Desenvolvimento do self e os processos imaginativos na transição para a adolescência: um estudo de caso

Self Development and Imaginative Processes in the Transition to Adolescence: A Case Study

Desarrollo del self y los procesos imaginativos en la transición para la adolescencia

Elsa de Mattos *
Universidade Católica do Salvador, Brasil

Desenvolvimento do self e os processos imaginativos na transição para a adolescência: um estudo de caso

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 37, núm. 3, 2019

Universidad del Rosario

Recepção: Agosto 21, 2019

Aprovação: Agosto 31, 2019

Informação adicional

Para citar este artigo: Mattos, E de. (2019). Desenvolvimento do self e os processos imaginativos na transição para a adolescência: um estudo de caso. Avances en Psicología Latinoamericana, 37(3), 421-434. Doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.8181

Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar o processo de desenvolvimento do self na transição da infância para a adolescência, partindo da abordagem dialógica e semiótica-cultural em psicologia. O foco está nas transformações que ocorrem nas configurações de sistema do self durante um período crítico do desenvolvimento. Especial ênfase foi dada aos processos afetivo-semióticos de produção de significações de si e construção da autoimagem. Foi apresentado um estudo de caso longitudinal do adolescente Fernando. Os dados foram levantados por meio de quatro rodadas de entrevistas em profundidade. A análise seguiu um mapeamento das tensões emergentes nos Campos Afetivo-Semióticos (cass) do self e sua resolução ao longo do tempo. Esta transição envolveu um processo de imaginar-se, que consistiu na emergência de um signo icônico complexo e recriação de elementos culturais em meio a diálogos com outros significativos, possibilitando um reposicionamento de Fernando. Argumenta-se que o processo de imaginar-seassume uma função autorregulatória no desenvolvimento, cuja dinâmica semiótica integra aspectos dialógicos e semióticos.

Palavras-chave adolescência, regulação semiótica, desenvolvimento do self, transições.

Abstract: This study aims to analyze the process of self-development in the transition to adolescence, departing from the dialogical and semiotic-cultural approaches in psychology. The focus is on transformations that occur in self-system configurations during a critical period of development. Special emphasis was placed on the affective-semiotic processes of self-meaning produc- tion and self-image construction. The article presents a longitudinal case study of the adolescent Fernando. Data were collected through four rounds of in-depth interviews. The analysis followed mapping tensions emerging in affective semiotic fields (cass) of the self and their resolution over time. This transition involved a self-imaging process, which consisted of the emergence of a complex iconic sign and cultural elements recreation in the midst of dialogues with significant others, enabling a reposition of Fernando. Researchers argue that the process of self-imaging assumes a self-regulating function in development, whose semiotic dynamics integrates dialogic and semiotic aspects.

Keywords: Adolescence, semiotic regulation, self-development, transitions.

Resumen: Este estudio tiene como objetivo analizar el proceso de desarrollo del self en la transición de la infancia para la adolescencia, partiendo del abordaje dialógico y semiótico-cultural en psicología. El foco está en las transformaciones que ocurren en las configuraciones de sistema del self durante un periodo crítico del desarrollo. Especial énfasis fue puesto en los procesos efectivo-semióticos de producción de significaciones de sí y construcción de autoimagen. Fue presentado un estudio de caso longitudinal del adolescente Fernando. Los datos fueron levantados por medio de cuatro rondas de entrevistas a profundidad. El análisis siguió un mapeo de las tensiones emergentes en los Campos Afectivos-Semióticos (cass) del Self y su resolución a lo largo del tiempo. Esta transición involucró un proceso de imaginarse, que consistió en la emergencia de un signo icónico complejo y recreación de elementos culturales en medio de diálogos con otros significativos, lo que posibilitó un reposicionamiento de Fernando. Se argumenta que el proceso de imaginarse asume una función auto-regulatoria en el desarrollo, cuya dinámica semiótica integra aspectos dialógicos y semióticos.

Palabras clave: adolescencia, regulación semiótica, desarrollo del self, transiciones.

Embora o conceito de self seja amplamente utilizado na psicologia, tanto na teoria quanto no campo da pesquisa e intervenção, atualmente, coexistem muitas definições e abordagens do self. Diferentes abordagens do self se fundamentam em distintas concepções do ser humano. Este artigo parte das perspectivas dialógica e semiótica-cultural em psicologia e defende uma visão integrativa de self. Além disso, utilizando um estudo de caso, pretende-se explorar a dinâmica do self em desenvolvimento, durante a transição para a adolescência, examinando os processos imaginativos e seu papel no desenvolvimento.

Este artigo tem três seções. A primeira seção destaca as principais ideias presentes na psicologia dialógica e semiótico-cultural, mostrando como cada uma define e concebe os processos do self. Especial ênfase é colocada nos modos de construção de significado, especialmente aqueles que privilegiam os processos afetivos-semióticos. A segunda seção traz o caso do adolescente Fernando, buscando ilustrar o modo como ele produz significações de si e constrói uma nova autoimagem, dialogicamente mediada pela relação com pares e com personagens da mídia. Esse processo é perpassado pelos desafios que ele enfrenta na transição para a adolescência (dos 10 aos 12 anos) em um novo ambiente escolar. O caso de Fernando possibilita olhar mais de perto para o processo de imaginar-se (Mattos & Roncancio-Moreno, 2019), que consiste em recriar elementos culturais em meio a diálogos com outros significativos de forma a construir e reconstruir novas imagens de si mesmo. No caso de Fernando, o processo de imaginar-se possibilita um reposicionamento identitário, mais empoderado, no campo da fantasia. Na seção final, argumenta-se que o processo de imaginar-se assume uma função autorregulatória no desenvolvimento humano. Conclui-se com uma discussão sobre a dinâmica semiótica envolvida no processo de imaginar-se e na forma como esse processo possibilita uma visão do self que integra aspectos dialógicos e semióticos.

Perspectivas do self na psicologia dialógica e semiótico-cultural

A abordagem dialógica do self emergiu nos últimos anos como uma perspectiva interdisciplinar que vem ganhando crescente influência na psicologia, sendo apontada como uma das mais promissoras linhas de desenvolvimento da psicologia contemporânea (Lopes de Oliveira, 2016). Conforme sugerem diversos autores (Freire & Branco, 2016; Mattos, 2016; Roncancio-Moreno & Branco, 2017), a perspectiva dialógica do self assume como objeto o ser humano na sua complexidade. O enfoque dialógico considera a pessoa como unidade dialética inserida no contexto de relações com outros sociais. Uma teoria do self dialógico desenvolveu-se a partir das idéias de Bakhtin sobre processos dialógicos (1929/1984) (Hermans & Hermans-Konopka, 2010), buscando integrá-las com o pragmatismo de James (1890) e de Mead (1934). Hermans e Hermans-Jansen (2003) descrevem o self dialógico como composto por um número de pontos de vista ou posicionamentos independentes e opostos, que emerge em meio a relações dialógicas com outros significativos (internos e externos), semelhante a uma polifonia. Cada ponto de vista é dotado de uma voz específica e visto como autor de sua própria visão de mundo. Nesse sentido, o self é concebido como uma multiplicidade dinâmica de posicionamentros de si, relativamente autônomos (Ribeiro & Gonçalves, 2011; Salgado & Gonçalves, 2007), como um sistema descentralizado de significações de si, organizado como um espaço imaginário, onde cada posição é capaz de contar histórias sobre suas próprias experiências, composto por vozes fluidas que incluem significados reflexivos e estados afetivos.

Como multiplicidade dinâmica, o self é permeado por tensões entre vozes que coexistem e se movem ao longo de mudanças que ocorrem simultaneamente em diversas esferas de experiência onde a pessoa navega (Cunha & Gonçalves 2009; Salgado & Gonçalves 2007; Salgado & Hermans 2005). Tal ideia rompe com a visão do indivíduo como uma entidade independente, autônoma, autocontida (Hermans, 2001; Lopes de Oliveira, 2016), bucando associar processos intra e interpessoais, presentes na dinâmica interna de posicionamentos e reposicionamentos de si, em meio a processos de construção e reconstrução de significados socialmente mediados. O selfdialógico emerge como plural e polifônico, produzido através de interações comunicacionais (Hermans, 2001), destacando em primeiro plano seu caráter relacional e constitutivo da relação sujeito-outro. Nesse sentido, a intersubjetividade é tomada como o contexto primário de emergência da subjetividade.

Embora avanços consistentes venham sendo alcançados no que se refere à compreensão da organização dinâmica da estrutura do self no tempo microgenético, a teoria carece de estudos que se aprofundem na compreensão do desenvolvimento do self. Vários autores corroboram que a abordagem do self dialógico permite uma análise sincrônica do sistema do self em um momento específico da trajetória de vida de uma pessoa. No entanto, pesquisas dedicadas a esclarecer processos de desenvolvimento, levando em consideração mudanças diacrônicas e longitudinais no sistema do self, ainda são escassas (Freire & Branco, 2016 Lopes de Oliveira, 2016; Mattos, 2016; Roncancio-Moreno & Branco, 2017). Freire e Branco (2016), em uma revisão detalhada da abordagem do self dialógico, verificaram a necessidade de análises que vão além da linguagem verbal e posicionamentos retrospectivos para incluir ferramentas semióticas relacionadas ao corpo e à orientação longitudinal.

Uma das maneiras possíveis de superar tais limitações é explorada pela abordagem da psicologia semiótico-cultural, dando destaque à natureza semiótica e temporal do self. A perspectiva dialógica do self ajuda a compreender a complexidade– multiplicidade do self – enfatizando a maneira como as experiências pessoais são mediadas pela intersubjetividade, trazendo à tona a forte interdependência entre o desenvolvimento psicológico individual e as relações intersubjetivas, presentes na realidade sociocultural em que a pessoa vive. No entanto, para captar o movimento diacrônico do sistema do self, a perspectiva semiótico-cultural (Valsiner, 2007; 2014; 2016) pode trazer novos elementos à compreensão de tal complexidade.

A perspectiva semiótico-cultural é uma abordagem teórica recente em psicologia que considera as noções de self e cultura como interdependentes, buscando compreender a pessoa como inserida nos sistemas culturais. Jaan Valsiner (Valsiner, 2007; 2014), um grande expoente nessa perspectiva, sugere uma separação inclusiva entre indivíduo e contexto, e considera a experiência humana como sendo mediada por signos, em um processo contínuo de renovação dos significados coletivos e sentidos pessoais. A mediação semiótica é o processo que permite ao ser humano sintetizar e criar novos significados, tanto no domínio reflexivo como afetivo. Através da mediação semiótica, a pessoa simultaneamente distancia-se e aproxima-se do ambiente circundante, criando condições para a construção de um nível de experiência “psicológica” ou “subjetiva”, na qual ações, pensamentos e sentimentos se autorregulam (Gillespie & Zittoun, 2010; Valsiner, 2007). A perspectiva semiótico-cultural em psicologia (Valsiner, 2007; 2014; 2016; Zittoun, 2006; 2011) fornece uma nova compreensão da subjetividade e da temporalidade, bem como dos processos de construção de significado, buscando explicar a dinâmica de transformação da dialogicidade ao longo do tempo e através de diferentes formas e modos semióticos.

Para captar o movimento diacrônico do sistema do self, a perspectiva semiótico-cultural propõe que o desenvolvimento humano pode ser visto como um processo contínuo de criação de inovações, no qual o presente (tal como é) é continuamente re-imaginado em novos futuros possíveis (como se). A pessoa projeta-se continuamente nesse campo de significados imaginados para orientar sua trajetória de vida (Abbey & Valsiner, 2005). Esse movimento caracteriza o surgimento da novidade, existindo uma tensão dinâmica entre dimensões próximas e distais, que podem incluir, por exemplo, memórias do passado, futuros possíveis, cursos alternativos de ação (“e se”), vozes de outros e experiências culturais relacionadas à ficção e às artes, à fruição estética e simbólica de elementos culturais (Zittoun & Gillespie, 2015).

O desenvolvimento emerge simultaneamente a partir dos significados socioculturais e subjetivos, criados no âmbito das culturas pessoais e coletivas. Dispositivos de mediação semiótica – signos – de vários tipos operam configurações dinâmicas e catalisam ações, pensamentos e sentimentos humanos (Valsiner, 2007; 2019). O self se constitui por meio de processos de internalização ativa dos sistemas simbólicos da cultura que, por sua vez, modifica-se ao longo do tempo através das ações externalizadas de cada pessoa, em suas interações sociais. Nessa linha, a pessoa negocia e elabora sentidos sobre si mesma e sobre o mundo, construindo continuamente possíveis trajetórias ao longo do tempo, produzindo novas sínteses pessoais em um movimento ativo e criativo (Zittoun & de Saint-Laurent, 2015).

Segundo Valsiner (2014), o self é um sistema dinâmico, autocatalítico e autorregulador, “dialógico por natureza e hierarquicamente regulado por meio de hierarquias transitórias de signos” (Valsiner, 2014, p. 22). Como um sistema dinâmico e diacrônico, várias formas de autorregulação e reconfiguração de relações entre diferentes posicionamentos de si estão operando no tempo irreversível. O autor chama a atenção para a capacidade do self de reproduzir seus próprios elementos (posicionamentos de si), ao mesmo tempo em que lida com o surgimento contínuo de novos elementos. Nesse sentido, é necessário considerar as condições nas quais as relações entre posicionamentos são exteriorizadas e se transformam ao longo do tempo (Valsiner, 2007).

Desde essa perspectiva, o self é considerado um sistema autorregulador produtor de inovações, capaz de transformar-se e de buscar integração no tempo-espaço, orientando a pessoa para o futuro, exercendo controle flexível sobre a forma como os indivíduos se posicionam a cada momento (Valsiner, 2014). Essas dinâmicas de processos regulatórios estão relacionadas à forma como uma pessoa lida com as tensões e ambivalências que emergem no campo da experiência (Valsiner & Cabell, 2012). De acordo com Abbey e Valsiner (2005), a produção de novas significações gira em torno de Campos Afetivo-Semióticos (CASS), organizados em torno de significações ambivalentes. Nessa visão, os significados surgem da tentativa que a pessoa faz para superar as ambivalências que emergem nas suas relações com o mundo. As ambivalências podem, portanto, ser consideradas como um motor para transformações desenvolvimentais. Este processo implica a noção de que o campo da experiência é construído a partir de tensões entre perspectivas opostas ou alternativas que estão inerentemente ligadas, uma vez que elas existem com base em relações mútuas. Por exemplo, a noção de claro depende e está intrínsecamente ligada à noção de escuro e suas nuances (i.e. não-tão-claro, não-tão-escuro, etc). Nessa perspectiva, é possível pensar que a pessoa cria continuamente signos que passam a funcionar como reguladores da experiência, fixando limites e abrindo possibilidades para pensar, agir e sentir no mundo. Os signos atuam como reguladores das relações pessoa-ambiente por meio da criação de diferentes níveis de simbolização da experiência (Valsiner, 2007).

Recentemente, as relações entre processos semióticos e mecanismos de transformação e reconfiguração do sistema do self vêm recebendo mais atenção acadêmica. Alguns pesquisadores vêm aprofundando o estudo do desenvolvimento do self no tempo irreversível (Freire & Branco, 2016; Lopes de Oliveira, 2016; Mattos, 2016; Roncancio-Moreno & Branco, 2014; 2017). Estudos realizados com crianças no contexto escolar por Freire e Branco (2016), bem como com adolescentes (Lopes de Oliveira, 2016; Zittoun & De Saint Laurent, 2015) e com jovens (Mattos, 2016; Mattos & Chaves, 2014; 2015) mostram que as mudanças no sistema do self constituem um processo intensamente dinâmico que envolve internalizações dinâmicas de significações culturalmente contruídas e externalizações de novas significações, emergindo à medida que as pessoas vivenciam tensões e ambivalências decorrentes de diferentes significados culturalmente contruídos nas suas interações com o mundo social.

A noção de Campos Afetivo-Semióticos (cass) (Valsiner, 2007; Roncancio-Moreno & Branco, 2017) é relevante para compreender a dinâmica do self em movimento, pois integra a emergência semiótica aos processos afetivos. cass são campos de significações, isto é, dispositivos semióticos com uma qualidade afetiva que organizam o sistema do self e possibilitam a mudança. Cada sistema de selfé organizado em torno de cass específicos, revelando as tensões dinâmicas que emergem nas relações eu-outro em diferentes contextos. cass originam-se do modelo de regulação efetiva proposto por Valsiner (2007), emergindo como mais ou menos difusos e apresentando um maior ou menor grau de tensão afetiva (Valsiner, 2007). Roncancio-Moreno e Branco (2014) realizaram um estudo longitudinal de caráter idiográfico e analisaram as significações de uma criança – Gisele – em meio à transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental relativas às suas percepções de si. Com base nos resultados, as autoras sugerem que os cass podem apresentar uma organização mais condensada ou difusa, dependendo do momento do ciclo vital em que a pessoa se encontra. O estudo apontou que os sistemas de self de crianças pequenas podem se constituir por cass marcados por fortes tensões dinâmicas envolvendo complexos de significados ambivalentes. Por exemplo, foram identificados três cass que configuravam o sistema de Self de Gisele, internalizados a partir de relações intersubjetivas: ser vs. não ser bonita, ser vs. não ser inteligente e ser vs. não ser amada. Estes cass passaram por uma reorganização ao longo do tempo, à medida em que foram emergindo novas significações de si. O estudo também ressaltou a necessidade de ir além da comunicação verbal, investigando as produções simbólicas das crianças envolvendo desenhos e brincadeiras, para entender a dinâmica do selfem movimento.

Estudos recentes também sugerem que os processos não verbais, que transcendem as narrativas e a linguagem verbal, envolvendo por exemplo a imaginação, a música, o silêncio, desenhos, são igualmente relevantes para o desenvolvimento do selfe precisam receber mais atenção acadêmica (Branco, Pessina, Flores & Salomão, 2004; Klempe, 2016; Lehmann, 2016; Tateo, 2017; Martsin, 2017).

Valsiner (2014) propõe que o sentido de si mesmo se constitui como efeito da dinâmica ininterrupta da internalização, recriação e reificação de signos, que pode ser visto como um “infinito interior”. O self é concebido como produto dessa internalização criativa – e potencialmente única– dos sistemas simbólicos da cultura pela pessoa, mediado por seu próprio sistema de crenças e afetos. Em estudo recente, Oliveira (2016) propôs uma reelaboração da teoria dos campos afetivos, a partir da noção de signos hiperindividualizados, que respondem à continuidade do self. A autora ressalta que, no processo ontogenético, a internalização tende a criar sentidos subjetivos tão radicalmente singulares que estes podem se tornar incomunicáveis. Os signos hiperindividualizados corresponderiam, então, a essa modalidade de sentidos afetivos extremamente singulares e que compõem o núcleo da estrutura do self, possibilitando a construção do sentido de continuidade e estabilidade em meio à constante diferenciação operada pela irreversibilidade do tempo.

Em resumo, com a integração das duas abordagens dialógica e semiótico-cultural é possível ampliar nossa compreensão da dinâmica dos processos de desenvolviemento do self ao longo do tempo irreversível. No entanto é preciso avançar na compreensão dos processos semiótico-culturais que dão origem ao “infinito interior” e que estão no âmago do sistema do self, entendendo que os mesmos podem ter natureza icônica e performática.

Na próxima sessão, considerando a necessidade de estudos que se dediquem a compreender o desenvolvimento do self, apresentamos o estudo de caso de Fernando, que possibilita olhar mais de perto para o processo de imaginar-se (Mattos & Roncancio-Moreno, 2019; Roncancio-Moreno & Mattos, 2019), levando a um reposicionamento identitário, mais empoderado na transição para a adolescência. O eixo de análise está na dinâmica de desenvolvimento do self dialógico em diferentes momentos. Nosso objetivo é mostrar como ele se utiliza de um modo de significação icônica de si, integrando aspectos verbais e não-verbais (desenhos) na transição para a adolescência, de modo a produzir uma regulação semiótica da experiência capaz de transformar seu sistema do self.

O estudo empírico: Fernando na transição para a adolescência

O período da adolescência é considerado um dos momentos mais críticos do curso da vida, quando várias mudanças e transformações psicossociais permeiam simultaneamente a pessoa e o contexto em que ela se insere. Esse momento do desenvolvimento ontogenético caracteriza-se pela exacerbação de um conjunto de processos de mudança, em especial, nos campos da educação, do trabalho e da família (Mattos, 2013). Também são importantes as relações com pares, âmbito que se sobressai no início da adolescência. Consideramos essa configuração de fatores um cenário produtivo para as investigações do desenvolvimento do self, integrando diversos elementos à análise, relacionados à expressão afetivo-emocional, bem como as relações com o corpo em transformação, possibilitando ampliar as interpretações e levando à compreensão dos novos posicionamentos de si, que ultrapassam o plano de compreensão meramente narrativo.

Os novos posicionamentos emergentes na transição para a adolescência podem contribuir tanto para a desestabilização como para a integração dos planos temporais (passado, presente e futuro) e perspectivas que a criança em transformação tem de si mesma, levando à reconfiguração da arquitetura do self (Mattos & Chaves, 2014) e a novas autoimagens. Essa nova arquitetura não é definitiva, visto que os novos posicionamentos são sempre provisórios, uma obra em permamente construção e reconstrução, orientada ao futuro e aberta a novas transformações. O conceito de transição utilizado aqui refere-se aos momentos cruciais da vida (Zittoun, 2012; Mattos, 2013), em que se é impulsionado a novos níveis qualitativamente diferenciados de funcionamento psíquico. O estudo das transições desenvolvimentais aponta que esses momentos são marcados pela ambivalência e pela emergência de novos sentidos que se convertem em recursos subjetivos para o desenvolvimento (Zittoun, 2006).

Caracterização do caso

Trata-se de um estudo longitudinal qualitativo, realizado entre 2015 e 2017. A construção de informações de pesquisa foi longitudinal, considerando o final do ano letivo do 5o ano do ensino fundamental em uma escola pública, a mudança de Fernando (nome fictício) para uma nova escola e final do 6o ano nesta nova escola. Foram realizadas 5 entrevistas de pesquisa. No início do estudo, em 2015, quando foi realizada a primeira entrevista, Fernando estava com 10 anos. Ao longo do ano de 2016, foram realizadas quatro entrevistas com Fernando com intervalos de dois meses, aproximadamente, e duas entrevistas com sua mãe, uma no início do primeiro semestre e outra no início do segundo semestre. No início de 2017, foi realizada uma entrevista de acompanhamento, quando Fernando estava com 12 anos e iniciando o 7o ano.

O estudo buscou compreender processos de mudança e continuidade no desenvolvimento do self na transição do 5º ao 6º ano do ensino fundamental (Mattos, 2018). Fernando era o único filho de pais que sempre viveram separados, pois sua mãe engravidou no final da adolescência e eles nunca se casaram nem moraram juntos. O pai residia no interior do estado da Bahia/Brasil e convivia com Fernando esporadicamente. Fernando morava com seus avós maternos, a mãe e o padrasto, em Salvador.

Apresentamos abaixo, de modo esquemático, a configuração do self de Fernando, a partir dos cass que se apresentaram no início do 6o ano e no início do 7o ano, que foram construídos tomando por base os processos e mudanças ocorridos durante o período que vai do início ao final do estudo.

No final do 5º ano

No início do estudo, Fernando tinha 10 anos e estava terminando o 5º ano em uma escola pública localizada a cerca de 10 minutos a pé de sua casa, em um bairro popular da cidade de Salvador. Era uma escola caracterizada por seu ambiente acolhedor. A turma de Fernando tinha 30 alunos e a professora responsável por ensinar as quatro matérias do ciclo básico tinha uma relação muito próxima com os alunos. O primeiro contato com o menino aconteceu por meio de uma atividade grupal semiestruturada, realizada com toda a turma. Nesta atividade, Fernando fez desenhos, mostrando que considerava a escola mais como um espaço lúdico do que como ambiente de aprendizagem formal.

No final de 2015, Fernando passou para o 6º ano e fez sua transição para uma nova escola particular, onde sua mãe era auxiliar de serviços gerais e conseguiu uma bolsa de estudos para o filho.

Primeiro trimestre do 6o ano: complexo semiótico 1 - aceitação x rejeição

No início do primeiro trimestre do 6º ano, Fernando acabara de completar 11 anos e enfrentava uma difícil adaptação à nova rotina diária e ao contexto escolar, sentia-se muito cansado durante o dia e com muitas tarefas. Tinha dificuldade em fazer suas lições de casa e de socializar e interagir com os novos colegas. Mencionou que não gosta- va da forma como era tratado, que os colegas riam dele e, como consequência, passou a ter brigas com eles. Sobre esse assunto, Fernando relatou: “Uma coisa que me entristeceu... foi... os comentários. As pessoas riem de mim. Eles me discriminam… Algumas pessoas que conheço falam...elas não falam comigo... mas falam de mim com outras pessoas”.

Fernando explicou que, depois de entrar na nova escola e sentir a discriminação entre os colegas, começou a se sentir triste e pensar mais sobre o ‘por quê?’ dessas coisas acontecerem com ele. Mencionou que não se sentia bem com sua aparência e que gostaria de mudá-la, especialmente a cor da pele, o cabelo e suas atitudes, sua coragem. Externalizou sentir tristeza pelo fato de ser discriminado e com as agressões dos pares. Revelou, assim, que estava negociando intensamente sentimentos de aceitação e rejeição em sua relação com os colegas.

Durante a entrevista, Fernando teve acesso a recursos de desenho (i.e lápis, papel, hidrocor, lápis de cor e lápis de cera) que foram dispostos sobre a mesa. Ele foi convidado a utilizar esses materiais como desejasse, durante a entrevista. De maneira espontânea, enquanto conversava com a pesquisadora, ele passou a desenhar um personagem - “Naruto”- 1 explicando que se tratava do personagem de uma série que ele assistia em seu tablet: “um adolescente que se transformou em ninja”.

Segundo trimestre do 6o ano: complexo semiótico 2 - fragilidade x força

No meio do ano, Fernando participou de novas entrevistas e revelou que havia parado de brigar com os colegas, mas que ainda tinha problemas com eles, e estava ignorando as agressões verbais. Um novo tema emergiu nesse momento da pesquisa: fragilidade x força. Fernando contou que se sentia irritado e estressado depois das “brincadeiras” que os colegas faziam com ele, mas que estava tentando “ignorar o que estavam dizendo”, e também, “não prestar atenção a eles”. Fernando mencionou ainda que os adultos (sobretudo a mãe, a avó e a orientadora pedagógica) o orientaram a lidar com conflitos com os colegas, ignorando suas ações. Contudo, sentia-se desamparado e fragilizado. Durante essa entrevista, o menino demonstrou grande interesse em desenhar super-heróis. Elaborou um personagem parecido com Batman, e revelou que “gostaria de viver um momento de Batman em sua vida, ter uma aventura e correr riscos”. Refletiu, também, que, depois de ver as histórias de Batman pela internet, “desistiu de lutar com os colegas”, mas aprendeu a “nunca desistir de nada, não importa o quanto seja intenso”.

Final do 6o ano: transformação no CAS 2 - justiça x injustiça

Próximo ao final do ano letivo, durante as entrevistas, Fernando desenhou um adolescente super-herói que nomeou Nandoman(a partir da fusão de seu próprio apelido “Nando”, com a palavra homemem inglês), descrito como um adolescente que “estuda, joga videogame e faz coisas normais”, mas que “tem poderes especiais para lutar contra os vilões”. Segundo Fernando, os vilões eram pessoas que se tornaram o que são por causa das humilhações que sofreram no passado. Comentando a respeito das situações que Nandoman enfrentava em sua vida diária, Fernando mencionou experiências que ele próprio tinha vivenciado na escola e descreveu Nandoman como um super-herói que poderia intervir para resolver os mesmos problemas que ele havia enfrentado.

Nessa oportunidade, Fernando fez um paralelo interessante entre os personagens que ele havia criado – , os vilões e Nandoman – com sua própria experiência no novo contexto escolar. Por um lado, ele fez uma justaposição entre as experiências dos vilões e as dele, já que ele próprio havia sido humilhado pelos colegas. Por outro lado, ele assumiu a posição de Nandoman como aquele que – em um mundo imaginário – é capaz de resolver situações de conflito semelhantes às que ele mesmo enfrentava no seu cotidiano.

Método

O presente artigo foi contruído com base no estudo de caso longitudinal do adolescente Fernando, na transição entre o 5o e o 6o ano do ensino fundamental. Foi adotado o método idiográfico (Salvatore & Valsiner, 2010), que se baseia na premissa de que todo fenômeno estudado é singular. Este método permite construir generalizações a partir das análises de estudos de caso, que podem servir para compreender casos semelhantes. O estudo foi desenvolvido em duas fases. A Fase i aconteceu na escola A, onde Fernando estudava, no final do 5o ano do ensino fundamental, e a Fase ii, ocorreu ao longo do 6o ano, na Escola B, onde Fernando passou a estudar no ano seguinte. Ao longo do 6o ano, foram realizadas três rodadas de entrevistas em profundidade, com o adolescente e também com sua mãe. No início do 7o ano, foi realizada a última rodada de entrevistas. As duas instituições de ensino tinham características diferentes, uma era pública (Escola A) e a outra, particular (Escola B). A mãe de Fernando era funcionária da limpeza da Escola B. Ambas as escolas se localizavam na cidade de Salvador, no Nordeste do Brasil.

Na Fase i, a pesquisadora fez observações da classe do 5o ano e realizou uma atividade estruturada com todos os alunos. O objetivo dessa fase do estudo foi identificar percepções que as crianças tinham da escola e do momento da mudança de escola, como se percebiam a si mesmos e aos colegas no ambiente escolar. Para participar da Fase II, após conversa com a professora, foram selecionadas quatro crianças que haviam se mostrado mais dispostas a dialogar com a pesquisadora durante a Fase i e cujas famílias concordaram em participar do estudo, por meio da assinatura do termo de consentimento. As crianças foram entrevistadas individualmente, sendo os encontros agendados a cada trimestre. Somente Fernando e sua mãe participaram de todas etapas das duas fases do estudo.

As transformações no sistema do self

Este estudo foi tomado como ponto de partida para pensar os processos imagéticos e performáticos que entram em jogo na dinâmica de transformação do self, na reconfiguração dos cass que possibilitam a diferenciação e continuidade no campo do campo do self. O foco das análises visou compreender a dinâmica das transformações do self de Fernando no que se refere à emergência de novos posicionamentos diante das discriminações e agressões sofridas por ele nas interações com colegas de escola. A análise buscou integrar narrativas e desenhos elaborados por Fernando durante os encontros ou trazidos por ele para os encontros de pesquisa. Os procedimentos para análise dos dados compreenderam a transcrição de todas as entrevistas, a identificação, nas narrativas e desenhos, de trechos referentes a autoavaliações e indicadores de significações sobre si e de imagens de si. Nas narrativas, além do conteúdo temático, foram especialmente consideradas expressões verbais, tons afetivos, ênfase, pausas, posturas corporais, gestos, expressões faciais, etc. Nos desenhos, foram considerados sobretudo aspectos como a temática, detalhamento das imagens, uso da cor, presença de movimento nas imagens, relação com outras mídias.

A análise voltou-se para a identificação e descrição dos processos de construção de significações de si e as mudanças nas significações e imagens de si ao longo do tempo, através do mapeamento dos cass. Não é possível dar visibilidade aqui a toda a complexidade das alterações em curso, mas de modo esquemático, é possível dizer que a dinâmica de transformação do self de Fernando envolve a transição entre as posições subjetivas que refletem um progressivo empoderamento de Fernando para lidar com as tensões que emergem no novo contexto escolar.

Partindo das abordagens da psicologia dialógica e semiótico-cultural, é possível conceber a experiência de Fernando como refletindo as tensões emergentes nos cass. cass podem ser compreendidos como campos de significações com uma qualidade afetiva que organizam o sistema do self da pessoa. No caso em tela, o conjunto dos desenhos e narrativas de Fernando foi tomado como modos de internalização/expressão simbólica que possibilitam a construção de sentidos pessoais. Em cada período de tempo da pesquisa, foram identificadas as principais tensões presentes no sistema do self como girando em torno da “aceitação X não-aceitação” por parte dos pares, “fragilidade x força” e “justiça x injustiça”. Tais tensões ativam intensos estados emocionais de tristeza e raiva no adolescente. Por um lado, ele se sentia impotente e sem forças para lidar com os comentários negativos vindos dos colegas. Por outro lado, ele utilizava a imaginação para criar um cenário de vida mais positivo, construindo novos significados associados à justiça social e à punição daqueles que discriminam e humilham os outros. Com o passar do tempo, as tensões acabaram gerando novidades no sistema do self de Fernando.

A passagem para a adolescência envolve transformações significativas nos processos de configuração e reconfiguração do self. O estudo possibilitou evidenciar que o desenho constituiu um recurso relevante para a autorregulação afetiva do self. Especificamente, no caso de Fernando, as tensões estavam localizadas nas relações com os pares, pois ele sofria humilhação e discriminação dos colegas da escola. Fernando transitava entre cass relacionados à aceitação x rejeição pelos colegas, passando por uma alteração nas relações de fragilidade X força e, finalmente, se reposicionando com a criação dos personagens do Nandoman e dos vilões que revelam uma nova relação com a justiça x injustiça. Inicialmente, ele se sentiu fragilizado e impotente para lidar diretamente com as agressões e os comentários negativos de seus pares (intimidação/humilhação). Com o passar do tempo, recorreu aos recursos da mídia, aos desenhos e à imaginação para projetar-se num cenário mais positivo de vida e empoderar-se frente ao cotidiano. Como resultado, emergiram novos posicionamentos no sistema do self, com a criação do personagem Nandoman, que apresenta uma nova imagem de si.

De acordo com Zittoun e De Saint Laurent (2015), é possível pensar que o surgimento de novidade no campo do self de Fernando foi produzido pela intensificção da imaginação/fantasia, que funciona como espaço para expandir e redirecionar a imagem de si. Fernando recorre à imaginação para se distanciar de experiências cotidianas negativas e negociar novos posicionamentos de si mesmo, elaborando melhores soluções para os problemas que vivencia. Fernando cria o super-herói adolescente Nandoman que representa uma projeção de si mesmo no futuro e passa a imaginar-se ativamente como um “outro”, expandindo o campo do self e ativando mecanismos de autorregulação capazes de aumentar a dialogicidade no campo do self. Esse movimento promove um ciclo de transformação que antecipa desafios futuros e projeta novas soluções possíveis para enfrentar situações disruptivas.

O processo de imaginar-se, de expandir a imagem de si, conforme já ressaltado em outros trabalhos de nossa autoria (Mattos & Roncancio-Moreno, 2019; Roncancio-Moreno & Mattos, 2019), pode ser entendido como um movimento icônico no campo do self, que ultrapassa o âmbito narrativo e assume a natureza de uma nova corporidade, capaz de promover novas formas de lidar com emoções negativas e exigências relacionadas com mudanças vivenciadas na entrada na adolescência, especialmente com o início da puberdade e a entrada em um novo contexto institucional–, a nova escola. Ao expandir a imagem de si, Fernando internalizou valores culturais canalizados pela mídia, especificamente relacionados ao universo dos desenhos japoneses e à cultura “ninja” (presente em séries e cartoons). Ele usa esses desenhos para recriar sua autoimagem, se reposicionando de maneira mais fortalecida e diante do contexto.

O espaço imaginativo possibilita o surgimento de um novo signo (icônico) que se torna uma arena de negociação interna dos cass, possibilitando ressignificação das tensões entre fragilidade e força e uma ressignificação do sofrimento psíquico vivenciado por Fernando e permitindo seu empoderamento. As palavras (ou seja, narrativas verbais) sozinhas não dão conta de expressar a complexidade das significações de si produzidas nessa transição. Desse modo, Fernando constrói no ícone de Nandoman uma alternativa para transformar experiências dolorosas e frustrantes. Conforme sugere Valsiner (2019), é possível pensar que o ícone Nandoman assume a dupla função de regular a experiencia de Fernando e orientar as ações do adolescente, possibilitando uma pré-adaptação diante das experiências difíceis vividas no contexto. Tal signo facilita a reorganização no sistema do self, criando uma nova hierarquia no sistema. O resultado funciona como uma performance gráfica de um novo vir-a-ser de Fernando no futuro.

É interessante notar que esse cenário revela uma complexa diferenciação-integração subjetiva, na qual emerge uma nova arquitetura do self de Fernando, com a reconfiguração dos cass. Essa diferenciação passa pela utilização de um signoicônico complexo que possibilita uma nova gestaltde internalização/externalização (Valsiner, 2007) e entrelaça modos semióticos verbais e visuais para produzir e apresentar (ou pré-apresentar, no campo da imaginação/fantasia) uma espécie de self performático, um novo self que pode usar superpoderes, tornar-se forte e valente, fazer justiça e decidir sobre sua trajetória de vida.

Essa passagem afeta a continuidade do self de Fernando, atuando como um marcador desenvolvimental, ao possibilitar a emergência de algo que pode ser interpretado como uma nova significação ou imagem de si. No caso, o signo icônico oferece um suporte semiótico para a reconfiguração temporal do self, em que Nandoman funciona como uma nova corporeidade e se equipara a uma “posição promotora” (Hermans & Hermans-Konopka, 2010) no âmbito da psicologia dialógica, uma metaposição no sistema do self, orientada para o futuro, que possibilita uma performance gráfica para Fernando diante do seu contexto.

Considerações finais

A partir da abordagem teórica da psicologia dialógica e da psicologia semiótico-cultural, podemos conceber a experiência de Fernando como refletindo as tensões emergentes nos campos afetivos-semióticos (cass). Como discutido acima, cass são campos de significado com uma qualidade afetiva. Essas tensões giram em torno de “aceitação x rejeição”, “fragilidade x força” e “justiça x injustiça”. Tais tensões ativam estados emocionais intensos de tristeza e raiva. Por um lado, Fernando se sentiu impotente para lidar com comentários negativos vindos de seus pares. Por outro lado, ele recorreu à imaginação para criar um cenário de vida mais empoderado ao construir novas significações de si. Com o tempo, as tensões acabaram gerando novidades no sistema do self.

As transições de desenvolvimento vivenciadas por Fernando no intervalo investigado tocaram dimensões significativas do sistema do self, marcadas pela aceitação, rejeição, discrimação e preconceito. Os mecanismos de diferenciação e integração entre posições do sujeito e na relação sujeito-outro, especialmente a relação com pares, que é fundamental no início da adolescência, concorrem para configurar uma nova versão de si, na forma de um signo icônico que vem a se constituir como signo promotor do desenvolvimento (Valsiner, 2014; 2019).

Transições desenvolvimentais não ocorrem de maneira linear. Elas se dão em meio a uma complexa trama de significações, mediada por diferentes alteridades, que se apresentam nos diferentes contextos nos quais a pessoa transita (i.e. contexto escolar, familiar, religioso e clínico, entre outros). No presente estudo, buscamos avançar, considerando as análises proporcionadas pelo caso Fernando, a compreensão da dinâmica de desenvolvimento do self na transição para a adolescência.

Os contextos de experiências e inserções institucionais, em especial a nova inserção escolar, tendem a fomentar a emergência de novas tensões no campo do self, delimitadas por cass específicos. Em meio a tais processos, Fernando se percebe como alvo de discriminação e preconceito, em especial, por parte dos colegas de escola. Ele progressivamente vai se distanciando de ser alvo de agressões e provocações, a princípio procurando não demonstrar que se sente humilhado e desprezado, e posteriormente se torna um agente da promoção de “justiça” no campo da imaginação. Nesse novo cenário, emerge uma autoimagem mais positiva e fortalecida – encarnada pelo super-herói adolescente Nandoman – que funciona como um signo icônico que possibilita uma performance gráfica e é capaz de orientar as ações futuras de Fernando e oferecer bons conselhos aos que sofrem com situações semelhantes à dele: “continue acreditando”.

No âmbito destes intrincados complexos semióticos, o personagem criado por Fernando com base na sua própria experiência e no contato com diferentes mídias – Nandoman – torna-se um signo complexo, que atua como uma nova versão de si, que pode usar superpoderes para se tornar forte e corajoso, capaz de fazer justiça quando necessário. Conforme sugerido em outras publicações da nossa autoria (Mattos & Roncanio-Moreno, 2019; Roncancio-Moreno & Mattos, 2019), essa nova imagem de si parece operar com dupla função, atuando como um mecanismo de autorregulação que traz mais dialogismo ao sistema do self e antecipa desafios futuros e possíveis novas soluções para enfrentar situações estressantes e difíceis. Esse mecanismo regulador corresponde a uma nova maneira de lidar com as tensões decorrentes das emoções negativas e com as vozes de humilhação vindas dos colegas (provocações e xingamentos). Ele possibilita uma internalização/externalização construtiva e um salto qualitativo na trajetória pessoal de Fernando.

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Notas

1 Naruto é um personagem de ficção da cultura pop correspondente ao mangá japonês do mesmo nome. Sua história está associada com um adolescente que é ridicularizado e humilhado pelas pessoas de sua aldeia e procura reconhecimento transformando-se em líder ninja.

Autor notes

* Dirigir correspondencia a Elsa de Mattos, Universidade Católica do Salvador. Correio eletrônico: e.mattos2@gmail.com