maneira tendo a experiência de televisão ‘ao vivo’” (Oliveira & Marquioni, 2020, p. 5).
As plataformas de streaming audiovisuais —como Globoplay, hbo Max, Star Plus, Disney Plus, Netflix, etc.— são algumas das novas opções de consumo para o telespectador. Segundo Tim Paul Thomes (2011), o streaming envolve algumas características como o consumo de bens, sem a posse do arquivo, o armazenamento dos arquivos em um servidor e o acesso deles sob demanda; além de apresentar um tipo de receita de assinatura mensal com acesso ilimitado aos catálogos das plataformas. Surge, assim, um novo fluxode consumo. Bernardo Fontaniello e Marcelo Magalhães Bulhões (2022) definem o streaming como “um processo de transmissão de dados por meio da internet sem a necessidade de se baixar determinado conteúdo no dispositivo do usuário, o qual acessa, via web, qualquer conteúdo ou serviço hospedado em um servidor remoto, o que facilita a velocidade desse acesso, já que o usuário não depende da competência técnica de sua máquina, mas tão somente da capacidade de conexão da internet” (p. 239).
Um dos produtos audiovisuais que são comumenteencontrados nas plataformas de streaming são as narrativas, de ficção e nãoficção, seriadas. Deparamo-nos com esse tipo de conteúdo em diversos tipos de formatos e períodos históricos, por exemplo, quando pensamos em romance-folhetins, radionovelas, telenovelas, sitcomse documentários em série. Porém, ao analisarmos o consumo das séries de televisão, percebemos mudanças significativas na forma como são disponibilizados e vistos pelos telespectadores.
Nos canais da televisão aberta e a cabo, os episódios de seriados são normalmente disponibilizados um por um, em dias e horários específicos. Porém, em plataformas de streaming é comum uma temporada completa ser disponibilizada de uma só vez, o que incentiva a prática da maratona, ou seja, a de assistir todos os episódios em sequência, sendo o espectador incitado por uma narrativa extremamente envolvente. Ao “maratonar” uma série, o indivíduo acaba em “uma imersão em um produto audiovisual, ou seja, uma maneira de consumo de conteúdo audiovisual em sequência, de acordo com a disponibilidade da oferta do conteúdo e, também, da demanda do usuário” (Oliveira & Marquioni, 2020, p. 8). Assim, o telespectador muda a sua experiência de consumo, que agora está mais cômoda e flexível. Porém, vale destacar que, nos últimos anos, as plataformas de streaming também estão disponibilizando conteúdo de forma periódica —uma vez por semana, por exemplo—, o que apenas permite que a “maratona” seja feita após a reunião de todos os episódios.
Nesse sentido, os seriados documentais recheiam as plataformas de streaming. José Carlos Aronchi de Souza (2015) define o gênero do documentário na categoria da informação, sendo uma “demonstração da qualidade dos programas do departamento de telejornalismo” (s. p.). O gênero tem suas raízes históricas no cinema, onde possui um papel informativo e ideológico. Já na televisão, o documentário mantém a sua seriedade: “O documentário pode apresentar muitos formatos dentro do próprio gênero, como videoclipes, entrevistas, debates, narração em off, com o objetivo de não torná-lo cansativo e apresentar de forma variada as informações colhidas de várias fontes” (Aronchi de Souza, 2015, s. p.).
Porém, Cristina Teixeira Vieira de Melo (2002) afirma que não existiriam gêneros puros, mas que é possível encontrar características que nos levam a enxergar o documentário como um “gênero essencialmente autoral” (p. 28). O documentário traria, assim, um discurso sobre o real, uma característica do jornalismo, pois busca descrever e interpretar o mundo a partir da experiência coletiva. Ele seria um “lugar de revelação”, informando sobre determinado fato, lugar ou pessoa. Porém, a pesquisadora destaca que muitos autores veem o jornalismo apenas como o local de efeito de objetividade, enquanto o documentário traria o olhar do autor ou do diretor sobre o assunto em questão, articulando toda a narrativa sob os seus pontos de vista. Assim, concordamos com Melo (2002, p. 29): o jornalismo também cria narrativas subjetivas, sendo os documentários construções da realidade social.
Dessa forma, entendemos o documentário como um produto jornalístico, mas que se utiliza de uma dose de dramatização. Melo (2002) destaca três características fixas presentes no documentário: o discurso sobre o real, o caráter autoral e o registo in loco. Outras características do documentário são: poder ser exibido em diferentes suportes (digital, cinema, televisão); apresentar variadas temáticas (biografia, cultura, ecologia, etc.); possuir ou não a presença de locutor; e a possibilidade do uso de depoimentos, reconstituições, personagens ficcionais e documentos históricos.
Assim, Valmir Moratelli (2021, p. 713) aponta como, com a popularização das plataformas de streaming, aumentou-se a produção de documentários televisivos, principalmente em formatos seriados. Vemos muitas produções temáticas, focando em pautas e assuntos com recortes temporaisespecíficos, e documentários personalistas, que apresentam personagens e histórias reais, aprofundando “na vida ou em situações-limite de pessoas que ganharam notoriedade pública”.
Esses documentários em série apresentam a narrativa em episódios ou capítulos, mas são interligados, trazendo características desse tipo de formato, como plot twists e ganchos narrativos envolventes. Além disso, ao assistir a eles pelas plataformas de streaming, o usuário está sujeito a encontrar outras características do meio, como: “a reprodução automática de episódios (post-play); a possibilidade de pular a abertura e os créditos de séries (e documentários expandidos); e as sugestões feitas, por meio de algoritmos, especialmente para o espectador” (Moratelli, 2021, p. 717).
A “jornada do herói” no espetáculo esportivo
Compreendemos, assim, que as séries documentais possuem um viés jornalístico, sendo um produto audiovisual que busca narrar certos temas, personalidades ou acontecimentos. Nesse sentido, percebemos como as séries documentais sobre o esporte estão, a cada dia, ganhando mais espaço nas telas, com o uso de um tipo de narrativa específica: a “jornada do herói” ou “monomito”. O termo foi instituído por Joseph Campbell (2007) em 1949, para designar um modelo narrativo encontrado em diversas histórias, que vão desde dos mitos gregos aos filmes hollywoodianos, trazendo uma jornada em que o personagem principal, o herói, sempre segue o mesmo padrão.
Mas quem é o nosso herói? Utilizando os pensamentos de Campbell (2007), Katia Rubio (2021) destaca que o herói mudou suas características durante os séculos. Na Antiguidade, por exemplo, era o homem corajoso e superior, favorito dos deuses, podendo até ser fruto da união de um Deus com um mortal. Variando de cultura para cultura e acompanhando a evolução humana, o herói é a representação da sociedade em que é forjado, evoluindo à medida que a cultura evolui; assim, é um arquétipo, o “homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas, ou seja, as visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humano” (Rubio, 2021, p. 129).
Nessa direção, quando pensamos nas narrativas sobre o esporte contemporaneamente, estamos falando de profissionais de performance, ou seja, de alto rendimento, que são destacados pela mídia. Percebemos como, a todo tempo, encontramos novas estrelas, ídolos ou heróis, que ajudam as pessoas a se identificarem com o evento em si. São representantes de uma comunidade, que, ao superarem diversos obstáculos que seriam insuperáveis, favorecem a construção da identidade do herói. Assim, os jogos, as competições, a própria vida do atleta se tornam um “espetáculo esportivo”, que engloba diversas características, como sonhos, políticas e problemas sociais.
Se, na Antiguidade, o “herói” buscava ser um cidadão por meio da preparação física e de atleta, para ir à guerra e proteger a polis, hoje o atleta de alto rendimento veicula sua imagem ao espetáculo e ao lazer, levando torcidas aosestádios e ginásios. Além disso, esse herói é exposto a todo o tempo, tornando-se “alvo de identificações e projeções, levando-o a ser adorado por sua torcida, respeitado e, por vezes, odiado pelos adversários” (Rubio, 2021, p. 136). O esporte será apresentado como uma metanarrativa: a mídia narrará histórias de times, atletas e eventos que trabalham com personagens, que serão tratados como heróis e vilões. Assim, o esporte se torna um espetáculo, cuja televisão é seu principal expoente: “O esporte, visto como mais um produto de consumo, precisa criar protagonistas para vender um espetáculo esperado e desejado, mais uma peça numa grande engrenagem” (Rubio, 2021, p. 139). Nesse sentido, uma forma de construir essa narrativa heroica no esporte é através da “jornada do herói”, um percurso que envolve rituais de passagem, com o padrão separação-iniciação-retorno.
Baseando-se na “jornada do herói” —desenvolvida por Joseph Campbell (2007) e depois reformulada na década de 1980, no contexto do cinema, por Christopher Vogler—, Monica Martinez (2022) a adaptou para a análise de construções de histórias de vida no jornalismo.
Para Martinez, o “jornalismo convencional”, em sua estrutura clássica, é muitas vezes mais adequado para a produção de mídias informativas, como jornais diários e sites eletrônicos. Existem, no entanto, conteúdos que exigem uma estrutura narrativa mais complexa, sendo influenciados muitas vezes pelo jornalismo literário.
Como vimos, desde a Antiguidade, os homens narram. Mas foi somente no século 17 que o jornalismo que conhecemos, “como produtos dotados de periodicidade, universalidade, atualidade e difusão” (Martinez, 2022, p. 26) se constituiu. No século 19, o jornalismo contemporâneo emergiu, trazendo as grandes agências de notícias, as redes de jornais e as técnicas que até hoje são utilizadas no jornalismo diário, como o “lide” e a “pirâmide invertida”. Porém, como os veículos de comunicação não comportavam grande parte das informações apuradas pelos jornalistas, estes começaram a produzir livros-reportagem com materiais excedentes.
Na década de 1960, esse “jornalismo literário” se potencializou, através do new jornalism, uma corrente que busca na literatura elementos que ajudem os profissionais a contarem suas histórias. Além disso, Martinez acredita que outras contribuições, como a nova história francesa —que trouxe para a literatura características do cinema, como a construção cenaacena e a montagem nãolinear de narrativas— e a história oral —metodologia que valoriza depoimentos e histórias dos indivíduos, através de suas biografias— foram importantes para configurar o jornalismo literário que conhecemos contemporaneamente: um espaço para histórias de vida.
“É neste contexto complexo, no qual se buscam diretrizes que permitam formas mais eficazes de compreensão, interpretação e transmissão da realidade, que se propõe a Jornada do Herói e a Biografia Humana como métodos para a construção de histórias de vida, modalidade da reportagem que tem como foco a narrativa parcial ou integral das vidas dos indivíduos ou grupos sociais” (Martinez, 2022, p. 34).
Para a pesquisadora, esses métodos adaptados ao campo da comunicação, e especificamente ao jornalismo, são um caminho para guiar relatos envolventes, que possam ser conteúdos de qualidade, satisfazendo aos jornalistas, e apresentarem amplitude e fruição, agradando aos leitores ou espectadores. Na década de 1990, o pesquisador Edvaldo Pereira Lima incluiu a jornada do herói como um dos recursos utilizados para a produção de um jornalismo literário avançado. Já no século 20, Martinez elaborou uma “jornada do herói” no contexto jornalístico, que, para nós, será de vital importância para compreender os nossos objetos.
O herói dentro de um contexto jornalístico é “uma pessoa que, por um determinado motivo —seus efeitos, seu valor ou sua magnanimidade— seja escolhida para ser protagonista de uma história de vida” (Martinez, 2022, p. 47). Entretanto, ele não é necessariamente uma personalidade famosa, podendo ser uma história de vida de um popular ou de um grupo marginalizado. Para a autora, a estrutura mítica narrativa é um mapa de direções, de possibilidades, assim, um exame prévio do conteúdo contribui para a sinalização de possíveis trajetórias. Além disso, a jornada não necessita ser linear, já que, na prática, a construção,por meio da edição, pode ser realizada de forma cronológica ou não. Dessa forma, a jornada, em um contexto de narrativas jornalísticas, poderia ser dividida em 12 etapas.
A primeira é o “Cotidiano”, em queo herói, que viveu aventuras anteriores, está descansando. Nesta etapa, é necessário definir o olhar a partir do qual será contada a história, por meio da voz dos entrevistados, com um narrador ou um panorama mais neutro.
A segunda etapa é o“Chamado à aventura”, quando o herói é chamado ao desafio. Aqui, o protagonista questiona seus valores, crenças e limites e pode ser empurrado por uma pessoa, conhecida ou não, que exerce a função do mentor.
A terceira etapa é a “Recusa ao chamado”, que nem sempre acontece, já que “algumas pessoas ingressam de bom grado nas novidades apresentadas pela vida [...] uma parte das pessoas costuma ter reação inversa, ponderando muito bem se vale a pena mergulhar na proposta” (Martinez, 2022, p. 86).
A quarta etapa é a “Travessia do primeiro limiar”, em que o herói ainda tem algumas dúvidas se deve seguir a jornada e precisa abrir mão de algo para seguir em frente, ou seja, tem que realizar um “salto de fé”. Aparecem, assim, os guardiões do limiar, “aquelas pessoas que advertem o indivíduo a não ir além dos limites aceitos por aquela sociedade em questão —são bem interessantes de serem levantados, pois contribuem para a compreensão da trama—” (Martinez, 2022, p. 93).
Na quinta etapa, “Testes, aliados, inimigos”, o herói ingressa em seus desafios e encontra outros indivíduos que farão parte de sua história, como enumera Martinez (2022):
Mentor: como a Jornada do Herói trata de um processo de aprendizagem, é comum a presença de um mentor. Não se trata de um mestre no conceito clássico do termo, mas de alguém que em determinado momento transmite algum ensinamento necessário ao protagonista ou, melhor, manifesta exteriormente um conhecimento que já está maduro na pessoa.
1.Aliados: ajudam nas tarefas empreendidas pelo protagonista.
2.Adversários: competidores que bloqueiam o caminho.
3.Inimigo: principal força motriz que força o protagonista a superar seus limites.
4.Vira-casaca: um amigo que aparenta ser um adversário ou vice-versa.
5.Guardião: protetor do protagonista ou do inimigo. Ele é a porta para o futuro, para o desconhecido.
6.Bufão: emprega ironia e humor para não deixar que o protagonista se leve muito a sério. (p. 93)
Na sexta etapa, “Caverna profunda”, o herói verifica se está preparado para os desafios e se volta a si mesmo, pois em breve enfrentará obstáculos.
Na sétima etapa, “Provação suprema”, o herói chega em seu teste final, sendo o momento do confronto com os vilões, sobrevivendo ou ganhando a batalha na maioria das vezes.
Na oitava etapa, “Encontro com a deusa”, o herói trava contato com um amante, mulher ou homem, além de familiares e amigos.
Na nona etapa, “Recompensa”, “após ter sobrevivido às provas finais, o aprendiz atingiu o pico da montanha de seu desafio e agora pode ostentar com orgulho o título de herói” (Martinez, 2022, p. 112). Ele já compreende mais sobre sua realidade externa e interna, tornando-se mais maduro e respeitado.
Na décima etapa, “Caminho de volta”, o herói já celebrou a vitória e assimilou as lições, e inicia seu caminho para voltar e contar o que aprendeu.
Na décima primeira etapa, “Ressurreição”, o herói ainda não está seguro. Ele precisa passar por um desafio diferente para construir algo novo.
Por fim, na décima segunda etapa, “Retorno com elixir”, o nosso herói pode finalmente voltar para a casa: “Ao final de sua jornada —que pode ser o início de outras—, o protagonista livra-se de detalhes obsoletos de sua biografia pessoal. Ele foi engolido por uma situação e saiu dela renascido” (Martinez, 2022, p. 126). Seu físico pode não ter mudado, mas o psicológico sim.
Para cada uma das etapas, Martinez oferece uma lista de questionamentos possíveis que ajudam o jornalista a pensar nas histórias de vida dos indivíduos e grupos. Essas questões também serão levadas em conta na análise dos documentários.
As narrativas heróicas no streaming
Para a investigação, tomamos como metodologia a análise da materialidade audiovisual (ama), proposta por Iluska Coutinho (2018), em um processo que analisa a junção da unidade texto, som, imagem, tempo e edição, em toda sua complexidade. A metodologia permite que, através de algumas etapas, possamos realizar a observação dos objetos baseados em nossos objetivos de pesquisa e referenciais teóricos.
A primeira etapa consiste na identificação do objeto, já que “antes de realizar a etapa da análise propriamente dita é importante (re)conhecer quais os sentidos propostos por determinado programa ou produto audiovisual quer para seu público” (Coutinho, 2016, p. 11). Assim, realizamos uma breve pesquisa sobre o material audiovisual esportivo nos streamings.
Acreditamos que os conteúdos esportivos são uma tendência de produção nos canais digitais sob demanda. Em levantamento preliminar, realizado em junho de 2023, a partir das principais plataformas disponíveis no Brasil (Amazon Prime Video, Globoplay, Star +, HBO Max + e Netflix), foram encontrados mais de 100 conteúdos nãoficcionais sobre a temática esportiva distribuídos entre as plataformas, como evidencia o gráfico da figura 1.
Figura 1. Gráfico comparativo de conteúdos esportivos nas plataformas de streaming em junho de 2023
Fonte: elaborado pelas autoras.
Entre os conteúdos encontrados, destaca-se o protagonismo do futebol enquanto temática principal. Das 105 ocorrências contabilizadas no levantamento, 48 traziam a modalidade em questão como enfoque central. A partir desses dados, tomamos como recorte de investigação, para analisar as narrativas do esporte nas plataformas de streaming, dois produtos distintos sobre futebol: as séries documentais All or nothing: Arsenal, conteúdo mais recente sobre esporte presente no catálogo do Amazon Prime Video, e Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019, produção brasileira similar à anterior, presente no Globoplay.
A justificativa para a escolha dos objetos empíricos se dá, justamente, a partir da percepção da relevância do futebol como principal temática na abordagem de séries documentais sobre esportes nas plataformas de streaming. Dessa forma, primeiro elegemos as duas plataformas que apresentam o maior número desse tipo de conteúdo —Amazon Prime Video e Netflix (como evidencia o gráfico da figura 1). Em seguida, selecionamos, na plataforma norte-americana (Amazon Prime Video), a série documental sobre futebol mais recente presente no catálogo em julho de 2023: All or nothing: Arsenal. O mesmo critério foi aplicado à plataforma brasileira (Globoplay)— com a seleção da série documental sobre futebol mais recente disponível no streaming: Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019. A escolha da corpórea se justifica, ainda, pela possibilidade de comparação entre uma produção internacional sobre um clube estrangeiro e uma produção nacional sobre um clube brasileiro, a fim de observar as possíveis aproximações e diferenças entre as narrativas desenvolvidas sobre uma temática similar em contextos culturais distintos.
Munidas dessas informações e tendo escolhido o recorte, partimos para a segunda etapa, na qual é necessário pensar quais os eixos que serão utilizados para analisar os objetos, ou seja, definir quais serão os critérios norteadores da investigação. Eles são construídos a partir do referencial teórico da pesquisa, propondo um alinhamento direto entre a teoria que embasa e sustenta a investigação e o processo analítico. “Por se caracterizar como um método quali-quantitativo a análise da materialidade audiovisual pode incluir itens de avaliação previamente identificados pelo autor, com categorias definidas a priori” (Coutinho, 2016, p. 12).
Tomamos como pontos norteadores as principais referências anteriormente trabalhadas, com enfoque para as proposições de Martinez (2022) sobre a “jornada do herói” em narrativas jornalísticas. Afinal, uma vez que ambos os conteúdos recortados para a análise são prometidos pelas plataformas nas quais estão inseridos como “séries documentais”, pressupomos, segundo a classificação de categorias, gêneros e formatos de Aronchi de Souza (2015), seu caráter informativo.
Buscando testar a hipótese previamente apresentada, foram estabelecidos, então, três eixos principais de análise: 1) identificação dos estágios da jornada do herói; 2) identificação dos personagens e seus papéis; 3) observação da construção da narrativa. É importante ressaltar que, na construção da ficha de análise, consideramos esses três eixos como interdependentes, servindo a divisão apenas como forma de sistematização e melhor organização do que será observado e, consequentemente, dos resultados obtidos. Para defini-los, passamos para a terceira etapa da análise, na qual realizamos uma espécie de “entrevista” com o objeto, para verificar se os eixos propostos darão conta de nosso objetivo de pesquisa.
Em sequência, chegamos, então, às duas últimas etapas: o armazenamento do recorte a ser analisado e, por fim, a análise em si, que é realizada a partir dos eixos anteriormente definidos.
All or nothing: a Jornada do Arsenal na temporada de 2021
A série documental All or nothing é uma produção dos estúdios Prime Video que acompanha os bastidores de equipes esportivas em modalidades como futebol, futebol americano, hóquei no gelo e rugby. A série teve sua estreia em 2016, contemplando, até 2022, 12 equipes distintas. O produtoé geralmente organizado em temporadas com média de oito episódios de 50 minutos cada.
A All or nothing: Arsenal (traduzida como Tudo ou nada: Arsenal), no entanto, é a temporada mais recente do documentário seriado disponível no Amazon Prime Video em julho de 2023, data de realização desse levantamento e pesquisa. Com estreia em 2022, são oito episódios que acompanham os bastidores da temporada de 2021 do clube londrino, com enfoque na renovação da equipe e seu desempenho na Premier League (campeonato inglês). Na plataforma de streaming, encontramos a seguinte sinopse: “Tudo ou nada: Arsenal acompanha o icônico clube de futebol durante uma temporada inesquecível. Com acesso sem precedentes e capturando os altos e baixos da vida dentro e fora do campo, este é o melhor do futebol: intenso, dramático e cheio de paixão” (Tudo ou nada, 2022).
A temporada aborda um momento difícil para o Arsenal, que passa por uma renovação de seu elenco, não está apresentando temporadas vitoriosas na Inglaterra e enfrenta uma série de outras dificuldades internas, em uma missão quase que de superação própria. Em oito episódios, o documentário seriado acompanha o diaadia de preparação do time, bem como as principais partidas disputadas e resultados obtidos pelo Arsenal e como estes repercutem em toda a equipe ao longo da temporada. Com imagens dos bastidores, não só dos treinos, mas também dos vestiários das competições e de outras instâncias, a série evidencia o relacionamento dos personagens intra e extraclube, suas trajetórias individuais e a história do Arsenal nesse período, mesclados a depoimentos de jogadores, ex-jogadores, familiares, torcedores e diversos membros da equipe do clube.
A partir dos dois primeiros eixos de análise propostos, portanto, foram observados, na tabela 1, os dados que dizem respeito às etapas da “jornada do herói”, bem como os principais personagens e os papeis assumidos por cada um presentes na narrativa da série.
Tabela 1. Tabela de análise da série All or nothing: Arsenal
Eixo 1. Estágios da jornada do herói |
Eixo 2. Personagens e seus papéis |
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Cotidiano Chamado à aventura Travessia do primeiro limiar Testes, aliados e inimigos Caverna profunda Provação suprema Encontro com a deusa Recompensa Caminho de volta Retorno com o elixir |
Personagens |
Papéis |
Mikel Arteta: treinador Bukayo Saka: jogador Pierre-Emerick Aubameyang: jogador Thierry Henry: ex-jogador Josh Kroenke: diretor do Arsenal Martin Odegaard: jogador Ben White: jogador Aaron Ramsdale: jogador Emile Smith Rowe: jogador Thomas Partey: jogador Nuno Tavares: jogador Kieran Tierney: jogador Alexandre Lacazette: jogador Gabriel Martinelli: jogador Edu Gaspar: coordenador técnico Eddie Nketiah: jogador Bernd Leno: jogador Mohamed Elneny: jogador Ian Wright: ex-jogador Granit Xhaka: jogador Rob Holding: jogador Mídia Torcedores Familiares Equipe técnica e médica do clube |
Herói Mentor Aliados Adversários Inimigo Vira-casaca |
Fonte: elaborada pelas autoras.
Optamos, em um primeiro momento, por separar esses eixos a fim de que seja facilitada a observação desses aspectos para, então, partirmos para o terceiro ponto de análise. A partir da tabela, é possível perceber que quase todas as etapas da “jornada do herói” foram trabalhadas durante a série, evidenciando que a narrativa segue um percurso lógico e que se enquadra nos moldes da jornada do herói —do chamado para a missão até o enfrentamento das dificuldades que permeiam esse cenário, culminando no desfecho da narrativa—. Dentre os principais personagens apresentados, a maioria diz respeito aos jogadores do clube, logo estão outros profissionais que atuam no Arsenal —como diretoria, coordenadores, comissões técnica, médica e outros serviços—, além de torcedores, familiares e amigos dos personagens principais, e da mídia.
Destaca-se, no entanto, a figura do treinador Mikel Arteta, único personagem que tem protagonismo em todos os episódios da série e pode ser tido como fio condutor de toda a narrativa desenvolvida pelo produto. Na observação dos papéis, no entanto, optamos por dividir o segundo eixo em partes distintas e não apresentar uma relação primária entre esse aspecto e o dos personagens identificados devido a uma particularidade observada no terceiro eixo: a pluralidade de pequenas narrativas que compõem a história, a partir de perspectivas distintas, e que acabam por modificar e inverter papéis ao longo da trajetória da série.
Tal característica nos leva ao terceiro eixo, que busca compreender a construção narrativa propriamente dita a partir da interação com os dados anteriormente apresentados. A série começa apresentando Mikel Arteta, ex-jogador e então treinador do Arsenal, desde 2019. Logo nos primeiros minutos de narração, Arteta é identificado como o técnico mais jovem da Europa, evidenciando sua falta de experiência com o cargo em um momento delicado para o Arsenal, tradicional clube inglês e que enfrenta grandes desafios, sem conseguir resultados significativos nas últimas temporadas. Arteta, nesse sentido, pode ser tido como o “herói” e personagem principal da série, uma vez que, como mencionado, é o único personagem com aparição em todos os episódios, recebendo um destaque maior comparado aos outros identificados.
No contexto da temporada de 2021, o treinador recebe a missão de guiar o Arsenal rumo a uma nova era, marcada pela renovação do elenco, que conta com jogadores muito jovens e de pouca experiência, na busca por melhores resultados nas competições nacionais, da Inglaterra, e internacionais, a nível europeu. Não há, no entanto, uma recusa ao chamado pelo personagem, que se mostra pronto e motivado para enfrentar o desafio de guiar o clube por mais uma temporada. Pela posição que ocupa, Arteta também pode ser tido enquanto “mentor” para os demais personagens ao longo da trajetória da série, sendo responsável por, além de treinar o time, dar suporte, motivar e ajudar os jogadores ao longo de toda a temporada —características evidenciadas, principalmente, a cada partida destacada pela série, quando o treinador reúne ritualmente toda a equipe para um discurso a cada início e fim de confronto, buscando incentivar os jogadores e oferecer referências táticas—.
A missão de Arteta, no entanto, não é dada como fácil, uma vez que vários são os desafios ao longo do processo. Primeiro, o de adaptação da equipe com a chegada de novos jogadores, que são jovens e com pouca experiência, além do início ruim de temporada para o Arsenal. Essa etapa pode ser tida como a “travessia do primeiro limiar”, um momento marcado pela frustração e pela incerteza do treinador, que continua pensando em como melhorar o time para conseguir resultados ao longo da temporada. Nesse momento, são também reconhecidos, na narrativa individual de Arteta, seus aliados, evidenciados principalmente pela diretoria, coordenação do clube, comissão técnica e jogadores que dão todo o suporte ao treinador; bem como seus adversários, representados pelos clubes rivais; e inimigos, que podem ser associados à mídia que, o tempo todo, confronta e critica as iniciativas do treinador e seu desempenho.
Com o avançar da série, no entanto, um problema disciplinar que envolve um dos principais jogadores da equipe —o capitão do Arsenal, Aubameyang— leva o treinador a tomar uma difícil decisão quanto a afastar o jogador. Nesse momento, Arteta também se torna o vira-casaca, pois é tido por Aubameyang —também pela mídia e por parte dos torcedores— como um inimigo por ter retirado da equipe um dos seus principais jogadores. Este contexto pode ser associado à etapa de “caverna profunda”.
A situação, no entanto, logo retoma suas configurações anteriores, quando Arteta e o time conseguem uma sequência de vitórias que são importantes para a temporada do Arsenal, levantando os ânimos e a confiança dos torcedores, que passam também a assumir o papel de aliados até o fim da jornada. Após ser eliminado de duas competições, o objetivo da equipe é se manter no G4 (entre os quatro primeiros colocados) da Premier League, buscando uma vaga na principal competição europeia: a uefa Champions League.
Nesse contexto, que podemos compreender como “a provação suprema”, o clube enfrenta seus maiores rivais, como o Tottenham, clube também londrino e que representa um dos principais inimigos do Arsenal na busca pelo G4. Apesar dos esforços de Arteta, no entanto, o time sofre com desfalques por lesões e acaba perdendo a vantagem conquistada anteriormente. O treinador, assim como a equipe, encontra-se pressionado.
Nesse momento, acontece o “encontro com a deusa”, em um episódio no qual as relações familiares de Arteta com sua esposa e filhos são evidenciadas. Esses novos personagens destacam a dedicação, o comprometimento e a paixão de Mikel pelo trabalho que desempenha e como, por vezes, essas características são distorcidas pela mídia ou mal interpretadas pelo mundo exterior, que criticam o treinador.
Ao fim da temporada, o Arsenal falha em sua missão de conseguir permanecer no G4, mas termina em uma posição superior àquelas que ocupou em um passado recente na Premiere League. As etapas de “recompensa”, “caminho de volta” e “retorno com o elixir” são condensadas no final da série quando, ainda que após a derrota, o treinador reconhece os ganhos, pessoais e coletivos, ao longo da temporada. Ele identifica a experiência adquirida e se prepara, junto à equipe, para o recomeço da temporada seguinte, evidenciando a característica cíclica desse tipo de narrativa ao criar um gancho para uma possível temporada de continuidade.
Assim, observamos uma jornada macro no documentário seriado, que toma Arteta como personagem central de uma narrativa sobre a temporada 2021 do Arsenal. Porém, também é possível pensar em jornadas do herói em proporções menores, apresentadas ao longo da série a partir dos demais personagens identificados. Isso porque, a cada novo episódio, um conjunto de jogadores recebe destaque na narrativa: os jovens que fazem sua estreia e mudam a cara e o futuro do time; jogadores que enfrentam dificuldades, mas permanecem empenhados na missão do clube; aqueles que se despedem do Arsenal; a criação de promessas no cenário do futebol mundial, entre outros.
Nesse sentido, a partir dos depoimentos dados por cada um e que auxiliam na composição da narrativa, também é possível identificar as etapas de “cotidiano”, quando cada jogador conta um pouco sobre sua trajetória profissional; do “chamado”, ao ser convocado para estrear ou assumir um papel importante no time; da “travessia do primeiro limiar”, quando os resultados não correspondem às expectativas logo de cara; a identificação dos aliados —majoritariamente representados por amigos, familiares e equipe médica e técnica do time—; a “provação suprema”, em jogos ou situações decisivas e que vão impactar diretamente o futuro do Arsenal nos campeonatos; o “encontro com a deusa”, geralmente associado à humanização de atletas que são tidos com uma imagem muito dura; e a “recompensa” da confiança do treinador, do primeiro gol, do lance decisivo, da artilharia do clube etc.
Embora os episódios possam ser compreendidos como parte fundamental de uma narrativa macro, que engloba toda a série, cada uma das pequenas narrativas acaba por constituir a própria narrativa macro da entidade “Arsenal” enquanto time heróico, ainda que tome Mikel Arteta como o herói central da temporada. Devido à escolha de organizar o conteúdo como série, fragmentando a narrativa em episódios, destaca-se também a possibilidade de consumo individual de cada um desses subarcos. Assim, em cada episódio, uma narrativa completa é desenhada —com início, meio e fim—. Mas esses episódios também podem ser compreendidos como parte fundamental de uma narrativa macro, que englobatoda a série.
A série documental Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019
O documentário Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019 é uma produção audiovisual original da plataforma de streaming Globoplay, que pertence ao Grupo Globo, emissora tradicional da tv aberta brasileira. A série narra, em cinco episódios, com média de 33 minutos de duração, a trajetória do Clube de Regatas do Flamengo na Copa Libertadores da América em 2019, quando o time carioca se consagrou bicampeão desse campeonato de futebol. A conquista de melhor da América do Sul veio após 38 anos da primeira e, até então, única vez que o clube havia vencido o torneio. A produção conta com imagens de arquivo, bastidores, treinos, jogos e entrevistas com os personagens principais: jogadores, o técnico do time Jorge Jesus, além de jornalistas esportivos, torcedores, entre outros.
A partir da observação da série através dos eixos definidos na metodologia, foi possível construir a tabela 2.
Tabela 2. Tabela de análise da série Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019
Eixo 1. Estágios da jornada do herói |
Eixo 2. Personagens e seus papéis |
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Travessia do primeiro limiar Testes, aliados e inimigos Caverna profunda Provação suprema Recompensa Caminho de volta Ressurreição Retorno com o elixir |
Personagens |
Papéis |
Entidade Flamengo |
Protagonista, principal herói |
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Torcida |
Guardiã |
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Jorge Jesus: treinador |
Mentor |
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Histórico do time do Flamengo na Libertadores |
Inimigo |
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Clubes enfrentados na competição |
Adversários |
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Diego Ribas: jogador Everton Ribeiro: jogador Giorgian de Arrascaeta: jogador Rodrigo Caio: jogador Gabriel Barbosa (Gabigol): jogador Bruno Henrique: jogador Diego Alves: goleiro Demais jogadores Torcida |
Aliados |
Fonte: elaborada pelas autoras.
No documentário, o protagonista, para além do clube, é a “entidade Flamengo”. A série busca apontar e reforçar a importância do clube carioca no futebol brasileiro, oferecendo a perspectiva de especialistas sobre o assunto, como o repórter de campo Eric Faria, ou da própria torcida, que é colocada como uma parte integrante dessa “entidade”. Neste ponto, vale reforçar a história do clube, a mística que o envolve, e a torcida, que recebe muita atenção, estando presente em todos os episódios de modo intenso. Além das entrevistas com alguns torcedores, há destaque para a movimentação da torcida na entrada e saída dos estágios, nos pré e pós jogos, e sua reação em cada lance. Evidenciando um “simbionte”, a série mostra lances importantes —gols e pênaltis— e logo em seguida as reações em detalhes dos flamenguistas, que gritam, choram, pulam e sentem cada momento dos jogos.
No documentário, a importância do clube é demonstrada por suas conquistas, como a Libertadores em 1981, ano em que também ganhou o título de melhor Clube do Mundo. Além disso, destaca o Flamengo como possuindo a maior torcida do Brasil, reunindo as mais diferentes classes sociais, gêneros e faixas etárias. O jornalista Aydano André Motta, inclusive, ressalta como há certa controvérsia sobre a torcida flamenguista ser a maior do país, ao afirmar que o mais lógico seria o time de maior torcida estar localizado no estado de São Paulo, o mais populoso, e não no Rio de Janeiro.
A série também evidencia a mística que envolve o Flamengo, que desperta uma paixão profunda em seus torcedores, que fazem sacrifícios para assistir aos jogos do time. A história do clube é mostrada em imagens de arquivo que, para além de títulos, destacam como a mobilização da torcida sempre acompanhou o clube.
A série não é linear, pois sempre começa com imagens de um jogo importante que mostra o avançar do Flamengo em cada fase da competição. A passagem do Flamengo em cada uma das fases é retratada em um dos episódios: episódio 1: fase de grupos do campeonato; episódio 2: oitavas de final; episódio 3: quartas de final; episódio 4: semifinal; e episódio 5: final.
Acreditamos ser importante destacar os “papéis” em que se inserem os personagens da narrativa construída no documentário, pois, durante a série, foi possível observar que elesperpassam mais de um desses papéis, alternando ao longo da narrativa, conforme as situações e as histórias de cada um deles.
Além daqueles já citados na tabela, que podem ser percebidos na narrativa macro empregada no documentário, vale destacar que vários outros personagens transitam no papel de herói. A torcida, por exemplo, é sempre descrita por sua garra, tendo traços de heroísmos construídos ao longo da narrativa. São destacados os esforços e os sacrifícios dos torcedores para acompanhar os jogos do campeonato ou para comparecer ao jogo da final. Há, ainda, pequenas histórias de alguns torcedores específicos, que explicam sua relação com o Flamengo, a importância do time e o que enfrentaram ou enfrentam por torcerem pelo clube. Caso, por exemplo, do motoboy Rômulo Ramos, que não deixa de usar a camisa do Flamengo, “o manto sagrado” em suas palavras, mesmo que isso leve a insultos ou perda de gorjetas de clientes que torcem para times rivais.
Já o técnico Jorge Jesus tem sua história pessoal para se tornar treinador contada no terceiro episódio, de modo a construir uma nova narrativa de herói. O jogador teve seu chamado para se tornar técnico pelo próprio treinador; sofreu com a perda da mãe e depois lutou para seguir na profissão até finalmente se consagrar como um técnico campeão. Ou seja, a narrativa do documentário conta outras “micro-histórias” ao longo de seu decorrer.
E ainda há os jogadores que tiveram suas histórias de heroísmo. A série oferece maior destaque ao meio-campista Diego Ribas, que se lesionou gravemente, mas conseguiu se recuperar a tempo de jogar a segunda partida da semifinal e o jogo da final.
Em uma percepção macro da narrativa, os estágios da “jornada do herói” não são todos desenvolvidos. A narrativa já se inicia pelo primeiro limiar, quando o Flamengo entra no novo mundo: a primeira fase da Copa Libertadores, ou seja, com a aventura em curso. No primeiro episódio, é possível identificar os estágios da “travessia do primeiro limiar” e “testes, aliados e inimigos”. Neles, o Flamengo dá seu salto de fé no terreno do campeonato e enfrenta seus primeiros obstáculos. Além dos testes, neste episódio, são apresentados os aliados: os jogadores contratados recentemente e os torcedores; o inimigo: o histórico de eliminações na Libertadores; os primeiros adversários: clubes que irão enfrentar; e seu guardião: a torcida. Também há destaque para os novos aliados: jogadores importantes que o clube contratou nos últimos anos.
Posteriormente, a narrativa, no segundo episódio, chega ao estágio da “caverna profunda” e da “provação suprema”. Nele, o Flamengo se prepara para as fases chamadas de “mata- mata”, nas quais é preciso vencer os jogos para seguir na competição e os empates levam à disputa de pênaltis. O time vive, nesse período, um momento de turbulência. O então treinador Abel Braga pede demissão após manifestações de insatisfação da torcida com sua condução do time e o Flamengo contrata o técnico português Jorge Jesus. O novo técnico e mentor recebe muitas críticas de jornalistas e comentaristas após sua chegada e, logo um de seus primeiros jogos —uma partida decisiva em outro campeonato que o time disputava, a Copa do Brasil—, o Flamengo é eliminado dessa competição.
Após o baque da eliminação, o técnico Jorge Jesus, novo mentor, prepara o Flamengo para a disputa das oitavas de final na Libertadores, a “provação suprema”, contra o time equatoriano Club Sport Emelec. Nesse mesmo contexto, surge um agravante: o meio-campista flamenguista Diego Ribas quebra a perna. Após perder por dois a zero no primeiro jogo, o Flamengo consegue ganhar a segunda partida também por dois a zero, levando a um empate e, consequentemente, à decisão por pênaltis. Na série, as cobranças de pênaltis são mostradas uma a uma, com poucas edições. A escolha é por estender o momento e trazer à tela a sensação de “drama” vivida pelo time. Ao fim, o Flamengo vence e avança para a fase seguinte.
Vencida a provação, o clube recebe suas primeiras recompensas. O time passa a jogar de modo mais consistente e avança tranquilo contra o clube brasileiro Internacional nas quartas de final. Nas semifinais, contra o também brasileiro Grêmio, empata o primeiro jogo, para, no segundo jogo, obter sua maior recompensa até aquele momento no campeonato: vencer de goleada com um placar de cinco a zero. No documentário, é destacado o quanto tal resultado foi importante, não só para a competição disputada, mas também para a própria história do Flamengo.
O clube, então, após 38 anos, chega à final de uma Libertadores. A narrativa passa pelo estágio do “caminho de volta”, que, na série, é colocado como um caminho de volta à possibilidade de ganhar o título da Copa Libertadores da América e se tornar bicampeão da competição depois de tantos anos.
O último episódio apresenta os estágios da “ressurreição” e do “retorno com o elixir”. No documentário, o jogo da final, que ocorre em Lima (Peru), tem momentos dramáticos amplificados e a busca forte por ambientar o quanto o jogo da final é o clímax de toda a trajetória do Flamengo até aquele momento. Há destaque então para um momento difícil: o adversário River Plate faz o primeiro gol aos 13 minutos do primeiro tempo. A série, então, perpassa vários momentos significativos da partida e se demora nesse momento, buscando recriar, em parte, a tensão vivida durante o jogo, alternando os lances mostrados com as reações da torcidano estádio.
Perdendo de um a zero para o River Plate, o Flamengo empata o jogo aos 88 minutos, ressuscitando na partida. E, a poucos instantes do fim, aos 91 minutos, vira o jogo, ganhando finalmente a partida e a competição. Vale observar que o tempo regulamentar de jogo é de 90 minutos e, na partida, foram dados quatro minutos de acréscimo.
O clube torna-se o campeão da Copa Libertadores da América após 38 anos. Por fim, chega-se ao estágio do “retorno com o elixir”. O Flamengo volta de Lima para o Rio de Janeiro com a Taça Libertadores da América e, consequentemente, com o título de melhor time da América do Sul, sendo recepcionado pela sua torcida.
Considerações finais
Os documentários seriados All or nothing: Arsenal e Até o fim: Flamengo campeão da Libertadores 2019 trazem diversas características semelhantes, pois acompanham o percurso dos clubes em competições diferentes, trazendo toda a trajetória de treinadores, jogadores e da torcida. Porém, ao mesmo tempo, essas trajetórias possuem diferenças significativas, como detalhamos na análise.
Observamos como os documentários não perpassam todas as etapas da jornada. Até o fim, por exemplo, já se inicia com o Flamengo começando a disputar o campeonato, pulando as etapas “cotidiano” e “ chamadoà aventura”. Ambos também não apresentam a “recusa ao chamado”, pois os desafios são aceitos sem dúvidas dos heróis. Assim, ainda que por trajetórias distintas e desfechos diferentes, a “jornada do herói” se constitui com certa similaridade em ambos os casos, tanto no que diz respeito às etapas da narrativa quanto aos personagens envolvidos, e na atribuição dos papéis que cabem a cada um —e que fazem parte da constituição do espetáculo midiático esportivo—.
Tal amostra é capaz de evidenciar como esse estilo de narrativa migra, no audiovisual, da tv para o streaming, enquanto tendência, nacional e internacional, dadas as condições de produção de ambos os conteúdos. A apresentação, como um documentário seriado, também merece destaque no que diz respeito ao estilo de conteúdo priorizado nessa nova ambiência.
Dessa forma, acreditamos que o conteúdo consumido via streaming acaba por expandir a possibilidade de uma narrativa múltipla e fragmentada a partir da possibilidade de conteúdo seriado e sob demanda. Dessa forma, uma mesma história pode ser contada a partir de diferentes prismas, nos quais a “jornada do herói”, em sua complexidade de etapas e papéis atribuídos aos personagens, se desdobra em subnarrativas que se estabelecem individualmente, mas também compõem uma perspectiva macro, ofertando novas possibilidades de produção e consumo de produtos audiovisuais no meio digital.
Assim, apesar de não representar uma novidade enquanto estratégia para a construção de narrativas midiáticas sobre o esporte, observamos os novos contornos possíveis que a “jornada do herói” assume, em conteúdos com promessa informativa, dentro das novas perspectivas de produção, circulação e consumo trazidas pelo meio digital com as plataformas de streaming. Sobre esse aspecto, destacamos a possibilidade da fragmentação narrativa dentro de um mesmo produto e a transição dos papéis atribuídos aos personagens a cada novo subarco desenvolvido.
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Para citar este artículo: Oliveira, A. C. C., Montezano, C. T., & Reis, S. A. (2024). O conteúdo esportivo nas plataformas de streaming: uma análise audiovisual. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 17(2). https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.13943