Trajetórias em transição: a produção de significados de uma migrante venezuelana

Trayectorias en transición: la producción de significados de una migrante venezolana

Trajectories in Transition: A Venezuelan Migrant’s Meaning Production

Rômulo Ataides França *
Universidade de Brasília, Brasil
Silviane Bonaccorsi Barbato **
Universidade de Brasília, Brasil

Trajetórias em transição: a produção de significados de uma migrante venezuelana

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 37, núm. 3, 2019

Universidad del Rosario

Recepção: Agosto 21, 2019

Aprovação: Setembro 19, 2019

Informação adicional

Para citar este artigo: França, A. R., & Barbato, B. S. (2019). Trajetórias em transição: a produção de significados de uma migrante venezuelana. Avances en Psicología Latinoamericana, 37(3), 292-306. Doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.8180

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a produção de significados em dinâmicas de interpretação de si, a partir da experiência de vida de uma migrante venezuelana. O Brasil passa por uma emergência humanitária recebendo imigrantes venezuelanos que chegam ao país. Em deslocamentos geográficos, o senso de continuidade de si se reorienta e é desafiado por rupturas e transições em que os processos de convencionalização atuam promovendo dinâmicas reflexivas nas inter-historicidades. Realizou-se entrevista semiestruturada e mediada por objeto, mediadas por objeto que foi submetida à análise dialógico-temática. Os resultados indicaram que o jogo polifônico ocorre no embate entre o presente, que interpreta o passado e se regula por possibilidades de um futuro, em que conhecimentos anteriores são utilizados para a obtenção exitosa de novas formas de conhecer e estar, no novo país. Os significados reguladores estão relacionados à possibilidade de ficar no país escolhido e aos sacrifícios que podem ser vencidos com as próprias atuações, em escolhas e buscas por soluções, e pela mediação da família, de instituições que trabalham com migrantes e pela religiosidade.

Palavras-chave imigração, transições, convencionalização, significados, posicionamentos.

Resumen: Este artículo tiene por objetivo analizar la producción de significados en dinámicas de interpretación del sí, a partir de la experiencia de vida de una migrante venezolana. Brasil pasa por una emergencia humanitaria recibiendo inmigrantes venezolanos que llegan al país. En desplazamientos geográficos, el sentido de continuidad del sí se reorienta y es desafiado por rupturas y transiciones en que los procesos de convencionalizar actúan promoviendo dinámicas reflexivas en las inter-historicidades. Se realizó entrevista semiestructurada y mediada por objeto, que fue sometida al análisis dialógico-temático. Los resultados indicaron que el juego polifónico ocurre en la confrontación entre el presente que interpreta al pasado y se regula por posibilidades de un futuro en que conocimientos anteriores son utilizados para la obtención exitosa de nuevas formas de conocer y estar en el nuevo país. Los significados reguladores están relacionados con la posibilidad de quedarse en el país escogido y a los sacrificios que pueden ser vencidos con los actos propios, en elecciones y búsquedas de soluciones, y por la mediación de la familia, de instituciones que trabajan con migrantes y por la religiosidad.

Palabras clave: inmigración, transiciones, convencionalizar, significados, posicionamientos.

Abstract: This article aims to analyze the production of meanings in a case study of a migrant woman self-interpretation dynamics from a migrant’s life experience. Brazil is under- going a humanitarian emergency receiving Venezuelans arriving in the country. In geographical displacements, the sense of continuity of oneself is reoriented and challenged by ruptures in transitions. Conventionalization promotes reflexive dynamics in inter-historicities. The participant took part in a semi-structured and an objects mediated interview. Data were submitted to a dialogic-thematic analysis. Results indicated that the polyphonic games occur in the tensions between the present that interprets the past and is regulated by possibilities of a future in which previous knowledge is used to successfully obtain new ways of knowing and being in the new country. Regulatory meanings relate to the possibility of staying in the chosen country and to the sacrifices surmountable through one’s actions, choices, and searches for solutions and through the mediation of the family and institutions that work with migrants and religiosity.

Keywords: Immigration, transitions, conventionalization, meanings, positions.

As possibilidades de atuações em relação ao futuro em contextos adversos, como contextos de migração, dependem das condições existentes no presente (Rosa & González, 2013; Ungar, 2012) e da formulação de futuros possíveis como forma de regulação do presente (Brescó, 2017). Considerando a chegada de imigrantes venezuelanos no Brasil (Simões, Silva & Oliveira, 2017), este artigo tem por objetivo analisar a produção de significados em dinâmicas de interpretação de si a partir da experiência de vida de uma migrante venezuelana. Para isso, utilizou-se uma abordagem metodológica qualitativa, sensível aos contextos vitais de transição e crise da participante, onde o narrar, argumentar e o fazer, concretizam suas interpretações sobre suas experiências (Barbato, Mieto & Rosa, 2016; Caixeta, Silva, Lima & Alves, 2017; Forcione & Barbato, 2017).

As trajetórias humanas se caracterizam por mudanças e transformações. Em todos os seus aspectos, o senso de continuidade de si se reorienta a novas formas de ser, sentir e atuar, por meio da atualização de significados no jogo entre o que se conhece e o que é novidade, nas fronteiras de contato entre inter-historicidades (Segato, 2012), entre práticas, crenças e valores históricos de dois ou mais povos, desafiados por rupturas, que geram momentos de transição (Zittoun, 2009). O transnacionalismo (Vertovec, 2009, Waldinger, 2013) se constitui como um processo amplo, ligado ao capitalismo global e aos vínculos de atuação em mais de um país, criando um âmbito onde certas relações são intensificadas globalmente, independentes das fronteiras e leis internacionais. As relações entre pessoas de diferentes lugares e origens culturais se intensificam e vão além das fronteiras nacionais ou leis internacionais, permitindo o desenvolvimento de consciências sociais diaspóricas que reverberam histórias coletivas de lugares distintos, promovem a criação de redes sociais transnacionais e renegam a fixidez geográfica (Vertovec, 2009). A diáspora é o deslocamento – forçado ou não – de pessoas de um país ou região para outra, um fenômeno humano experiencia- do socialmente por comunidades específicas que passam a constituir parte de sua história coletiva (Braziel & Mannur, 2003).

Em diáspora, as interpretações sobre as relações entre as práticas culturais de origem e as da cultura em que se passou a viver, se tornam ambivalentes (Braziel & Mannur, 2003; Märtsin & Mahmoud, 2012), em espaços inbetween (Buber, 1937), limítrofes entre o eu e o outro, o lugar conhecido e o lugar desconhecido, valores conhecidos e novos, entre o tornar-se outro e fazer desse outro algo próprio, em relação dialética entre possibilidades e ameaças no senso de continuidade de si que regulam o Self (Märtsin & Mahmoud, 2012). Nesta tensão, as tradições e etnicidades se tornam passíveis de fluidez e/ou radicalização pelas circunstâncias e (re)contextualizações históricas (Radhakrishnan, 2003). A interação entre diferentes culturas (Rosenthal, Ramirez, Levy & Bernardo, 2019) e atuações que constituem a historicidade de práticas de um povo, promovem processos de convencionalização (Bartlett, 1995; Brescó & Rosa, 2017; Wagoner & Gillispie, 2014), que sustentam modos de interação de significados e historicidades em contato, na recordação e atuação dinâmica em momentos de tensão e transição, em trajetórias pessoais e históricas. Nestas interações em inter-historicidades (Segato, 2012), as capacidades cognitivas se ampliam, permitindo novos modos de pensar e atuar (Hutto, 2016), e no estabelecimento de consciências transnacionais, em que a história coletiva de um determinado lugar e tempo se hibridiza, gerando novos vínculos históricos e sociais (Vertovec, 2009), que se atualizam polifonicamente (Bakhtin, 1984).

Em deslocamento, os migrantes são agentes ativos na transformação de contatos e práticas sociais, tanto no país de origem quanto no país de destino (Rosa & Tavares, 2013). O ambiente, a ação social e a consciência estão em constante relação polifônica (Bakhtin, 1984), sendo a atividade humana situada em contextos socioculturais que permitem o desenvolvimento de conjuntos de experiências, que atribuem e produzem significados a partir dos fenômenos (Rosa & González, 2013) e da experiência subjetiva das rupturas, como, a promovida por migrações. Tal experiência é acompanhada por eventos socialmente marcados que têm seus significados reavaliados a cada nova ruptura (Saint-Laurent, 2017), promovendo novas formas de atuar e agir (Forcione & Barbato, 2017; Zittoun, 2009). No impacto das situações de transição geradas em convencionalizações, as interconexões entre o Self e os processos de identificação possibilitam o senso de continuidade em dinâmicas de geração, intercâmbio e/ou transformação de posições (Barbato et al., 2016; Barbato, 2018; Rosa & González, 2013).

O relato narrativo e argumentativo envolve afetos e ideologias que se concretizam dialogicamente no discurso e produzem a história (Bruner, 1990; Straub, 2005; Saint-Laurent, 2017). Nesse contexto dinâmico, o presente mobiliza o passado coletivo com mudanças, atualizações e permanências que se apoiam em referências ideológicas e emocionais em nível social, macro, e em nível interpessoal e individual (Glaveanu, 2017), micro, onde os interlocutores, ao falarem do outro, também falam de si, situando-se em posições eu, outro e mundo, iluminando feixes de significados em discursos concretizados no inbetween, posicionando-se e posicionando o outro no jogo discursivo social (Buber, 1937; Harré, 2012; Volochinov, 2018). Os significados, como aspecto central da psicologia humana, são produzidos a partir da experiência em sistemas simbólicos (Bruner, 1990), incorporados pelo Self em atividades sociais situadas mediadas por artefatos simbólicos e físicos (Leontiev, 1978). A propriedade polifônica do dialogismo, (Bakhtin, 1984) torna possível a compreensão das relações entre os significados pessoais e coletivos produzidos historicamente em diferentes cronotopos, recortes espaço-temporais definidos e situados no presente vivido das interações.

Expectativas incertas em relação ao futuro produzem ambivalências e os significados são atualizados por meio da regulação (Abbey & Valsiner, 2005; Abbey, 2012). Quando os significados são negociados, as ambivalências podem regular dinâmicas de transformação de si, dos outros e das situações, introduzindo diferenciações nas experiências, oportunizando espaços reflexivos para a novidade e a ocorrência de transformação psicológica (Forcione & Barbato, 2017; Marsico, 2015) e/ou podem tornar as interações dialógicas em interações monológicas (Abbey, 2012; Buber, 1937), dificultando processos de reflexividade efetivos (Zittoun, 2015). A experiência da migração de uma região para outra envolve dinâmicas emocionais e sociais, que afetam a experiência de vida tanto dos imigrantes quanto dos cidadãos dos países receptores (Boccagni & Baldassar, 2015), promovendo ou não reflexividades (Zittoun, 2015). Tais experiências podem apoiá-los a lidar com as incertezas de sua vida presente e orientar expectativas, projetos e atitudes ativistas de engajamento pelo reconhecimento dos próprios direitos (Brockmeier, 2011; Vertovec, 2009). Os deslocamentos forçados, que são consequência e potenciais precursores de problemas humanitários, remetem a questões relacionadas aos modelos de integração (Cavalcanti & Simões, 2014) e à saúde mental dessas populações. Aspectos materiais como acesso a emprego no país, geração de renda, idioma, eficiência nos processos de pedido de asilo e suporte social ao lidar com possíveis discriminações, são considerados determinantes sociais de saúde mental entre estes imigrantes (Hynie, 2018).

O acesso às instituições e aos serviços sociais do país de recepção, bem como a forma com que estas mesmas instituições são preparadas para receber imigrantes, também parece influenciar na qualidade de vida e oportunidades pessoais e profissionais dos imigrantes (Flick, Hans, Hirseland, Rasche & Röhnsch, 2017). O desenvolvimento da resiliência, definida como a habilidade de se recuperar de situações estressantes ou traumáticas, é um processo multidimencional dinâmico não-linear (Siriwardhana, Ali, Roberts & Stewart, 2014; Pearce, McMurray, Walsh, & Malek, 2017), pois é potencializada por toda a rede de relações de uma pessoa vivendo no país receptor a partir de intervenções de distintas intensidades e processos protetivos que promovam mudanças (Ungar, 2012). Em situações de adversidade, a promoção de resiliência se dá conforme o ambiente social e institucional, que facilita o acesso a recursos psicológicos, sociais, culturais e físicos que sustentem o bem-estar e propiciem oportunidades individuais e coletivas para a navegação das pessoas por esses recursos, no âmbito das famílias, comunidades e governos, promovendo a negociação de formas culturalmente significativas (Ungar, 2012). Em contextos envolvendo refugiados, as famílias são espaços promotores de resiliência, pois permitem o compartilhamento de valores, esperança e a colaboração na resolução de problemas em comum. Agências humanitárias e instituições religiosas podem fortalecer os fatores protetivos familiares, como a comunicação e o cuidado entre seus membros, ao fornecerem um suporte comunal ampliado, como trocas e encontros com outras famílias em situação similar (Weine, Levin, Hakizimana & Dahnweih, 2012). A espiritualidade e a fé, os círculos de apoio e o estabelecimento de uma comunidade global que envolva o país de origem e o país receptor, promovem resiliência ao abrir um âmbito de catarse comunal, pelo choro ou pela alegria compartilhada em espaços de pertencimento (Pearce et al., 2017).

Migrações internacionais no Brasil

O Brasil é um país formado por pessoas vindas especialmente de países da Europa, da África, e posteriormente, da Ásia e do Oriente Médio. Por se tratar de uma ex-colônia portuguesa, a grande maioria dos primeiros imigrantes vinha dessa região e com o estabelecimento do mercado de mão de obra escrava africana, milhões de pessoas do centro do continente africano foram trazidas à força para trabalhar em latifúndios, minas de ouro e nas próprias casas dos colonizadores (Freyre, 2003). Na primeira metade do século XIX, começaram a se estabelecer as primeiras comunidades alemãs de pequenas propriedades rurais no sul do Brasil, região até então pouco colonizada e explorada economicamente (Seyferth, 1990).

Em 1808 se estabelece o decreto que permitia que imigrantes comprassem pequenas propriedades de terra no Brasil voltada para o povoamento de vazios demográficos com imigrantes europeus agricultores (Decreto de 25 de novembro de 1808; Figueiredo & Zanelatto, 2017; Oliveira, 2001). A imigração massiva de italianos, e posteriormente de japoneses em São Paulo se torna, num primeiro momento, um substituto para a mão de obra escrava (Figueiredo & Zanelatto, 2017; Oliveira, 2001; Seyferth, 1990). Nos anos 30, o Estado Novo de Getúlio Vargas restringiu a imigração e proibiu a formação e concentração de núcleos etnolinguísticos, proibindo a existência de escolas de alfabetização em língua estrangeira, sobretudo na comunidade japonesa e alemã, geralmente mais fechadas à convivência com brasileiros, bem como também proibiu que se falasse italiano, alemão ou japonês nas ruas do país (Oliveira, 2001). A partir dos anos 60, o Brasil passou a adquirir características de um país de emigração, com mais de meio milhão de brasileiros emigrando para outros países, especialmente Estados Unidos, Japão, Inglaterra e os vizinhos Uruguai, Paraguai e Bolívia, que passaram a concentrar uma ascendente comunidade brasileira nos anos 80 e 90 (Figueiredo & Zanelatto, 2017). Nos anos 2000, com a estabilidade e o crescimento econômico brasileiro e com uma legislação imigratória mais mundializada a partir do Estatuto dos Refugiados (Lei n° 9.474, 1997), o Brasil entrou no mapa do asilo internacional, facilitando as migrações por segurança, como o refúgio (Requião, 2015). Neste momento, o Brasil volta a ter um perfil de país de imigração, atraindo novas migrações de trabalhadores, sobretudo do sul global, de vários países africanos, do Haiti, China e dos países vizinhos da América do Sul, bem como de europeus fugindo da crise econômica de 2008 (Figueiredo & Zanelatto, 2017).

No entanto, nos últimos anos o país passa por uma emergência migratória, inicialmente de haitianos e atualmente de venezuelanos. Por conta da crise econômica e política na Venezuela, aproximadamente 4 milhões de pessoas saíram do país em busca de asilo em países como Estados Unidos, Brasil, Peru, Espanha, México e Colômbia (https://www.unhcr.org/venezuela-emergency.html/Recuperado em 08 de Setembro de 2019). Esta emergência migratória está sendo marcada pela desarticulação de ações entre os municípios afetados, participação limitada da sociedade civil, não pagamento de benefícios sociais e por violações de diretos humanos, como o trabalho análogo a escravidão (Conselho Nacional dos Direitos Humanos [CNDH], 2018). Grande parte desses imigrantes chega ao Brasil cruzando a fronteira a pé, chegando aos estados do Pará, Amazonas e, principalmente, Roraima, se concentrando na capital do estado, Boa Vista. Em 2017, foram mais de 17.000 solicitações de refúgio feitas por venezuelanos, muitos deles indígenas. O perfil desses imigrantes se caracteriza por ser majoritariamente jovem – de 20 a 39 anos – bem escolarizado entre os não-indígenas, fugindo do país por conta da crise política (Simões et al., 2017).

Método

Utilizou-se delineamento de pesquisa qualitativo a partir do estudo de caso com entrevista semiestruturada, seguida por entrevista mediada por objeto ou imagem. A participante é venezuelana e foi entrevistada em espanhol, tinha 40 anos no momento da entrevista, casada e com dois filhos. Estava no Brasil há quatro anos, entre idas a Venezuela e vindas ao Brasil, toda sua família imigrou e vivem na mesma cidade no país. Após agendamento da entrevista, combinou-se um local que fosse acessível para ela. No dia da entrevista, antes de iniciar a sessão, o pesquisador comentou brevemente sobre o tema de sua pesquisa e, com a autorização da participante, solicitou a assinatura do Termo de Consentimento Livre-Esclarecido, ligando o gravador de voz em seguida.

A participante foi entrevistada por 60 minutos em um centro comercial de uma cidade grande da região Centro-Oeste do Brasil. No momento do agendamento das entrevistas, solicitou-se que, se possível, levasse algum objeto que fosse significativo para ela, como forma de propiciar contextos onde a entrevistada falasse de si, de sua relação com seu país e de suas experiências no Brasil, com o apoio de lembranças e/ou significados a partir do objeto. A entrevista foi composta, inicialmente, por perguntas relacionadas à vida no país natal, a tomada de decisão de sair da Venezuela e vir para o Brasil, sentimentos em relação a travessia de um país para o outro, relação com o Brasil e com os brasileiros, vida profissional e familiar. Ao longo da sessão, foi incentivada a continuidade do fluxo de fala da participante, com poucas intervenções do pesquisador. Não se reprovou ou desautorizou sua fala, ou solicitou-se que ela justificasse o que mencionou. Na segunda parte, foi solicitado que a participante falasse sobre o objeto que havia escolhido.

Utilizou-se a análise dialógico-temática (Forcione & Barbato, 2017; Silva & Borges, 2017) a fim de identificar posições eu-outro-mundo, significados e sua orientação no cronotopo específico da atividade de entrevista. Após a transcrição da entrevista, estabeleceram-se mudanças de posição e tempo em relação ao presente e futuro, para a identificação de redundâncias, com enfoque na interação produzida em diferentes níveis discursivos ao longo da transcrição. Leituras intensivas e extensivas permitiram uma análise temática diferenciada, e o potencial para relações de contraponto foi identificado a partir de três focos: a) no mesmo significante que é repetido com significados agrupados; b) nos mesmos significados agrupados, atualizados em diferentes expressões; e c) ambivalências. Após a definição dos principais significados que regularam as entrevistas, foi produzido um mapa semântico com o auxílio do software Xmind 8 com os principais significados organizados em clusters, síntese dos sentidos associados a esses significados e suas orientações nas entrevistas, identificando-se as dinâmicas reflexivas produzidas no presente sobre o passado e suas orientações ao futuro.

Resultados

A participante produziu dinâmicas reflexivas sobre si a partir dos movimentos de crise e transição instaurados pela tomada de decisão de abandonar o trabalho na Venezuela, sair do país e lidar com a distância dos filhos, que ficaram naquele país durante o primeiro momento em que viveram no Brasil. A participante veio para o Brasil acompanhando o marido que é profissional da área de saúde e havia recebido uma proposta de trabalho. Presenciou os primeiros sinais de crise econômica e humanitária na Venezuela, com a inflação da moeda e o desabastecimento de alimentos e outros produtos básicos. Alternou temporadas na Venezuela e temporadas vivendo no Brasil até se estabelecer definitivamente no Brasil com os filhos e o marido. Na Venezuela, vivia em uma província ao sul do país que faz fronteira com o estado brasileiro de Roraima. Para vir ao Brasil, cruzava a fronteira sozinha por terra, saindo da cidade onde vivia e indo a uma cidade próxima à fronteira, chamada pelos venezuelanos de “La Línea”. Por ter cunhados nesta região, passava a noite ali e depois seguia viagem até a primeira cidade no estado de Roraima, no Brasil, em seguida para Boa Vista, capital do Estado, e tomava um avião à cidade onde vive, localizada na região Centro-Oeste do país. A migração para o Brasil, com o impedimento do exercício profissional como enfermeira e a distância dos filhos, instaurou obstáculos, produzindo reflexividade e a formação de novos posicionamentos.

O cronotopo é definido a partir de sua situação de transição, na trajetória de migração, que é argumentada com críticas ao país de origem e suas dificuldades e, ao país de destino, que na chegada pareceu muito organizado e depois se mostrou difícil. No evento de mudança de país, no passado, suas interpretações tiveram como significados centrais a família e o trabalho. A distância dos filhos e a frustração de abandonar sua profissão e não poder exercê-la no Brasil, fizeram com que a participante se sentisse isolada e tendo experimentado muitos momentos depressivos nos primeiros anos vivendo no Brasil. O marido, que estava empregado, é apresentado como um apoio importante, sempre estimulando-a a se engajar em atividades e conhecer o novo país. A relação da entrevistada com a Venezuela é regulada por significados de: a) ideologia, pela culpabilização do regime político e dos venezuelanos pela atual situação econômica e política instável do país; e b) ficar no Brasil, pela intenção de permanecer com a família no país, com novas possibilidades de emprego e atuação na ajuda a outros imigrantes venezuelanos no país. As novas atuações são mediadas pela organização filantrópica sem fins lucrativos, o Instituto de Migrações Internacionais e Direitos Humanos (IMDH), que se dedica à acolhida humanitária e atendimento jurídico, socioassistencial e à integração social e laboral de migrantes, solicitantes de refúgio, refugiados/as e apátridas. No presente, já participando das atividades do IMDH, realizando um curso profissionalizante que pode “abrir portas no mercado de trabalho no Brasil” e com os filhos vivendo no Brasil, a escalada da crise em seu país e sua situação de estrangeira a fazem sentir medo de ser rejeitada no país, onde por ser venezuelana, pode ser confundida com “venezuelanos maus”, que cometem crimes.

A figura 1 apresenta os significados que regulam as entrevistas e os sentidos relacionados a posicionamentos da participante. Suas entrevistas discorreram com a utilização das posições-Eu: (a) emigrante, quando deixa seu país natal, nas idas e vindas e nas tensões entre medo-solidariedade e tomadas de decisão; (b) migrante, quando está no Brasil e narra sobre sua vida no país, os momentos de crise relacionados ao não exercício da profissão e a distância dos filhos; (c) cidadã, quando narra sua relação com a Venezuela, posicionando-se sobre o governo e explicando as razões para a crise no país; (d) cristã, quando narra sua relação com o cristianismo e como isso a ajudou nos momentos de crise se orientando a resiliência.

Os significados que orientam os movimentos de transição foram: o sacrifício, que marca e regula a relação entre família e trabalho; e o IMDH, cujo apoio se relaciona à dificuldade de atuação profissional e aos momentos de crise. Os significados de IMDH e de Brasil orientam novas atuações da participante orientados à resiliência, relacionada também, ao significado religiosidade e à vida digna. Os sentidos enunciados sobre a Venezuela, como tragédia e violência, ocorrem relacionados a posicionamentos ideológicos orientados por interpretações de perda da dignidade na vida e ao desejo de não retornar ao país de origem. O processo de convencionalização, define-se pelo ir e vir de um país para o outro, pela vida difícil na Venezuela e pela vida no país de chegada, com as práticas culturais diferenciadas que devem ser aprendidas. A continuidade de si é expressa em atos de identificação entre seu país de origem, práticas culturais conhecidas e o país de destino com novas práticas.

Os significados de trabalho e família se estendem como continuidade de si em novas historicidades. As possibilidades de atuações orientadas para o futuro são mediadas pela organização IMDH e o estabelecimento da família no Brasil, promovendo processos de resiliência orientados a mudanças e à agencialidade da participante: “aprendi que estou com possibilidade de ajudar”. O sacrifício de ter que abandonar sua profissão e o sentido de medo de voltar à Venezuela marcam processos reflexivos na transição promovida no presente que interpreta a mudança: “Hoje não temos nenhum desejo de voltar, vivemos bem, estamos com o desejo de trabalhar, fazer coisas, ajudar”. A perspectiva de um futuro bom no Brasil é orientada pela revalidação de diploma profissional para que possa exercer a sua profissão.

Mapa de significados da participante.
Figura 1.
Mapa de significados da participante.

Notas:

  1. - Em vermelho: principais eventos na entrevista.

  2. - Figura diamante: significados centrais da entrevista.

  3. - Retângulos: outros significados importantes e seus sentidos.

  4. - Colchetes: orientações de alguns sentidos.

  5. - Setas retas: relação.

  6. - Seta pontilhada vermelha: relação ambivalente.



A relação com a organização IMDH regula as posições-Eu migrante em relação à comunidade, como apoio, amizades e troca de experiências, com motivação para novas atuações e possibilidades, promovendo novos posicionamentos orientados a resiliência e fomentando processos de identificação. As expectativas estão orientadas para o desejo de um futuro melhor ao lado de sua família, indicando o movimento de transição e a imaginação do futuro como forma de regulação do presente. A posição-Eu migrante em relação à vida da família em outro país indica a concretização de novas práticas familiares e possibilidades de vida profissional no presente, com a atualização de significados relacionados a possibilidades de vida nova. O movimento de mudança do país é descrito como um momento de choque, com medo da rejeição, orientado a xenofobia e a vontade de reconquista da dignidade, relacionada sobretudo ao exercício da profissão no país de destino e no estar em comunidade.

As posições-Eu emigrante relacionadas à mudança de país produzem sentidos orientados a urgência, oportunidade de vida melhor e regulam o Self orientado pela tomada de decisão de sair da Venezuela: “estava vindo para o Brasil para melhor, não estava fugindo de nada ou saindo no momento ruim, estava indo encontrar meu esposo”, orientando os posicionamentos relacionados ao significado de sacrifício: “renunciei minha profissão e vim para o Brasil”; “deixei de fazer algo que eu gostava para seguir ele (marido). Na posição-Eu cidadã, ao se referir à Venezuela, se posiciona com sentidos orientados a falta de dignidade para viver: “há muita violência, mais violência do que havia antes”; “os médicos estão partindo, os hospitais estão fechando”; “pessoas não estão se alimentando direito e devem ir até a fronteira com o Brasil para comprar alimentos”; “o país não estava nessa situação quando cheguei aqui [Brasil]”.

Na posição-Eu cidadã, a participante posiciona, também, seu país natal no passado como um país próspero, que recebeu muitos imigrantes, e com possibilidade de seguir sendo um país rico. Os posicionamentos que faz em relação ao governo, aos políticos e as pessoas do país se regulam pelos significados de ideologia com sentidos de irresponsabilidade e corrupção: “sabemos que toda culpa pode cair sobre o governo”. Os posicionamentos em relação ao governo da Venezuela se chocam às posições-Eu cidadã: “não somos iguais, se você estuda e trabalha é por uma vida melhor, mas sua vida não pode ser a mesma se você não trabalha e não estuda”.

O significado Venezuela, com sentido de incerteza e medo de voltar ao país, se orienta para uma vida não digna, regulando os posicionamentos que faz em relação aos venezuelanos que vão para o Brasil: “pessoas que saem só com uma maleta, seus títulos e diplomas e o pouco dinheiro que tiveram com a venda de suas coisas”; “há histórias de gente que foi andando de Pacaraima a Boa Vista”. Ao narrar a vida no Brasil, a posição-Eu migrante foi enunciada com o sentido de choque cultural, relacionado ao momento de transição: “tive momentos depressivos, passei por muitos momentos de depressão nesses quatro anos”, relacionados aos significados de trabalho e de família: “meu marido se dedicava a trabalhar e eu me dedicava a ficar em casa. Estar sozinha na casa me colocava nessa posição”. Posiciona o marido que exerce a sua profissão e a quem, também, apoia, com sentidos de auxílio e preparo na vida no Brasil: “meu esposo sempre me apoiava em outras coisas, sair, conhecer, buscar uma maneira”; “fazia todos os trâmites e foi me ensinando”; “para ele foi mais fácil se adaptar porque veio com uma proposta de trabalho, se preparou, aprendeu português antes, sabia o que é viver em outro país”.

Durante os momentos de crise, nas viagens entre Venezuela e Brasil, o Self se regulou pelas posições-Eu emigrante pela imaginação do futuro com esperança: “pensar no futuro me ajudava, dava outro estado de profundidade, de entendimento”; “a partir da segunda viagem, apesar da tristeza, pensava no bom que viria no futuro”. A posição-Eu cristã se relaciona ao significado de religiosidade no sentido de catarse, orientada à resiliência nos momentos mais emocionais, mediando a superação das dificuldades: “depois que entendi como Deus atuava passei a confiar Nele, foi minha fé Nele que me fez estar bem” e “foi um alívio ter chorado na igreja do meu marido, não era meu costume, senti que me aliviei, não entendia português”.

Os sentidos de solidariedade e empatia, relacionados ao Brasil, regulam os posicionamentos feitos em relação aos brasileiros: “fiquei impressionada em ver brasileiros dando comida aos venezuelanos na fronteira”; “nos veem como ‘ah, seu país está mal, passam fome, estão comendo do lixo’, algo de medo ou pena pelo país”. Narra que ao chegar ao Brasil, suas primeiras impressões foram de que “tudo parecia bonito, funcionar bem, senti que estava em um país desenvolvido, mas agora vejo que a realidade é outra”. A tensão ambivalente entre solidariedade não solidariedade, regulada pelo medo da rejeição dos brasileiros, que podem ou não a aceitar, gera diferenciações na posição-Eu migrante, marcada por sentidos de medo da rejeição, orientados à xenofobia: “tenho medo de dizer que sou venezuelana, tenho medo da rejeição, agora a xenofobia voltou, se expandiu, não quero passar por isso”.

O sentido de comunidade inclui, também, o IMDH e se orienta ao suporte e regula sua relação com os outros venezuelanos: “estamos nos organizando de alguma maneira, trocamos informação, com isso muitos conseguem emprego, isso minimiza a pressão”. No presente, as posições-Eu migrante concretizam, pelo IMDH, sentidos orientados à resiliência, como novas formas de ajudar os outros e a realização de novas atividades, uma vez que está com toda sua família estabelecida e iniciou um curso profissionalizante em uma instituição: “enquanto família, estamos bem organizados aqui”; “este ano melhorou porque pude trazer meus filhos e meu neto, que vive e nasceu aqui, isso ajudou a me sentir firme”; “o que eu quero fazer é ajudar os que chegam, para que não precisem passar pelas coisas que eu passei por desconhecimento”.

O objeto levado para a entrevista foi uma foto no celular de seu diploma de enfermeira, guardado desde que veio para o Brasil, ao falar sobre ele, narrou a dificuldade e o esforço para consegui-lo na Venezuela, bem como a frustração de não poder exercer a profissão que almejava desde pequena, “no melhor momento em que eu estava exercendo minha profissão, foi quando tive que renunciar, trabalhava na sala de parto e estava sendo promovida”. Em relação à carreira, afirma que quando decidiu sair do emprego para vir ao Brasil, alguns colegas se preocuparam, recomendando que ela pedisse licença temporária do emprego, para voltar depois, e outros colegas não demonstraram alegria por ela, mas a participante se posiciona como determinada e honesta com sua decisão, “acredito que tudo me deu a razão, foi para melhor”. No momento da entrevista, a validação do seu diploma no Brasil já estava em processo.

Discussão

As trajetórias humanas em movimento são orientadas em práticas sociais em transição (Marsico, 2015), definem cronotopos em que há atualização de posicionamentos e significados, pois amplia-se as possibilidades de continuidade de si e estar no mundo. Nesse processo, o jogo polifônico ocorre no embate entre o presente que interpreta o passado e se regula por possibilidades de um futuro, em que se conquista uma nova cidadania assentada em conhecimentos anteriores, que são utilizados para a obtenção exitosa de novas formas de conhecer e estar no novo país, incluindo o estar em família, na comunidade e no exercício da profissão escolhida. Os significados que regularam a narrativa estão relacionados à possibilidade de ficar no país escolhido e que os sacrifícios podem ser vencidos com as próprias atuações, em escolhas e buscas por soluções, e pela mediação da família, de instituições que trabalham com migrantes e pela religiosidade.

As experiências históricas promovem interpretações da continuidade de si-mesmo, em que o tempo presente marca e reconfigura o passado, gerando possibilidades de futuro mais ou menos fluidas, mais ou menos negociáveis. O estar em fronteiras, indica as tensões nas narrativas em que as interpretações de si, se regulam em relação com as intepretações sobre os outros e suas posições, e, com as situações vividas na trajetória de mudança de país, de maior ou menor vinculação e desvinculação com o país de origem, energizadas pelas ambivalências enunciadas. Integrar-se relaciona-se a apoiar e exercer a cidadania plena, receber os concidadãos venezuelanos é apoiar a si, sua família e os recém-chegados. Fazer parte da cultura escolhida implica em ficar com a família e poder exercer a profissão, apoiando os que a apoiaram, incluindo as instituições que continuam a acolher os imigrantes venezuelanos.

Estar nas fronteiras entre a historicidade de origem e a nova historicidade, como sua experiência pessoal ao longo de sua história, perpassa a negociação e inovação entre o que eram práticas conhecidas e as novas práticas. No encontro entre historicidades distintas (Segato, 2012), o processo de convencionalização (Bartlett, 1995) ocorre na negociação de interpretações de si, do outro e das vivências conhecidas no contexto de origem e ain- da sendo conhecidas no contexto no qual se vive, aproveitando-se das oportunidades, com idas e vindas entre os dois lugares, entre as duas formas de organização institucional e da vida cotidiana, e a decisão de ficar, com a mudança da família para o Brasil e a formação de uma comunidade própria de seu povo de origem onde mora atualmente. A convencionalização parece, então, orientar-se em jogos entre resiliência-resistência, gerando integração ao novo lugar, ao mesmo tempo em que há um referencial forte de comparação com o lugar de origem e resistência com reflexividades relacionadas ao passado de seu país e a votos de que volte a sê-lo, indicando um processo que parece estar relacionando maior integração e formação de uma comunidade híbrida que favorece a migração e hibridização na negociação própria da inter-historicidade, em que mantêm-se as práticas do povo de origem ao mesmo tempo em que aprende-se com as práticas do povo que a recebe, atualizando-as.

As convencionalizações, então, podem ser dialógicas, pois identificou-se que as dinâmicas de tensão entre forças centrípetas, de permanência, e centrífugas, de mudanças, próprias dos processos polifônicos, estão em atuação. As trocas assimétricas no inbetween (Buber, 1937) modificam a todos os interlocutores, inclusive aos brasileiros pela exposição à novidade do ainda diferente. Com a trajetória de imigração e a resolução em ficar e aqui conquistar novamente sua dignidade cidadã e a produção de um entorno familiar e de concidadãos, há o deslocamento das culturas em negociação, que se hibridizam. A territorialidade se hibridiza, pois há a desvinculação da cultura de origem do seu território para o lugar em que se passa a viver, com aberturas para novas formas de expressão dessa cultura no novo contexto.

Os jogos entre ideologia e emoção marcam as trajetórias de atualização de significados e atuações, como pode-se observar na ambivalência ser aceitater medo de não ser aceita, pelas generalizações a respeito de si e de sua família com outros venezuelanos, e com os lamentos em relação à riqueza momentaneamente perdida de seu país de origem e a forma como os brasileiros nas fronteiras tratam os seus concidadãos que passam necessidades. Nas tensões entre ideologia e emoção que marcam os significados e orientam os sentidos que passam a integrar os novos posicionamentos relacionados ao ficar, criar os filhos, trazer toda a família, acolher os concidadãos, trabalhar e contribuir com o novo país, a hibridização pode ser observada nas ambivalências, que nas dinâmicas de convencionalização tornam-se aberturas que indicam o jogo polifônico dos significados e sentidos em atualização.

Em momentos de grande incerteza e nas tensões ambivalentes (Abbey, 2012; Forcione & Barbato, 2017) entre as expectativas de aceitação-não aceitação do imigrante, a resiliência é promovida com a criação de aberturas para a integração a partir de organizações humanitárias, agregação familiar, instituições religiosas, ações comunitárias e profissionais (Pearce et al., 2017). As ambivalências são dinamogênicas, ou seja, geram desenvolvimento, visto que nas interpretações de si geram reflexividades que relacionam os sentidos reguladores dos posicionamentos no presente, que iluminam feixes de significados do passado e das expectativas de futuro com os lugares e suas práticas presentes e passadas, abrindo possibilidades de expansão da noção de continuidade de si nas novas práticas culturais, promovidas pelas mudanças e permanências em negociação.

Considerações finais

As experiências humanas em trajetórias de imigração de pessoas adultas estabelecem cronotopos, tempos-espaços específicos, que se atualizam em negociações de significados com a produção de novos posicionamentos no longo processo de convencionalização, estabelecido no jogo entre o conhecido e os novos conhecimentos. A produção de interpretações sobre si, o outro e as situações vivenciadas, orientam-se por quebras e ambivalências, nas tensões entre aceitação e não aceitação, solidariedade e não-solidariedade, menos dignidade-mais dignidade em práticas preferenciais em jogo com as necessidades pessoais e familiares em trajetórias de migração. A chegada ao destino ainda implica em continuidade de trajetória, em estar estabelecida e estar em movimento, avançando na produção de outra dignidade, no cuidado do outro e de si, no exercício da profissão. As interpretações de si, do outro e do mundo mudam com a ampliação dos processos de identificação e mudanças, permanências e seleção de significados e práticas na inter-historicidade, estando em atualização, combinando afetos, cognições e atuações orientadas e sustentadas por crenças e valores pessoais, familiares e sociais. O humano produz-se polifonicamente, é responsivo e gera novas formas de ser, sentir e atuar. Na trajetória de migração, o senso de continuidade se reorienta e é desafiado por obstáculos e rupturas que reverberam em diferentes vivências. A reflexão regula experiências e as orientam, desde a experiência do presente atualizando o passado e produzindo futuros possíveis em atuações situadas, em convencionalização.

Considerando os impactos das trajetórias imigratórias para o Brasil identificados neste texto, torna-se urgente o desenvolvimento de outros estudos que enfoquem os processos de produção de significados em interpretações de si em trajetórias de migração e permanência no país. Em relação à atuação da sociedade e do Estado, mudanças podem gerar um acolhimento mais seguro daqueles que estão em momentos de indefinição em suas trajetórias pessoais, familiares e como povo, produzindo-se inter-historicidades abertas a práticas diferenciadas. Há avanços a serem feitos no âmbito da sociedade e comunidades e das políticas públicas extensivas, que permitam o assentamento com dignidade no país, com a inserção dessas pessoas na vida cotidiana e sua inclusão com presteza no sistema de educação e no mercado de trabalho brasileiro. Considerando os limites metodológicos, em estudos futuros, pode-se explorar, também, possibilidades de estudos que combinem entrevistas qualitativas, narrativas ou semiestruturadas, com aplicação de métodos de entrevistas em movimento que permitam o acompanhamento dos participantes pelos seus espaços cotidianos em várias sessões distintas, fornecendo material de pesquisa tanto para a produção de dados verbais quanto para a produção de dados observacionais e fenomenológicos.

Gratidão

Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, Brasil.

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Autor notes

** Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília.

* Dirigir correspondencia a Rômulo Ataides França, Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Correio eletrônico: romuloataides@bol.com.br