Psicanálise e Revolução Russa: notas para um debate

Psicoanálisis y Revolución rusa: notas para un debate

Psychoanalysis and Russian Revolution: Notes for a Debate

Maria Lucia Macari *
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Amadeu de Oliveira Weinmann
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Psicanálise e Revolução Russa: notas para um debate

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 39, núm. 2, 2021

Universidad del Rosario

Recepção: 07 Abril 2020

Aprovação: 04 Outubro 2021

Informação adicional

Para citar este artigo: Para citar este artigo: Macari, M. L., & Weinmann, A. O. (2021). Psicanálise e Revolução Russa: notas para um debate. Avances en Psicología Latinoamericana, 39(2), 1-15. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.8595

Resumo: Este artigo recupera alguns momentos importantes dos encontros e desencontros entre a psicanálise e a Revolução Russa. Não é casualidade o fato de a psicanálise ter um papel crucial nos primeiros anos da revolução, abrindo espaço para reflexões sobre o novo homem soviético. E é por essa via que Wilhelm Reich visita a URSS, em 1929, afirmando que muitas das mudanças introduzidas pela revolução iam ao encontro de suas teorias. No entanto, pouco depois critica o retrocesso no campo da sexualidade, ocorrido a partir dos anos 1930, ao qual atribui importante papel na burocratização da revolução. Nesse sentido, Reich não difere muito de Freud que, em diversos momentos de seu percurso intelectual, faz menção à experiência soviética, mostrando-se cético no que concerne à univocidade das visões de mundo e ao caráter ilusório das promessas de extinção do mal-estar. Se consideramos relevante retomar esse debate, é porque ele coloca, para a psicanálise, a questão de sua possibilidade de escutar vozes historicamente proletarizadas e, para os revolucionários sociais, o problema de sustentar um discurso que não se deixe seduzir pela tentação totalizante.

Palavras-chave: psicanálise, marxismo, revolução, Reich, Freud.

Resumen: Este artículo recupera algunos momentos importantes de los encuentros y desajustes entre el psicoanálisis y la Revolución rusa. No es casualidad que el psicoanálisis haya jugado un papel crucial en los primeros años de la Revolución, haciendo espacio para la reflexión sobre el nuevo hombre soviético. De esta manera es que Wilhelm Reich visita la URSS en 1929, afirmando que muchos de los cambios introducidos por la Revolución estaban en línea con sus teorías. Sin embargo, poco después critica el retroceso en el campo de la sexualidad, que ocurrió desde la década de 1930, al que le atribuye un papel importante en la burocratización de la Revolución. En este sentido, Reich no difiere mucho de Freud, quien en varios puntos de su carrera intelectual hace referencia a la experiencia soviética y es escéptico sobre la univocidad de las cosmovisiones y el carácter ilusorio de las promesas de extinción del malestar. Si consideramos relevante reanudar este debate, es porque plantea para el psicoanálisis la cuestión de su posibilidad de escuchar voces históricamente proletarizadas y, para los revolucionarios sociales, el problema de mantener un discurso que no sea seducido por la tentación totalizante.

Palabras clave: psicoanálisis, marxismo, Revolución, Reich, Freud.

Abstract: This article recovers some important moments of the encounters and mismatches between psychoanalysis and the Russian Revolution. It is no coincidence that psychoanalysis played a crucial role in the revolution’s early years, making room for reflecting on the new Soviet man. So much so that Wilhelm Reich stated, when he visited the USSR in 1929, that many of the changes introduced by the revolution met his theories. Shortly afterwards, however, he criticized the setback in the field of sexuality, which occurred in the 1930s, to which he attributed an important role in the bureaucratization of the revolution. In this sense, Reich does not differ much from Freud, who, at various points in his intellectual career, referred to the Soviet experience and was skeptical of the world views’ univocity and the illusory character of the promises of extinction of unease. We consider it relevant to resume this debate because it raises the question for psychoanalysis of its possibility to listen to historically proletarianized voices, and for social revolutionaries, the problem of sustaining a discourse that is not seduced by the totalizing temptation.

Keywords: Psychoanalysis, marxism, revolution, Reich, Freud.

Psicanálise e Revolução Russa são frutos de um mesmo tempo. Enquanto Freud desenvolvia suas primeiras publicações psicanalíticas, Lenin participava dos primeiros movimentos marxistas em São Petersburgo. Revolucionários em seus contextos, criaram paradigmas que mudaram o rumo da história, causando discussões até os dias de hoje. Com Freud, uma nova forma de pensar a subjetividade entra em cena, atrelando nossos desígnios singulares às questões inconscientes. Com Lenin, as desigualdades sociais vêm à tona e o povo descobre que também tem voz e precisa ser escutado. Agora, o vazio do desamparo, o silêncio que reinou por séculos, ganha possibilidades narrativas, seja nas clínicas psicanalíticas ou nos movimentos revolucionários.

Não é acaso o fato de várias pioneiras da psicanálise serem de origem russa (Cromberg, 2010). Embora a psicanálise já existisse no país desde o início do século XX, foi após a revolução que ela tomou impulso, passando a fazer parte dos debates sobre a nova sociedade soviética. No entanto, como todos os movimentos históricos, a psicanálise russa esteve envolta em paradoxos que, em muitos momentos, pareciam sua declaração de morte. Mas, entre aberturas e fechamentos políticos, foi ganhando seu espaço. Nos anos em que foi silenciada, ainda existia na clandestinidade, sendo praticada por muitos psicanalistas.

Para entendermos um pouco melhor a história das relações entre psicanálise e Revolução Russa, esquecida nos debates acadêmicos, propomos um retorno ao mundo socialista soviético, na medida em que atravessado pela psicanálise. Nesse sentido, construímos um caminho que passa pelos pioneiros da psicanálise no país, voltando um olhar a mais para as experiências soviéticas pautadas pela psicanálise. Depois, transitamos pelos escritos de Wilhelm Reich. Psicanalista e comunista, pioneiro na articulação entre psicanálise e marxismo, Reich fascina-se, inicialmente, com o experimento soviético. Posteriormente, contudo, denuncia o endurecimento do regime, a partir de uma análise do retrocesso no campo da sexualidade, da família e da educação. Por fim, retornamos a Freud, indicando sua desconfiança acerca da Weltanschauung comunista. Se consideramos relevante retomar esse debate, é porque ele coloca, para a psicanálise, a questão de sua possibilidade de escutar vozes historicamente proletarizadas e, para os revolucionários sociais, o problema de sustentar um discurso que não se deixe seduzir pela tentação totalizante. Ecos, tão vivos, de uma história muito atual.

Se há sentido na hipótese de que o mundo do início do século XXI —cujo marco inaugural talvez seja o onze de setembro de 2001 (o império ferido em seu orgulho fálico)— tende ao fechamento discursivo, ao retorno dos maniqueísmos fundamentalistas, à criação de cosmovisões organizadas em torno do projeto de extinção do mal-estar (o que sempre implica a eliminação do outro, tornado um inimigo), revisitar a história das relações entre psicanálise e Revolução Russa pode ser de grande valor. Em síntese, se há sentido na hipótese de que o mundo do início do século XXI parece sucumbir à tentação totalizante, um percurso histórico pode ser um grande aliado nessa tarefa, sempre árdua, de reflexão sobre a atualidade.

Nesse sentido, apostamos na tese de Žižek (2011) de que nossa tarefa é descobrir como dar um passo adiante, como sair de um certo lugar crítico, porém imóvel e fadado à repetição, em um movimento que vislumbre os limites de nosso tempo, a fim de experimentar transpô-los. Portanto, há uma aposta na potência de reinvenção que cada nova situação histórica traz consigo e que, através dos movimentos de abertura e fechamento da Revolução Russa, em seus (des)encontros com a psicanálise, podemos vislumbrar muito bem. Assim, com os olhos direcionados à atualidade, partimos para um percurso histórico.

A psicanálise na Rússia: um breve histórico

Pensar a psicanálise na Rússia requer uma reflexão atenta sobre os fatos históricos, políticos e culturais. Seu surgimento data ainda do tempo do czarismo e as primeiras traduções psicanalíticas no país foram Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, de Freud e Breuer, em 1899, e A interpretação dos sonhos, em 1904. A primeira publicação psicanalítica russa foi um artigo de Nikolai Osipov, em um reconhecido periódico de psiquiatria, em 1908. No entanto, como movimento, a psicanálise só vai se desenvolver em 1909, mesmo ano em que surgiu a primeira revista psicanalítica do país, a qual foi responsável pela difusão e influência do trabalho de Freud na Rússia (Cromberg, 2017). Nesse ano, ainda, teve início a Biblioteca Psicoterapêutica, projeto de Osipov, que contou com a ajuda de Moshé Wulff e Nikolai Aleksêievitch Vyrubov, onde passaram a publicar os trabalhos de Freud em língua russa. De acordo com Cromberg (2017), Osipov foi o responsável pelo desenvolvimento da psicanálise no país, já que passou a realizar encontros semanais sobre pesquisa e psicanálise com seus colegas psiquiatras, publicando, em 1912, um importantíssimo estudo de caso, que foi uma de suas maiores e mais importantes contribuições na área. Vale lembrar, também, que Osipov realizava pesquisas e publicações em psicanálise e literatura, sendo a primeira delas sobre Tolstói.

Nessa época, ainda, a psiquiatra e psicanalista russa Tatiana Rosenthal foi aceita como membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, retornando a São Petersburgo no início da Primeira Guerra Mundial. Torna-se, em 1919, diretora da Policlínica para Tratamento de Psiconeuroses no Instituto de Pesquisas sobre Patologia Cerebral e, em 1920, diretora do centro para crianças psiquicamente debilitadas, ligado ao Ministério da Educação, onde passou a construir a nova instituição de acordo com os fundamentos psicanalíticos de cura e pedagogia (Cromberg, 2017).

Foi nesse período, também, que Sabina Spielrein, psicanalista russa, apresenta seu ensaio A destruição como origem do devir, tornando-se membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. É interessante pontuar que, nesse artigo, a autora antecipa muitas formulações sobre a pulsão de morte, as quais Freud irá desenvolver somente em 1920, no texto Além do princípio do prazer. Além disso, Spielrein fez a primeira contribuição sobre psicanálise com crianças na história. Vivendo no Ocidente desde 1904, atuou como psiquiatra e psicanalista, desenvolvendo muitas pesquisas importantes para a psicanálise sobre a origem da linguagem e o pensamento infantil, retornando ao seu país natal somente após a Revolução de Outubro de 1917, depois de receber cartas de seu pai dizendo que ela poderia desenvolver suas pesquisas e trabalhos sob o novo regime de Lenin (Cromberg, 2017).

Com a Primeira Guerra Mundial, o desenvolvimento da psicanálise estagnou, até 1917. Depois da revolução, no período de consolidação das ideias marxistas, a psicanálise passou a ser apoiada pelo Estado. De fato, Lenin acreditava que, sem uma melhora significativa dos padrões culturais e um desenvolvimento da ciência, não haveria realização dos ideais comunistas; por isso, resistiu a todo custo às tentativas de combinar a abolição do capitalismo com a eliminação de suas conquistas científicas e culturais (Maniakas, 2019). Essa ideia fica clara no discurso pronunciado por Lenin no III Congresso da Komsomol (União da Juventude Comunista da Rússia), em 1920:

Seria errado pensar que basta assimilar as palavras de ordem comunistas, as conclusões da ciência comunista, sem adquirir a soma de conhecimentos adquiridos de que o próprio comunismo é um produto. O marxismo é um exemplo que mostra como o comunismo saiu do conjunto dos conhecimentos humanos. (Lenin, 1920/1974, p. 1)

De acordo com Maniakas (2019), essas considerações foram uma espécie de norte para todas as decisões de Lenin relativas à sua política educacional. Não podemos esquecer que a Rússia, e demais províncias do antigo império, possuíam um índice exorbitante de analfabetismo, principalmente nas regiões rurais. Até meados de 1920, o número de pessoas que sabia ler e escrever não chegava a 20 %. No entanto, a partir do programa educacional de Lenin, a Likbez, voltada para a erradicação do analfabetismo, o quadro começou a se reverter e, até o final dos anos 1930, quase 90 % da população foi alfabetizada (Deslandes, 2019).

O papel da psicanálise nesse contexto é tão importante, que ela chegou a ser considerada pelos bolcheviques como uma espécie de antídoto ao pensamento burguês, sendo reconhecida como ciência pelo governo soviético muito antes de qualquer outro país (Maniakas, 2019). De acordo com Carpintero (2017), a psicanálise na Rússia foi se consolidando a partir de novas experiências, embora presa entre duas perspectivas que se opunham radicalmente: de um lado, a Associação Psicanalítica Internacional, que rejeitou as novas associações russas, as quais nunca chegaram a ser reconhecidas pelos psicanalistas vienenses, que eram, em sua maioria, conservadores. Do outro lado, no partido bolchevique, existiam alguns líderes apoiadores da psicanálise, mas outros a consideravam uma prática burguesa a qual precisavam se opor. Porém, como parte do projeto de uma nova organização social, buscava-se uma nova ciência psicológica que, em articulação com o marxismo, possibilitasse uma nova cultura socialista. Segundo Richebächer (2019), a psicanálise russa estava ancorada no projeto de um “novo homem”, tendo como modelo a máquina que funciona perfeitamente, a Maschinizatsia. Para tanto, os novos psicanalistas passaram a dar mais importância ao elemento pedagógico do que às questões relacionadas à neurose, já que esta existiria apenas no capitalismo, conforme o pensamento então dominante.

Nesse sentido, Carpintero (2017) nos lembra do importantíssimo papel de Alexandra Kollontai por suas contribuições para a história da emancipação feminina e liberdade sexual. Kollontai esteve engajada nas mudanças que se tentava operar naquela época, com o intuito de romper com o modelo de família tradicional patriarcal. Seu entendimento da sexualidade divergia em muitos pontos dos propostos por Freud; no entanto, os psicanalistas russos daquele período contribuíram para o desenvolvimento de suas ideias, que consistiam, basicamente, em romper com os preconceitos há muito tempo enraizados. Desde muito jovem, Kollontai abraçou as ideias revolucionárias, tornando-se, posteriormente, a primeira mulher a participar de um governo. Carpintero (2017) pontua, ainda, que nos anos de 1920 Kollontai pertencia à oposição operária do Partido Socialista, o qual questionava o excessivo centralismo político. Apesar disso, foi nomeada Comissária Popular da Assistência Pública e sua luta se deu, principalmente, para alcançar a igualdade entre homens e mulheres. Nesse momento, as mulheres russas obtiveram pleno direito ao voto, o matrimônio tornou-se um ato voluntário, filhos legítimos e ilegítimos passaram a ter o mesmo estatuto, os salários entre homens e mulheres foram igualados e um salário maternidade universal foi criado. Era a primeira vez na história que um país passava a ter liberdade total de divórcio e aborto livre e gratuito.

Em 1921, foi criada a Associação Psicanalítica de Pesquisadores da Criação Artística por Ivan Ermakov e Moshé Wulff. No ano seguinte, foi fundada a Sociedade Psicanalítica de Moscou, a qual, de acordo com Carpintero (2017), foi organizada em três seções: a primeira voltada aos problemas psicológicos da criatividade, conduzida por Ermakov; a segunda voltada para análises clínicas e liderada por Wulff; e a terceira tratava da aplicação da psicanálise ao sistema educativo, dirigida pelo psicanalista e matemático Otto Schmidt, marido de Vera Schimidt. Esta, também psicanalista, atuou ativamente no Lar Experimental de Crianças, fundado em 1921, em Moscou, com um projeto pedagógico baseado nos preceitos psicanalíticos em articulação aos do marxismo, em oposição aos métodos ditos tradicionais.

Podemos dizer que o ideal pedagógico preconizado por Vera Schmidt era a manifestação viva do espírito dos anos 1920, que, depois da Revolução de Outubro, buscava concretizar o sonho de uma fusão possível entre a liberdade individual e a liberação social: uma verdadeira utopia pedagógica que combinava princípios freudianos ao ideal marxista (Maniakas, 2019, p. 132).

Nessa época, uma segunda Sociedade Psicanalítica foi fundada em Kazan por Alexander Romanovich Luria, o qual teve um importante papel durante o curto apogeu da psicanálise bolchevique, defendendo a ideia de que a psicanálise deveria se unir às metas da revolução. No grupo de estudo de psicanálise que Luria organizou em 1922, participavam médicos, psicólogos, pedagogos e uma escritora, com o propósito de fazer leituras críticas dos escritos de Freud. Richebächer (2019) nos lembra que, no final de 1923, Luria tornou-se diretor do Laboratório do Instituto de Psicologia Experimental na Universidade de Moscou e seu chefe, Konstantin Kornilov, queria colocar a psicologia em uma base materialista de acordo com as teorias de Marx e Engels. Outro fato importante foi que Luria trabalhou na Academia do Ensino Comunista, dirigida por Nadezhda Krupskaia, esposa de Lenin. Nessa época, na Sociedade Psicanalítica de Moscou, formou-se o primeiro Instituto de Psicanálise do país e o terceiro do mundo, depois de Viena e Berlim, sendo a única instituição psicanalítica sustentada financeiramente pelo Estado, visto os interesses dos bolcheviques pela psicanálise na construção do socialismo. Pelo fato de constituir-se como Instituto e, portanto, formar analistas, deveria ter a aprovação da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), o que não aconteceu. No entanto, finalmente, sob a influência de Freud, formou-se a Sociedade Psicanalítica Pan-Russa, que incluía psicanalistas de diversas cidades do país, tendo como coordenadores Otto Schmidt e Alexander Luria (Carpintero, 2017).

Em 1922, o Lar Experimental de Vera Schmidt começou a ter dificuldades financeiras, passando por um momento de questionamento de sua validade pelos organismos superiores do Estado. Por conta disso, em 1923, Vera e Otto Schmidt viajam a Berlim e Viena para pedir a Freud e Karl Abraham apoio ao Lar Experimental de Crianças e à Sociedade Psicanalítica Russa. Embora Freud tenha se disposto a ajudá-los, Vera ficou isolada no debate sobre a psicanálise de crianças, sem nunca ter sido realmente apoiada pela Associação Psicanalítica Internacional, em função dos muitos boatos que cercaram essa experiência educacional (Matthiesen, 2001). Em 1924, sob a pressão das autoridades soviéticas, o Lar Experimental fechou suas portas.

As polêmicas, de alguma forma, não paravam de crescer, principalmente pelo fato de Trótski e outros intelectuais considerados oposição a Stalin serem favoráveis à psicanálise. Embora para Lenin a psicanálise não fosse um interesse pessoal, para Trótski era diferente, já que visava uma discussão sobre o estabelecimento de uma psicologia marxista. Além disso, em seus escritos encontramos muitas referências à psicanálise, já que o revolucionário entendia que esta tinha um papel importante na revolução, uma vez que trazia uma nova forma de pensar sobre os sujeitos e deveria ser revista, se fosse o caso, pelo próprio proletariado:

A vanguarda proletária, para trabalhar, necessita de alguns pontos de apoio, alguns métodos científicos suscetíveis de libertar a consciência do jugo ideológico da burguesia; em parte já os possui, em parte ainda deve adquiri-los. Ela já testou seu método fundamental em numerosas batalhas e nas mais diversas condições. Mas daí a uma ciência proletária há um longo caminho. A classe revolucionária não pode interromper seu combate porque o partido ainda não decidiu se deve aceitar ou não a hipótese dos elétrons e dos íons, a teoria psicanalítica de Freud, a genética, as novas descobertas matemáticas da relatividade etc. O proletariado, após conquistar o poder, terá certamente possibilidades muito maiores para assimilar a ciência e revê-la. (Trótski, 2007, p. 146)

Além disso, Dunker (2017), em “Freud e a Revolução Russa” nos lembra de uma famosa carta escrita por Trótski a Pavlov, em 1923:

Durante meus anos em Viena eu tomei contato com os freudianos, li seus trabalhos e até mesmo estive presente em seus encontros. […] Eles fizeram uma série de descobertas e conjecturas inteligentes apesar de cientificamente arbitrárias sobre as propriedades da mente humana. […] A teoria psicanalítica de Freud pode ser reconciliada com o materialismo. (s.p)

De acordo com Dunker (2017), a simpatia de Trótski pela psicanálise pode ter sido seu abraço de morte, já que muitos o acusaram de dar alento a uma psicologia burguesa, esquecendo-se das ideias neuropsicológicas que surgiam. O divisor de águas foi a morte de Lenin, em 1924. Com as disputas políticas acirradas e a ascensão de Stalin ao poder, Trótski, que era um de seus maiores adversários, passou por uma grande queda política e, com ele, também a psicanálise. Embora o envolvimento de Trótski tenha sido um fator de inegável importância, tanto para a ascensão quanto para a queda da psicanálise no país, outros fatores também estiveram presentes. Havia um privilégio concedido ao estudo da psique em seu substrato materialista, na medida em que o contexto era marcado por uma concepção fisiológica de inspiração evolucionista da mente. Assim, a psicanálise e tantas outras teorias foram deixando de fazer parte dos debates e “condenada como um desvio burguês antissocial e ultraindividualista, além de ideologicamente antiproletário” (Cromberg, 2017, p. 120).

Não podemos esquecer que, após a morte de Lenin, o governo de Stalin tomou conta de praticamente todos os âmbitos da vida social russa e todas as ideias que pudessem ir contra as suas eram demonizadas, suscetíveis a uma espécie de “caça às bruxas”. Nesse sentido, a liberdade de associação foi proibida, de modo que, para existir uma ligação com a psicologia, se deveria seguir a corrente oficial, baseada em uma adaptação mecanicista da psicologia de Pavlov (Carpintero, 2017); qualquer outra vertente de pensamento que surgisse era considerada uma ameaça ao pensamento de Stalin. Além disso, a “família tradicional” voltou com tudo: a homossexualidade passou a ser considerada uma perversão, passível de punição, e o aborto e divórcio foram proibidos.

Assim como no mundo das artes, depois do período das vanguardas e experimentações pós-revolução a psicanálise passou anos presa nos porões da sociedade russa. De acordo com Richebächer (2019), na primavera de 1925 aconteceu uma discussão sobre psicanálise e marxismo na Casa Moscovita de Imprensa que durou dois longos dias. Depois disso, foi ordenada a proibição da publicação de textos psicanalíticos e o Instituto Estatal de Psicanálise foi dissolvido por decreto. Alguns anos depois, Luria teve que renunciar, publicamente, à psicanálise e a seu envolvimento com Freud, como uma forma de manter-se vivo. Em função da pressão exercida pelo regime, Luria alterou diversas vezes seus temas de pesquisa e suas opiniões, tendo, inclusive, graduado-se em medicina, tornando-se neurologista e neuropsicólogo conhecido mundialmente, com centenas de publicações em inúmeras línguas (Richebächer, 2019).

Os debates sobre a introdução do marxismo-leninismo nos campos da ciência começaram em 1930 e a psicanálise foi denunciada como teoria reacionária. Agora, a psicanálise não tinha vez, sendo considerada uma prática antissoviética, burguesa e desviante. De acordo com Richebächer (2019), a psicanálise foi oficialmente proibida em 1933 e, em 1936, o partido aprovou uma resolução contra a “distorção pedagógica” no campo da educação, fazendo com que Spielrein perdesse seu emprego de pedagoga. Nesse momento, vislumbramos os efeitos do fechamento discursivo que relegou a psicanálise ao enclausuramento, depois de anos sendo praticada como uma ferramenta para a emergência do novo homem soviético.

Somente em 1953, com a morte de Stalin, o quadro começou a se deslocar, principalmente após o Discurso secreto de Nikita Kruschev, em 1956, no XX Congresso do Partido Comunista, onde o então líder do partido denunciou os crimes da Era Stalin, o que possibilitou algumas brechas no campo das políticas de censura. Após mais de 25 anos, um jornal devoto à psicologia traz uma crítica ao pavlovismo monolítico, que havia se tornado a teoria psicológica oficial e, assim, o freudismo volta às luzes através da publicação de artigos sobre temas relacionados à infância, à neurose e ao inconsciente, mesmo que de forma crítica, e os pesquisadores e conhecedores da psicanálise começam a ganhar espaço (Cromberg, 2017). Em meados dos anos 1960, há um revival do interesse por Freud em um estilo soviético peculiar, já que não se tratava de uma celebração, mas de uma renovação da condenação em um novo discurso crítico liderado por especialistas altamente familiarizados com as obras do pai da psicanálise.

Nos anos 1970, a partir das mudanças trazidas pelo golpe de Leonid Brejenev e o retorno ao stalinismo, a psiquiatria passou a ocupar um lugar substancial nas decisões políticas, já que muitos dissidentes eram tachados como portadores de desordens psíquicas, sendo enviados para hospitais psiquiátricos de caráter prisional. Nesse período, o discurso de Freud pode ser dividido em três categorias: a área psiquiátrica; o paradoxal trabalho de reabilitar o conceito de inconsciente de Freud para, posteriormente, desabilitá-lo em nome de um inconsciente fisiológico; e, por fim, uma literatura mais inovadora, interessada na psicanálise ocidental, principalmente nos trabalhos de Erich Fromm e Jacques Lacan (Cromberg, 2017). Em meio aos paradoxos desse período, no final dos anos 1970 os trabalhos de cunho psicanalítico podiam ser lidos ou discutidos, mas não podiam ser publicados ou praticados em consultórios particulares ou hospitais. De fato, a ideia de inconsciente, uma noção central na psicanálise, passou a ser utilizada como um meio para os avanços nas teorias fisiológicas dos cientistas soviéticos.

Desse modo, foi só depois da metade dos anos 1980 que a psicanálise voltou a ter um lugar mais definido. A partir da reestruturação política proposta por Gorbachev, da abertura dos arquivos proibidos e do acesso aos segredos de Estado, o inconsciente reprimido veio à tona. De acordo com Cromberg (2017), a psicanálise ocupou um lugar de suma importância nessa última fase soviética, como uma metodologia para interpretar o passado e como parte da reafirmação de valores do individualismo na sociedade mais ampla e, após exatos 60 anos, a obra de Freud passa a ser publicada no país novamente e as instituições psicanalíticas voltam a surgir. Vale lembrar que, mesmo depois de silenciada, a psicanálise ainda foi praticada às escondidas por algum tempo e, assim como muitos escritores censurados nesse período, teve suas obras publicadas através de samizdat, as autopublicações independentes.

A perspectiva da esquerda freudiana: o caso Wilhelm Reich

Em 1929, o psicanalista austríaco Wilhelm Reich foi convidado a visitar a União Soviética. O que ele encontrou por lá foi uma situação bastante paradoxal: por um lado, havia os marxistas que desacreditavam da psicanálise por ser uma “filosofia idealista burguesa”, por outro, a psicanálise já era praticada em vários espaços e a Rússia havia iniciado uma legislação sexual e familiar gradual que, em muitos aspectos, coincidia com as suas propostas teóricas (Boadella, 1985). Ao retornar dessa viagem, Reich apresentou uma conferência na casa de Freud sobre o tema “profilaxia das neuroses”, do qual Freud discordava, visto que, em sua teoria, a neurose seria uma condição inerente ao processo de civilização. Em 1952, em uma entrevista para um representante dos Arquivos Sigmund Freud, Reich afirma que O mal-estar na cultura, de Freud, teria sido escrito em resposta a essa conferência (Albertini, 2003). Se esse fato é verdade ou não, nunca saberemos. No entanto, é inegável o mal-estar na cultura europeia do início dos anos 1930, que Reich denuncia, principalmente ao deparar-se com os retrocessos da revolução, conforme relata em seu trabalho A revolução sexual, escrito em 1936.

Até meados de 1935, Reich acreditava que a Revolução Russa consistia em um modelo que havia conseguido colocar em prática um programa revolucionário em vários campos da vida, para além do social e político, mas também no campo sexual, o que para ele era de suma importância. Embora em sua visita à URSS Reich tenha encontrado oposição às ideias psicanalíticas por parte de alguns comunistas, somente em 1934, a partir do trabalho O que é a consciência de classe? (Reich, 1976), começa a colocar em questão os destinos da revolução. No entanto, sua crítica é direcionada à direção do Partido Comunista e não ao partido propriamente dito.

Um dos encontros que marcou a visita de Reich à URSS foi com a proposta educacional de Vera Schmidt. Para Reich (1981), essa proposta teria aberto possibilidades não autoritárias para o desenvolvimento infantil, o que andaria na contramão de uma “educação pastoral”, ou seja, baseada em preceitos conservadores, impulsionada por “intelectuais sexualmente distorcidos, revolucionários por motivos neuróticos, os quais ao invés de ajudar com o saber, apenas criam confusão” (p. 290). De fato, a proposta pedagógica de Vera Schmidt fazia uma aposta na dimensão da sexualidade infantil. Para que isso fosse possível, deveria se instituir uma educação sexual positiva, onde as educadoras estariam preparadas para acompanhar o desenvolvimento sexual das crianças, bem como fomentar a sublimação dos impulsos.

As crianças do lar [...] de Vera Schmidt de nenhuma maneira eram impedidas de satisfazer sua vontade de movimentação, tiveram oportunidade de brigar, pular, correr e fazer o que lhes agradasse. Assim, puderam não somente desgastar esses anelos naturais, mas também valorizá-los culturalmente. Isso está de pleno acordo com o conceito sexual-econômico de que a liberdade do impulso infantil é a pressuposição para a sua sublimação, e, portanto de seu aproveitamento cultural, e de que sua inibição o afasta da sublimação por ser reprimido. (Reich, 1981, pp. 286-287)

Para Reich, essa relação de liberdade com a sexualidade seria um modo de profilaxia em relação às neuroses. Em sua denúncia da ordem social capitalista, Reich pontua que a família compulsória reproduziria uma moral sexual repressiva, tal qual a criticada por Freud no trabalho A moral sexual .civilizada. e doença nervosa moderna, de 1908. No entanto, por conta de diversos fatores, como a educação sexual negativa dos próprios educadores, essa proposta não teria ido adiante.

Reich (1977) tece algumas articulações entre psicanálise e marxismo, afirmando que ambas seriam como irmãs: “Sociologicamente, o marxismo era a expressão de uma tomada de consciência das leis econômicas, da exploração de uma maioria por uma minoria; da mesma forma, a psicanálise era a expressão de uma tomada de consciência da repressão sexual social” (p. 121). No entanto, nos mostra que, na psicanálise, haveria algo “intrinsecamente não-marxista” (Boadella, 1985, p. 67), já que cada um desses sistemas se caracterizaria por um ponto de vista particular. Em Materialismo dialético e psicanálise, Reich (1977) aponta algumas contradições internas ao movimento psicanalítico:

Resulta daqui, em conclusão, que a aplicação consciente ou inconsciente do materialismo dialético no domínio da psicologia, nos fornece os resultados da psicanálise clínica, que a aplicação destes resultados na sociologia e na própria política levam a uma psicologia social marxista, enquanto que a aplicação do método psicanalítico aos problemas da sociologia e da política, redunda, necessariamente, numa sociologia metafísica psicologizante e, o que é mais, reacionária [grifo do autor]. (p. 167)

Se, por um lado, as descobertas psicanalíticasforam como uma bomba cultural que parecia representar uma ameaça aos valores tradicionais, por outro, certos pontos de vista desenvolvidos pelos psicanalistas se prestaram a sustentar o status quo e os próprios valores tradicionais (Boadella, 1985).

Para Reich, uma revolução social só seria possível a partir de uma revolução no âmbito da sexualidade, visto que o desenvolvimento desta andaria junto ao da cultura. Nesse sentido, a legislação soviética de 1917 a 1921 estaria na direção certa, já que, no contexto da Revolução de Outubro de 1917, havia iniciado uma nova concepção de sexualidade, a começar pela educação das crianças e a respeito do entendimento de família. Nesse período, a família compulsória deixou de ser um paradigma e as relações poderiam acontecer através do desejo e dos vínculos afetivos entre os sujeitos, e não pela obrigação do Estado. Além disso, a homossexualidade deixou de ser motivo de punição, o divórcio era livre e o aborto, também, como mencionado anteriormente.

No entanto, Reich (1981) afirma que, em meados de 1923, já era possível perceber alguns movimentos contrários às mudanças culturais. Porém, somente de 1933 a 1935 teriam surgido as medidas retrógadas. Reich pontua que muitos conceitos errôneos circulavam naquele momento, como a ideia de que a existência social seria incompatível com a vida sexual ou de que a vida sexual causaria distração na luta de classes: “Sexualidade e cultura apareciam como opostos absolutos” (p. 215). Outra hipótese de Reich para o refreamento da revolução sexual seria a difusão de opiniões que afirmavam que, com a queda da burguesia e com a legislação sexual soviética, a revolução sexual estaria realizada e, pelo fato de o proletariado ter assumido o poder, a questão se resolveria por si só. Com isso, se deixou de perceber que a tomada do poder pelos bolcheviques e a legislação sexual teriam apenas criado condições para as modificações na vida sexual, mas não eram elas próprias essa vida, deveria existir um trabalho constante de construção.

Portanto, Reich (1981) deixa claro que os retrocessos da Revolução Russa estariam diretamente atrelados aos retrocessos da revolução sexual. Para o psicanalista, a burocratização das leis sobre a sexualidade teria sido o golpe inicial para o fim dos anos revolucionários, trazendo consigo o aumento da violência. Em vez do reconhecimento desse âmbito da vida e sua possível dominação, como aconteceu nos primeiros anos de revolução, o que ocorreu foi uma moralização desenfreada. Os homossexuais voltaram a ser perseguidos e o aborto, proibido. O lugar das mulheres voltou a ser de subjugadas aos seus maridos e os estigmas em torno da sexualidade ganharam cada vez mais força, ecoando ainda nos dias atuais, como veremos a seguir.

E o que Freud disse sobre a revolução?

Freud viveu nos anos de alguns dos maiores marcos da história. Presenciou a primeira onda do movimento feminista; uma guerra mundial e a iminência de outra; a perseguição aos judeus (da qual também foi alvo); o levantar das bandeiras nazistas; o apogeu e o fim do czarismo na Rússia, bem como a Revolução Russa e seus paradoxos. Sendo um grande observador da cultura e interessado nos assuntos que dizem respeito a ela, podemos considerar que falou muito pouco sobre essa revolução, visto a importância dela no contexto cultural mundial e ao espaço que concerniu à psicanálise depois de 1917. No entanto, o pouco que encontramos em sua obra relativo ao assunto diz muito a respeito de seu entendimento sobre os rumos que o mundo estava tomando, bem como sobre as ditas “visões de mundo” [Weltanschauung], já que, no texto em que se debruça sobre esse tema, dedica nada menos do que cinco páginas ao assunto.

No entanto, a primeira referência que encontramos consta em Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, quando Freud escreve a respeito da intolerância religiosa, sobre o fato de as religiões abraçarem com amor todos os seus membros e serem cruéis com quem não faz parte dela. Para Freud (trad. em 1992a), outro laço de massas que substituiria o religioso com características similares seria o laço socialista, no qual “se manifestará a mesma intolerância aos estranhos que na época das lutas religiosas, e se alguma vez as diferenças de concepção científica chegassem a alcançar uma situação semelhante para as massas, o mesmo resultado se repetiria, com essa motivação” (p. 94).

Já em O futuro de uma ilusão, Freud (trad. em 2018) inicia sua reflexão deixando claro que não tem a intensão de julgar “o grande experimento cultural que está sendo feito atualmente na vasta nação situada entre a Europa e a Ásia” (p. 44), visto que não possuiria condições para tal: “Por estar incompleto, o que lá está em preparo escapa a considerações para as quais a nossa cultura, há tempos consolidada, oferece o material” (p. 45). Freud assume uma posição de leigo devido à atualidade dos fatos, mas isso não o impede de traçar reflexões e, mais adiante, fazer um jogo de perguntas e respostas, no qual, com perspicaz ironia, se refere ao regime socialista:

Além disso, o senhor nada aprendeu da história? Essa tentativa de substituir a religião pela razão já foi feita uma vez, oficialmente e em grande estilo. O senhor se recorda da Revolução Francesa e de Robespierre, certo? Mas também do quanto o experimento foi efêmero e do seu lastimável malogro. Esse experimento está sendo repetido agora na Rússia, e não precisamos ficar curiosos quanto ao resultado. (Freud, trad. em 2018, p. 116)

No clássico O mal-estar na cultura, escrito na época em que a psicanálise estava quase extinta na Rússia, Freud disserta sobre a tendência humana à agressão e como a sociedade aculturada estaria constantemente ameaçada de ruína. Por conta disso, a cultura necessitaria impor certos limites aos impulsos agressivos, os quais poderiam ser manejados, embora nunca extintos. Nesse contexto, refere-se ao comunismo da seguinte forma:

Os comunistas acreditam ter encontrado o caminho para a redenção do mal. O homem é inequivocamente bom, bem-intencionado em relação ao próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu a sua natureza. A posse de bens privados dá poder ao indivíduo e, assim, a tentação de maltratar o próximo; àquele que é excluído da posse não resta senão rebelar-se contra o opressor. Caso a propriedade privada fosse abolida, todos os bens fossem tornados comuns e permitido a todos o seu usufruto, a malevolência e a hostilidade entre os homens desapareceriam. Visto que todas as necessidades estariam satisfeitas, ninguém teria motivo para ver no outro o seu inimigo; todos se submeteriam de boa vontade ao trabalho necessário. Nada tenho a ver com a crítica econômica ao sistema comunista, não posso averiguar se a abolição da propriedade privada é oportuna e vantajosa. Mas posso reconhecer seu pressuposto psicológico como uma ilusão inconsciente. Com a supressão da propriedade privada, a agressividade humana é despojada de um de seus instrumentos, certamente poderoso, mas certamente não o mais poderoso. (Freud, 2015, pp. 127-128)

Continuando sua reflexão, Freud pontua que a propriedade privada não seria a causa, por excelência, da agressividade entre os homens. Sendo assim, os ideais comunistas, tomados ao pé da letra, não passariam de ilusões, visto que a agressão não teria sido criada pela propriedade privada, já que reinaria de forma irrestrita nas épocas pré-históricas, quando a propriedade ainda era escassa, bem como subjaz às diversas formas de relações humanas.

Um pouco mais adiante, Freud (trad. em 2015) desenvolve o conceito de “narcisismo das pequenas diferenças”, ao enfatizar a dificuldade do ser humano em renunciar à tendência agressiva, de modo que isso o leva, muitas vezes, a criar grupos restritos que oferecem um escape a esses impulsos, na medida em que hostilizem aqueles que se encontram fora dele: “É sempre possível ligar uma quantidade maior de seres humanos no amor entre si quando restam outros para as manifestações da agressão” (p. 129). Nesse sentido, Freud entende que:

não foi nenhum acaso incompreensível que o sonho de um domínio germânico mundial invocasse o complemento do antissemitismo, e se reconhece como compreensível que a tentativa de erigir na Rússia uma nova cultura comunista encontre seu apoio psicológico na perseguição aos burgueses. É apenas com preocupação que se pode perguntar o que os sovietes farão depois que tiverem exterminado os seus burgueses. (Freud, 2015, pp. 130-131)

O questionamento de Freud tende a nos levar a uma angústia instantânea, já que evidencia a face mortífera de leituras tomadas em um sentido unívoco, como foi o caso do marxismo russo. Não seria essa uma tendência que ronda o espírito de nosso tempo, a atualidade de uma circunstância que se repete, ainda que em um contexto distinto? Quando mencionamos uma inclinação contemporânea aos fechamentos discursivos não estamos, no fim das contas, falando sobre a face mortífera das visões de mundo que, tomadas ao pé da letra, podem gerar sérios conflitos sociais? Não podemos negar que Freud tinha os dois pés no chão quando tratava do assunto, pois não se deixou cegar pelas ilusões que subjazem às promessas de resolução do mal-estar na cultura.

Não é ao acaso que, em Por que a guerra?, em resposta à famosa carta de Einstein, Freud (trad. em 1992b) volta ao tema da revolução, trazendo que muitas pessoas acreditariam que o triunfo da mentalidade bolchevique seria o único meio de pôr fim à guerra. No entanto, estaríamos muito longe desse objetivo que, talvez, só fosse alcançado depois de inúmeras e terríveis guerras civis. Mais adiante, constrói uma reflexão muito próxima à trazida em O mal-estar na cultura, afirmando, novamente, desconfiar da felicidade plena. Sobre isso, evoca outra vez os bolcheviques que, segundo suas palavras:

esperam que a agressão desapareça entre os homens, assegurando-lhes a satisfação de suas necessidades materiais e, no restante, estabelecendo a igualdade entre os participantes da comunidade. Eu considero isso uma ilusão. Por enquanto, eles tomam o máximo cuidado em seus armamentos, e o ódio por estrangeiros não é o menos intenso dos motivos com os quais eles promovem a coesão de seus seguidores. (Freud, trad. em 1992b, p. 195)

Talvez, em muitos momentos, a visão de Freud sobre o socialismo soe com um ar pessimista pelo fato de, diferentemente da psicanálise, se tratar de uma “cosmovisão”, uma “visão de mundo” ou, simplesmente, uma Weltanschauung, que seria, de acordo com Freud (trad. em 1992c), uma construção intelectual que solucionaria, de forma única, todos os problemas de nossa existência a partir de uma hipótese universal. Desse modo, uma cosmovisão seria uma suposição fechada, sem brechas, sem aberturas e, por isso, a psicanálise não se enquadraria nessa definição, justamente pelo fato de não trazer uma resposta universal para todas as mazelas dos seres humanos, mas se volta para a singularidade, o universo de cada um. Nessa perspectiva, a psicanálise operaria no sentido contrário às tendências maniqueístas contemporâneas, abrindo campos de inscrição mais além das polarizações discursivas.

Por não ter uma cosmovisão própria, a psicanálise deveria aceitar a da ciência, já que trabalharia com certos pressupostos científicos. No entanto, a própria ciência, muitas vezes, buscaria algo da ordem da unicidade, de soluções universais e, por causa disso, não poderia dar conta da psicanálise, a qual estaria mais além por não almejar o absoluto, nem mesmo formar um sistema.

Nesse contexto, Freud (trad. em 1992c) afirma que existem três poderes que podem disputar o lugar da ciência: a arte, a filosofia e a religião, sendo esta última seu maior inimigo, já que a arte seria inofensiva e benéfica e a filosofia não seria oposta à ciência, mas operaria a partir dos mesmos princípios. De certa forma, a religião ocuparia esse lugar por se tratar de um sistema pronto, com explicações e soluções para todas as angústias humanas, um sistema absoluto de ilusões e promessas. Para poder manter esse status, a proibição de pensar seria sua base. É nesse ponto que Freud irá pensar a revolução, já que:

[...] em sua realização no bolchevismo russo, o marxismo teoricamente recebeu a energia, o absolutismo e o exclusivismo de uma cosmovisão, mas, ao mesmo tempo, uma semelhança perturbadora com o que combatia. Sendo originalmente um fragmento da ciência, construído sobre ciência e técnica para sua realização, criou uma proibição para o pensamento como aquele decretado pela religião. Toda investigação crítica da teoria marxista é proibida; dúvidas sobre sua correção são punidas tal qual as heresias foram punidas pela Igreja Católica. As obras de Marx substituíram a Bíblia e o Alcorão como fontes de uma revelação, embora não possam ser mais livres de contradições e obscuridades do que os antigos livros sagrados. (Freud, trad. em 1992c, p. 166)

No fim das contas, é sobre uma leitura unívoca que Freud (trad. em 1992c) está tecendo sua crítica. Para o psicanalista, existiriam homens inacessíveis à dúvida, insensíveis aos sofrimentos dos outros quando o que está em jogo são os seus propósitos. A tais homens:

... devemos que se tenha realizado, agora na Rússia, o grandioso ensaio de uma nova ordem desta índole. Em uma época em que grandes nações proclamam esperar a sua salvação da única reafirmação da piedade cristã, a revolução na Rússia, apesar de seus desagradáveis detalhes, produz o efeito de evangelho de um futuro melhor. Infelizmente, nem de nossa dúvida nem da fé fanática dos outros surge algum indício sobre o futuro desenlace deste ensaio. (pp. 167-168)

De um modo geral, Freud constrói um pensamento cético sobre a Revolução Russa, não caindo no engano das promessas infinitas. Em seus textos, nos parece claro o seu posicionamento, que está para além de tomar um partido, mas nem por isso é menos político. Freud mostra-se crítico aos extremismos sufocantes, às leituras dogmáticas e aos pensamentos unívocos. Por isso, concordamos com Dunker (2017), quando este traz que, talvez, Freud tivesse percebido que as chances da revolução, assim como da psicanálise, são sempre pequenas, mas nem por isso impensáveis.

Considerações finais

Mais de 100 anos se passaram desde a revolução e a psicanálise continua sendo tema de fortes discussões no país. Em diversas cidades russas têm surgido grupos de psicanálise, desde que o presidente Boris Iéltsin assinou o decreto sobre o “Restabelecimento e desenvolvimento da psicanálise filosófica clínica e aplicada como uma direção da ciência moderna”, em 1996 (Richebächer, 2019). Além disso, vários métodos de psicoterapia proibidos pelas autoridades nos anos de fechamento estão ganhando espaço, competindo com outras formas de tratamento; no entanto, a psicanálise freudiana é, de longe, a mais desafiadora e controversa (Stanley, 1996).

Agora, a psicanálise faz parte do currículo dos estudantes de psicologia e é ministrada em algumas universidades. A pedido de Richebächer (2019), Filipp Filatov, da Universidade Técnica do Estado de Don, por ocasião do Encontro do pensamento utópico – destrutividade – capacidade democrática, escreveu o seguinte, a respeito da atual situação da psicanálise no país:

Na véspera do aniversário de cem anos da Revolução de Outubro, o destino da psicanálise na Rússia se tornou um tema a ser discutido; mais ainda, um tema doloroso e, em muitos sentidos, sintomático. Na orientação pela psicanálise torna-se visível o espírito do tempo – o espírito do tempo atual, que na Rússia ainda não é fácil para os profissionais e para os artistas. Toda uma série de circunstâncias é responsável pela situação problemática da psicanálise. Primeiro: continua obscura a base legal e científica da psicanálise, bem como o aconselhamento psicológico de modo geral. A psicanálise é percebida de modo conceitual na interface das ciências humanas e da natureza, mas em nenhum dos dois modos de atuação científica ela se sente totalmente em casa: “Em ambos um hóspede ocasional, mas não um aliado” [de um poema de Alexei Konstantinovitch Tolstói e outro de Marina Tsvetaeva, que tomou esse mote em sua primeira linha]. Isso põe em questão seu status no sistema educacional e de produção do saber, onde as únicas escolas e disciplinas científicas possuem um lugar precisamente determinado e ficam nitidamente separadas uma da outra. Enquanto ajuda psicológica para a população entende-se ainda muito provavelmente psiquiatria e farmacologia. Esses estereótipos fazem com que seja pouco tangível a ocupação com a psicanálise, subordinada ao campo da mística e do obscurantismo. Segundo: Pseudoespecialistas sem escrúpulos se utilizam da indeterminação legal para oferecer seus serviços duvidosos sob o nome de “psicanálise” – sem possuírem, aliás, a formação psicanalítica necessária– e, com isso, aumentar a má fama da psicanálise na Rússia. (Richebächer, 2019, p. 1)

De acordo com Richebächer (2019), a intolerância existente hoje na Rússia contra minorias sexuais é constantemente projetada sobre os psicanalistas, já que a psicanálise seria a causadora de uma suposta “decadência moral da nação”, ao defender o direito dos sujeitos expressarem suas idiossincrasias libidinais. Além disso, a psicanálise é acusada de provocar e legitimar a aceitação social da homossexualidade, do incesto e da pedofilia, já que possui pesquisas para tentar entender o que há por trás dos fenômenos em questão. Não é de estranhar que, em 2017, sem motivo aparente, o Instituto Leste-Europeu de Psicanálise de São Petersburgo tenha fechado suas portas, depois de mais de 20 anos contribuindo com a formação de psicanalistas.

De fato, a caça às bruxas não ocorre apenas na Rússia. Existe um movimento mundial em prol de teorias psicológicas com promessas de explicações e soluções rápidas e “eficazes” para as mazelas dos seres humanos. No entanto, levando em consideração a história da Rússia, ao longo do século XX, talvez o atual movimento anti-psicanálise faça parte de um esforço no sentido de manter subjugadas as potências eróticas liberadas pela revolução, sobre as quais desabaram as tendências totalitárias da Weltanschauung comunista.

Nesse ponto, Žižek (2011) é certeiro: o comunismo não deveria ser tomado como uma solução, mas como um problema, ou seja, como algo a ser pensado e reinventado em cada nova situação histórica. Arriscamos dizer que com a psicanálise não é diferente. Ainda que possa, a todo momento, ser transformada em uma visão de mundo, entendemos que ela não carrega consigo características universais que podem ser aplicadas em qualquer situação, mas justamente o contrário: ela sustenta um lugar vazio no campo do discurso a ser ocupado com aquilo que, em um determinado tempo, pulsa nos caminhos insabidos da razão.

Se o mundo em que habitamos —sujeitos do início do século XXI— parece constituir bolhas narcísicas organizadas, em termos binários, por meio de algoritmos; se nele as significações tendem a coagular, o que acarreta o (re)aparecimento de velhos e novos dogmatismos fanáticos; talvez revisitar os mais de cem anos de tensões entre psicanálise e Revolução Russa possa trazer um alento. Para os psicanalistas, no sentido de abrirem sua escuta para vozes que insistem em ecoar, ainda que sem obter registro nos arquivos históricos. Para os revolucionários sociais, no sentido de se interrogarem se ajudam a pôr em movimento uma maquinaria de produzir discursividades totalizantes, as quais não apenas excluem a diferença, como visam eliminá-la.

Referências

Albertini, P. (2003). Reich e a possibilidade do bem-estar na cultura. Psicologia USP, 14(2), 61-89. https://doi.org/10.1590/S0103-65642003000200006

Boadella, D. (1985). Nos caminhos de Reich (E. R. B. Rabelo, M. S. M. Netto & I. de Carvalho Filho, Trads.; 2. ed.). Summus.

Carpintero, E. (2017). Los freudianos rusos y la Revolución de Octubre. In E. Carpintero (Org.), El psicoanálisis en la revolución de octubre [E-book]. Topía.

Cromberg, R. U. (2010). Primeiras psicanalistas. Percurso, 23(45), 35-36. http://revistapercurso.uol.com.br/index.phpapg=artigo_view&ida=129&ori=edicao&id_edicao=45

Cromberg, R. U. (2017). Psicanálise na Rússia. In P. S. Souza Jr. (Org.), A psicanálise e os lestes (vol. 1, pp. 91-141). Annablume Editora

Deslandes, G. (2019, 1 de novembro). A longa luta da Rússia soviética para erradicar o analfabetismo. Ópera: Revista Independente, https://revistaopera.com.br/2019/11/01/a-longa-luta-da-russia-sovietica-para-erradicar-o-analfabetismo/

Dunker, C. (2017, 13 de setembro). O que Freud disse sobre a Revolução Russa? Blogda Boitempo. https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/13/oque-freud-disse-sobre-a-revolucao-russa/

Freud, S. (1992a). Psicología de las masas y análisis del yo (J. L. Etcheverry, Trad.). In S. Freud, Obras completas (2. ed., vol. 18, pp. 63-136). Amorrortu editores. (Trabalho original publicado em 1921).

Freud, S. (1992b). ¿Por qué la guerra? (Freud y Einstein) (J. L. Etcheverry, Trad.). In S. Freud, Obras completas (2. ed., vol. 22, pp. 179-198). Amorrortu editores. (Trabalho original publicado em 1933)

Freud, S. (1992c). Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis (J. L. Etcheverry, Trad.). In S. Freud, Obras completas (2. ed., vol. 22, pp. 1-168). Amorrortu editores. (Trabalho original publicado em 1933)

Freud, S. (2015). O mal-estar na cultura (R. Zwick, Trad.; 2. ed.). L&PM. (Trabalho original publicado em 1930)

Freud, S. (2018). O futuro de uma ilusão (R. Zwick, Trad.; 2. ed.). L&PM. (Trabalho original publicado em 1927)

Lenin, V. I. (1974). As tarefas das uniões da juventude.Cadernos Cultura Popular, 6(41),367-376. https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/10/02.htm (Trabalho original publicadoem 1920)

Maniakas, G. F. (2019). A psicanálise nos primeiros tempos da Rússia Soviética. Discurso: Revista do Departamento de Filosofia da USP, 49(1), 127-139. https://doi.org/10.11606/issn.2318-8863.discurso.2019.159306

Matthiesen, S. Q. (2001). A educação em Wilhelm Reich: da psicanálise à pedagogia econômico-sexual [Tese de doutorado, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília]. Repositório Institucional UNESP.

Reich, W. (1976). O que é consciência de classe? Martins Fontes.

Reich, W. (1977). Materialismo dialético e psicanálise (J. J. M. Ramos, Trad.; 3. ed.). Presença.

Reich, W. (1981). A revolução sexual (A. Blaustein, Trad.; 7. ed.). Zahar editores.

Richebächer, S. (2019). Uma ligação perigosa com o poder: a psicanálise na Rússia bolchevique (G. S. Philipson, Trad.). Lacuna: Uma Revista de Psicanálise, 7. https://revistalacuna.com/2019/08/07/n-7-1/

Stanley, A. (1996, 11 de dezembro). Freud in Russia: Return of the repressed. The New York Times. https://www.nytimes.com/1996/12/11/world/freud-in-russia-return-of-the-repressed.html

Trótski, L. (2007). Literatura e revolução (L. A. M. Bandeira, Trad.). Jorge Zahar Editor.

Žižek, S. (2011). Primeiro como tragédia, depois como farsa (M. B. de Medina, Trad.). Boitempo.

Autor notes

* Dirigir correspondência à Maria Lucia Macari. Correio eletrônico: marrymlm@gmail.com