Ateliê de pintura com idosos acolhidos: uma perspectiva sociocultural do curso de vida

Painting Workshop with Institutionalized Elderly People: A Sociocultural Perspective of the Life-course

Taller de pintura con ancianos acogidos: una perspectiva sociocultural del curso de vida

Tatiana Yokoy *
Universidade de Brasília, Brasil
Daiane Souza Guedes
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, Brasil

Ateliê de pintura com idosos acolhidos: uma perspectiva sociocultural do curso de vida

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 37, núm. 3, 2019

Universidad del Rosario

Recepção: Junho 04, 2019

Aprovação: Agosto 05, 2019

Informação adicional

Para citar este artigo: okoy, T., & Guedes, T. S. (2019). Ateliê de pintura com idosos acolhidos: uma perspectiva sociocultural do curso de vida. Avances en Psicología Latinoamericana, 37(3), 247-261. Doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.7961

Resumo: Apesar do envelhecimento populacional, especialmente acentuado no contexto latino-americano, ainda são poucas as pesquisas sobre esta etapa da vida e precárias as políticas públicas relacionadas à velhice. Os objetivos deste estudo foram discutir a cidadania de idosos que enfrentam situação de rua e/ou vivenciam acolhimento institucional no Brasil e problematizar a formação de psicólogos para atuar junto à população de idosos. Para isso, evidenciamos as transformações desenvolvimentais de idosos que participaram de atividades de pesquisa e extensão em um serviço de acolhimento institucional em Brasília, Brasil. A metodologia envolveu um ateliê de pintura, exposições em espaços públicos e entrevistas, com a mediação de recursos artísticos e narrativas autobiográficas. A psicologia sociocultural do curso de vida foi utilizada como fundamentação para analisar as mudanças no desenvolvimento dos acolhidos. Os idosos realizaram novas aprendizagens, ocorreram transformações identitárias e novos projetos de futuro foram construídos. Apontamos a necessidade de mudanças na formação de psicólogos, a fim de melhor qualificar sua atuação nas políticas públicas orientadas para a garantia de direitos de idosos.

Palavras-chave envelhecimento, situação de rua, acolhimento institucional, políticas públicas, psicologia sociocultural.

Abstract: Despite the progressive aging of the population, especially in Latin America, and the precariousness of the public policies related to the elderly, there are few studies regarding this moment of life. The objectives of this study were to discuss the citizenship of the aged who are homeless or who live in nursing homes in Brazil and to discuss the training of psychologists to work with the elderly population. For this, we highlight the developmental transformations of the aged participants on specific extension activities at an institutional shelter service in Brasilia, Brazil. The methodology involved painting workshops, exhibitions in public spaces, and interviews with the mediation of artistic resources and autobiographical narratives. The analyses used the sociocultural psychology of the life-course. New learning experiences, identity changes, and new projects for the future took place among participants. We point out the need for transformations in the training of psychologists, in order to better qualify their performance according to public policies aimed at ensuring the rights of the elderly.

Keywords: Aging, street situation, nursing homes, public policy, sociocultural psychology.

Resumen: A pesar del envejecimiento poblacional, especialmente acentuado en el contexto latinoamericano, son pocas las investigaciones sobre esta etapa de la vida y precarias las políticas públicas relacionadas con la vejez. Los objetivos de este estudio fueron discutir la ciudadanía de ancianos que son habitantes de la calle y/o viven acogidos por instituciones en Brasil y problematizar la capacitación de psicólogos para actuar junto con esta población. Para esto, se evidencian las transformaciones desarrollables de algunos ancianos que participaron en actividades de investigación y extensión en un servicio de acogimiento institucional en Brasilia, Brasil. La metodología involucró un taller de pintura, exposiciones en espacios públicos y entrevistas, con la mediación de recursos artísticos y narrativas autobiográficas. La psicología sociocultural del curso de vida fue utilizada como fundamentación para analizar los cambios en el desarrollo de los acogidos. Los ancianos obtuvieron nuevos aprendizajes, ocurrieron transformaciones de identidad y nuevos proyectos de futuro fueron construidos. Se señala la necesidad de cambios en la capacitación de psicólogos, con el fin de calificar mejor su actuación en las políticas públicas orientadas para la garantía de derechos de los ancianos.

Palabras clave: envejecimiento, habitante de la calle, acogimiento institucional, políticas públicas, psicología sociocultural.

Os psicólogos têm sido cada vez mais solicitados a atuar junto à população idosa, que cresce rapidamente em todo o mundo, especialmente na Ásia e na América Latina, conforme dados recentes da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL, 2014). O Brasil, por exemplo, que era considerado um país jovem até a década de 1980, será o sexto país no mundo em quantidade de pessoas idosas em 2025, conforme problematizado por Araújo, Castro e Santos (2018).

A maior proporção de idosos em todo o mundo implica em importantes transformações econômicas, sociais e políticas. Se, até o fim do século XX, as políticas públicas priorizavam o controle da mortalidade e o aumento da expectativa de vida, com o envelhecimento populacional mundial, o novo desafio é preparar as sociedades para acolher os idosos do século XXI, ofertando condições para que estes vivam com qualidade de vida e bons níveis de saúde, autonomia e independência (OMS, 2005; Ribeiro, 2015; Simões, 2016).

Apesar disso, existem ainda poucos estudos sistematizados em Psicologia sobre esta etapa do ciclo de vida que subsidiem políticas públicas destinadas à qualidade de vida na velhice. Por um lado, nos últimos anos, no Brasil, aumentaram as pesquisas na área e se diversificaram os contextos de trabalho de psicólogos junto a idosos, suas famílias e suas comunidades. Por outro lado, apesar da Política Nacional do Idoso (Lei n. 8.842/ 1994) recomendar a inclusão de disciplinas sobre envelhecimento nos cursos de graduação, ainda é irrisória a presença deste tema na formação de psicólogos (Machado, 2008; Yassuda, 2008). Este descompasso entre formação e prática profissional de psicólogos pode prejudicar a defesa de direitos dos idosos.

Nesse sentido, são necessárias mudanças na formação dos psicólogos, de modo a reconhecer a diversidade e a complexidade dos processos de envelhecimento e a desenvolver competências profissionais adequadas à atuação nas políticas públicas voltadas a idosos. Neste trabalho, destacamos a Política Nacional de Assistência Social (Brasil, 2004) enquanto importante política pública que pode promover o desenvolvimento e os direitos de idosos brasileiros. Relatamos as transformações desenvolvimentais realizadas por idosos em situação de acolhimento institucional em Brasília, Brasil, por meio da mediação de recursos artísticos e narrativos em contexto coletivo de um ateliê de pintura. O ateliê foi composto por atividades de extensão e pesquisa ofertadas pela Universidade de Brasília.

Com a intencionalidade de colaborar para a formação de profissionais para atuar criticamente junto a idosos latino-americanos e brasileiros, apresentamos o contexto atual das políticas públicas para idosos no Brasil e problematizamos a cidadania de idosos que enfrentam situação de rua. Na sequência, discutimos a diversidade dos modos de se compreender a velhice e a formação de psicólogos para atuar junto a esta população, bem como apresentamos ideias centrais da psicologia sociocultural do curso de vida, enquanto fundamento para nossas análises.

Políticas públicas e a cidadania de idosos que enfrentam situação de rua no Brasil

O Brasil tem procurado fortalecer as políticas públicas para a garantia de direitos dos idosos e para o combate à discriminação, à negligência, ao abuso e aos maus tratos, desde 2003, quando adotou o Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento ( onu, 2003). Desde então, foram lançados programas e legislações importantes, como o Estatuto do Idoso (Lei no 10.741/2003).

Entretanto, estes dispositivos legais são ainda insuficientes para garantir o pleno desenvolvimento dos idosos brasileiros, especialmente dos que enfrentam vulnerabilidades sociais.

Desde 2010, tem crescido a população idosa em situação de rua nos centros urbanos brasileiros (Brêtas, Marcolan, Rosa, Fernandes, & Raizer, 2010; Mattos & Ferreira, 2005; Mattos, Grossi, Kaefer & Terra, 2016). Considerando o atual processo de envelhecimento demográfico e os recentes cortes de investimentos em benefícios socioassistenciais no país, a demanda por acolhimento institucional de idosos tem aumentado. Muitos fatores levam os idosos brasileiros a viver nas ruas ou em abrigos institucionais, como por exemplo (Mattos & Ferreira, 2005; Gutierrez, Silva, Rodrigues & Andrade, 2009; Gusmão et al., 2012; Bueno & Canineu, 2016): a situação de pobreza da família de origem; o rompimento dos vínculos familiares; a baixa escolaridade; frequentes migrações; adições em álcool e/ou outras drogas; sofrimentos psíquicos e transtornos psiquiátricos; eventos de vida críticos e não normativos que esgotaram os recursos de enfrentamento da pessoa; além da inserção precoce no mercado de trabalho, do nomadismo ocupacional e da fragilização de vínculos trabalhistas ao longo de todo o curso de vida.

É importante enfatizar que a experiência de ser idoso em situação de rua ou que vive em abrigos institucionais é singular e heterogênea. É possível identificar os que valorizam a liberdade de estar nas ruas, os que têm planos de futuro positivos e os que gostam de viver em abrigos (Gusmão et al., 2012; Mattos, Grossi, Kaefer, Terra, 2016). Entretanto, podemos afirmar que, em geral, a rua é um ambiente hostil que prejudica as condições de saúde, a autoimagem, o autocuidado e a capacidade funcional dos idosos (Brêtas et al., 2010; Mattos et al., 2016). Estes relatam não mais conseguir trabalho, por conta da perda de agilidade e força, e muitos vivenciam sofrimento mental, depressão e a falta de perspectivas de futuro.

Trabalhos recentes têm traçado um perfil das pessoas que envelhecem nas ruas brasileiras (Bueno, 2013; Bueno & Canineu, 2016). Sua rede social é restrita a companheiros na mesma situação e a poucos voluntários de projetos sociais. Muitos perderam seus documentos civis, o que dificulta as já raras oportunidades de trabalho. Para sua higiene, utilizam postos de gasolina, rodoviárias, bicas ou serviços socioassistenciais. Para se alimentar, buscam abrigos, pedem doações ou vasculham lixeiras. Neste cenário de violação de direitos, é muito mais difícil para os idosos saírem da situação de rua por conta dos problemas de saúde, das poucas oportunidades de serviço, do difícil acesso a programas sociais e dos frágeis vínculos familiares ou comunitários.

Silva et al. (2017) apontam como os principais fatores para a institucionalização de idosos no Brasil: a baixa renda, complicações de saúde, mudanças no mercado de trabalho e as dificuldades financeiras enfrentadas pelas famílias. Viver nas ruas ou buscar acolhimento institucional são as alternativas encontradas por muitos, diante do afastamento dos filhos para constituírem suas famílias e do falecimento de amigos e familiares (Guimarães & da Silva, 2013).

No contexto da Política Nacional de Assistência Social (Brasil, 2004), existem Serviços de Acolhimento Institucional voltados para idosos com o objetivo de garantir sua proteção social. Este Serviço é prestado a pessoas que não dispõem de condições para permanecer com a família, com vivência de situações de violência e negligência, em situação de rua e de abandono, com vínculos familiares fragilizados ou rompidos (Brasil, 2009). O acolhimento deve ser provisório em casaslares ou abrigos, com estimativa de duração de até seis meses. Apenas excepcionalmente, o acolhimento de idosos pode ter longa permanência, quando forem esgotadas todas as possibilidades de autossustento e convívio com seus familiares. As Unidades de Acolhimento de Idosos devem ser de pequeno porte, realizar atendimentos personalizados, desenvolver a autonomia e promover a convivência social e comunitária do idoso.

Gusmão et al. (2012) realizaram uma revisão de literatura sobre a velhice vivida em situação de rua e no contexto do acolhimento institucional no Brasil. Concluíram pela necessidade de desenvolvimento dos profissionais da área e de intervenções profissionais que resgatem a cidadania deste grupo. Também entendemos que, a fim de lidar com os desafios do envelhecimento populacional e com as políticas públicas nesta área, são necessários mais estudos e investimentos na formação de profissionais, inclusive na Psicologia. Na próxima seção, apresentamos as diversas compreensões sobre a velhice e problematizamos a formação de psicólogos neste campo.

A diversidade de modos de se compreender a velhice e a formação de psicólogos para atuar junto a idosos

Do ponto de vista cronológico, de acordo com a Organização Mundial da Saúde ( oms, 2005), o parâmetro etário para que um sujeito seja considerado idoso é de 60 anos em países em desenvolvimento e 65 anos em países desenvolvidos. Entretanto, o envelhecimento é um processo multidimensional que envolve fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais (Araújo et al., 2018). No que se refere à sua dimensão biológica, o envelhecimento pode envolver declínios funcionais do organismo com o avançar da idade. Já do ponto de vista psicossocial, a experiência subjetiva de envelhecer é significada a partir das relações interpessoais e pela articulação entre mediações cognitivas e psicoafetivas.

Nas complexas sociedades contemporâneas, existem idosos de muitas idades, condições educacionais, gêneros, classes sociais e status comunitário (Neri, 2013a). As pessoas podem envelhecer bem, mesmo que apresentem mudanças normativas associadas à senescência, a depender de influências genéticas e das condições ambientais e comportamentais, quando se minimizam perdas funcionais, se controlam doenças crônicas e se mantém a participação social do idoso.

Na literatura científica sobre envelhecimento, existem diversas nomenclaturas para denominar o processo de envelhecer bem, como: envelhecimento ativo; envelhecimento bem-sucedido; envelhecimento robusto; envelhecimento produtivo; envelhecimento saudável; terceira idade/ quarta idade. Em comum, estes termos buscam superar a visão negativa do envelhecimento e da velhice. No entanto, cada um evidencia modelos distintos de se compreender o envelhecimento e contribui diferencialmente para práticas profissionais (Teixeira & Neri, 2008; Neri, 2013a; Gonçalves, 2015; Ribeiro, 2015).

Atualmente, os estudos sobre envelhecimento enfatizam a diversidade das trajetórias de desenvolvimento e das experiências de envelhecer (Neri, 2004; 2013a; Stenner, McFarquhar & Bowling, 2011; Gonçalves, 2015; Ribeiro, 2015). Contextualizam socioculturalmente o processo de envelhecer, aproximam-se de concepções mais amplas de saúde e desaprovam as dicotomias entre sucesso/ fracasso e atividade/ passividade. Criticam as ideias iniciais que idealizavam o envelhecimento, a busca pela ausência de doenças e a maximização de atividades para idosos.

Apenas recentemente as temáticas sobre envelhecimento são alvo de mais estudos na Psicologia (Neri, 2006; 2013a; Baars & Philipson, 2013) e, ainda hoje, é necessária uma mudança paradigmática, a fim de considerar a diversidade das experiências de velhice e de promover os potenciais desenvolvimentais de idosos. Somente em 2004, a American Psychological Association sistematizou diretrizes para a prática psicológica com idosos, que foram revisadas em 2013 ( apa, 2014).

No Brasil, os processos de envelhecimento e a diversidade da velhice ainda possuem pouco espaço na formação de psicólogos (Neri, 2004; 2006; Machado, 2008; Yassuda, 2008; Batistoni, 2009). Neri (2004) critica que a psicologia brasileira ainda não possui produção volumosa, longitudinal, continuada, sistemática e característica sobre a velhice; também avalia que a Psicologia do Envelhecimento ainda não é ensinada sistematicamente nas universidades brasileiras, o que prejudica a formação de psicólogos e a difusão de informações científicas sobre o desenvolvimento de idosos.

Neri (2013a; 2013b) sistematizou os principais paradigmas e teorias utilizadas na Psicologia do Envelhecimento. Os três principais paradigmas deste campo são: os ciclos de vida; o curso de vida; e o desenvolvimento ao longo de toda a vida. Já as principais teorias da área podem ser categorizadas em: clássicas, de transição e contemporâneas. De modo resumido, as teorias clássicas remetem ao paradigma de ciclos de vida e se expressam por teorias de estágios e por modelos lineares e universais de crescimento- culminância-contração, típicos do início do século XX. Já as teorias de transição articulam-se com o paradigma dos cursos de vida e concebem as trajetórias de desenvolvimento enquanto resultado de construções sociais e simbólicas; no entanto, tendem a desconsiderar as influências genético-biológicas sobre o envelhecimento. Por fim, as teorias contemporâneas assumem uma visão mais integrada e plural sobre o envelhecimento e se contextualizam no paradigma do desenvolvimento ao longo de toda a vida (lifespan), cujo nome de referência é Paul Baltes (1987, 1997).

Esse é o paradigma dominante na Psicologia do Envelhecimento internacional nos dias de hoje. Ele pressupõe que pode ocorrer desenvolvimento na velhice, mesmo diante de limitações de origem biológica, caso o ambiente cultural seja propício para a preservação de potencialidades e para a manutenção de processos psicológicos (Neri, 2004). A perspectiva lifespan é inspirada pela plasticidade comportamental e defende a possibilidade da “velhice bem-sucedida”, a partir da regulação de ganhos e perdas por meio da orquestração de estratégias de seleção de metas, otimização de habilidades e compensação de perdas (Neri, 2006, 2013a, 2013b).

Conforme discutido por Neri (2006), a Psicologia do Envelhecimento tem se fortalecido desde a década de 1990, a partir da consolidação do paradigma lifespan. Esta perspectiva é considerada um meta-modelo para a pesquisa e a intervenção e tem sido utilizada em todas as fases do ciclo de vida em Psicologia do Desenvolvimento (Neri, 2006). Entretanto, uma das principais críticas se refere à responsabilização excessiva do sujeito pelo alcance do “sucesso” em seu envelhecimento, minimizando-se os fatores contextuais que podem limitar os recursos subjetivos e sociais, tais como o acesso à educação, habitação, trabalho, saúde e proteção social ao longo de toda a vida (Fonseca, 2010; Ribeiro, 2015).

Recentemente, Tania Zittoun (2012, 2016) discutiu o curso de vida a partir da perspectiva socio-cultural em Psicologia, articulando contribuições da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia Social. Nesta proposta, em construção, visa-se compreender como as pessoas se desenvolvem em seus ambientes socioculturais, a dinâmica por meio da qual as dimensões sociais e culturais se tornam psicológicas e o modo como as pessoas transformam seu mundo social e cultural. Vejamos na próxima seção algumas ideias centrais da psicologia sociocultural do curso de vida de Zittoun.

A proposta de uma psicologia sociocultural do curso de vida

Zittoun (2012, 2016) adota os pressupostos da Psicologia Sociocultural para propor um modelo integrativo de desenvolvimento ao longo de todo o curso de vida. Para ela, o estudo do curso de vida deve explicar a complexa interação entre o desenvolvimento psicológico, o papel canalizador da cultura, as mudanças sociais e a margem de liberdade de cada pessoa em determinadas circunstâncias.

O modelo sociocultural do curso de vida de Zittoun (2012, 2016), ainda em construção, se organiza por meio de elementos como: a circunscrição temporal, cultural e social do desenvolvimento; a pluralidade de esferas de experiências no mundo contemporâneo; e a constante evolução dos sistemas de orientação de uma pessoa. O modelo enfatiza pontos de bifurcação, rupturas e transições de desenvolvimento bem como destaca o papel da imaginação e dos processos de significação. Considerando os objetivos deste trabalho, apresentamos a seguir algumas destas ideias centrais.

A visão de mundo de uma pessoa é composta por um sistema de orientação (Zittoun, 2012), que resulta da internalização/externalização de experiências compartilhadas e situadas socialment, sendo a base para seus processos de significação.

Os sistemas de orientação são a base através da qual uma pessoa confere sentido à sua experiência, o que inclui a avaliação afetiva da experiência, sua semiotização, transformando-a em narrativas possíveis, e a base do desenvolvimento de crenças e valores mais gerais que guiam a vida da pessoa (Zittoun, 2012, p. 522).

A esfera de experiência (Zittoun, 2012) remete a uma dada configuração de experiências, atividades, representações e sentimentos que ocorrem repetidamente em um dado tipo de ambiente social, material e simbólico. Zittoun (2016) distingue esferas de experiências proximais e distais. As primeiras são específicas a uma pessoa, engajada em um dado comportamento, no aqui e agora, em um ambiente social. Já as segundas são exploradas ativamente por meio da imaginação, por exemplo, quando pensamos sobre o que faremos no final de semana. Uma tensão surge na medida em que uma pessoa se move psicologicamente entre esferas de experiências proximais e distais. A depender das condições, estas tensões podem ser significadas como rupturas que promovem novas aprendizagens e o desenvolvimento de uma pessoa.

Rupturas são pontos de virada ou momentos críticos no desenvolvimento de uma pessoa e costumam constituir pontos de bifurcação nas trajetórias de vida, de modo que alguns caminhos são abertos e outros se tornam menos prováveis (Zittoun, 2012). As rupturas podem ser resultado de fatores internos (por exemplo, quando alguém decide se divorciar) ou externos (quando se sofre um acidente).

Zittoun e Gillespie (2016) defendem a importância de se prestar mais atenção ao papel da imaginação no curso de vida. Para Zittoun (2016), a imaginaçãoé a dinâmica central por meio da qual nos mantemos engajados na vida, nos movimentamos por diferentes esferas de experiência e transcendemos os circunscritores sociais, materiais e simbólicos. Ao considerá-la, podemos compreender, por exemplo, por que idosos com mobilidade reduzida podem se considerar tão felizes quanto quando eram independentes, conforme analisado em Zittoun (2012).

Imaginar é um processo de desenvolvimento que pode mudar a pessoa e suas esferas de experiências em diferentes níveis (Zittoun, 2016). No nível microgenético, transcender o presente permite novas ideias, alívios ou soluções para problemas vivenciados. No nível ontogenético, a imaginação pode criar rupturas na trajetória de vida. No nível sociogenético, a imaginação contribui para mudanças sociais e novas tecnologias. Por exemplo, durante séculos, imaginou-se na ficção científica como seria viajar para a Lua; estas narrativas colaboraram para a construção de tecnologias que possibilitaram a viagem à Lua.

Já o conceito de transição designa “os processos desencadeados por uma ruptura experimentada por uma pessoa e que conduzem a uma nova adaptação progressiva entre a pessoa e seu ambiente” (Zittoun, 2012, p. 523). Nas pesquisas de ciclo de vida, a noção de transição tem sido usada para designar momentos de mudança na trajetória de vida de uma pessoa.

Segundo Zittoun (2012), as relações interpessoais e os recursos semióticos são importantes fontes de recursos usados nas transições de desenvolvimento. As primeiras podem ofertar um espaço protegido para o compartilhamento de experiências, a troca de pontos de vista e o distanciamento da experiência, potencializando a reflexividade. Os sujeitos também podem intencionalmente buscar recursos semióticos (como informações científicas, filmes, músicas e romances) para apoiar suas transições desenvolvimentais (Gillespie & Zittoun, 2010). Estes recursos podem desempenhar papel importante na mediação das transições, pois apoiam e orientam experiências imaginárias afetivas e reflexivas, separadas dos circunscritores do cotidiano (Zittoun, 2012).

Além disso, do ponto de vista sociocultural, as experiências subjetivas e os processos de significação somente ocorrem de modo corporificado, por meio das capacidades dos nossos corpos, sentidos e mentes (Zittoun, 2012). Os corpos dos idosos, por exemplo, são importantes circunscritores para a construção de sentidos e de suas experiências consigo, com os outros e com o mundo.

Ao considerar a dinâmica das transições de desenvolvimento e as variações no curso de vida, Zittoun (2012, 2016) defende a dependência mútua entre novas aprendizagens, a construção de novos sentidos e as transformações identitárias. Geralmente, ao se mudar um destes aspectos, mudanças também são realizadas nos demais. Por exemplo, um adulto que aprende uma nova língua pode se sentir mais competente e se comportar com mais iniciativa em seu trabalho. Ali, pode assumir novas responsabilidades, o que pode mudar sua identidade profissional. A partir disso, pode imaginar novos sentidos para seu futuro.

A partir de um estudo de caso em um lar de idosos, Zittoun (2016) avaliou que a imaginação é um dos principais meios pelos quais estes reavaliam suas vidas e constroem novas possibilidades para si. A transição que um idoso experencia durante a institucionalização, por um lado, implica em uma possível redução das suas esferas de experiência proximais. Por exemplo, a sua vida será agora organizada de acordo com a rotina da instituição, com seu ambiente social e com pouca privacidade. Por outro lado, no mesmo ambiente, existem diversos objetos materiais e ferramentas semióticas que possibilitam a exploração de esferas de experiência distais. Por meio da imaginação, relata Zittoun (2016), os idosos transcendiam tempo e espaço, revisitavam seus familiares, relembravam experiências passadas e exploravam alternativas de futuro.

No modelo proposto por Zittoun (2012, 2016), envelhecer não se restringe a lembrar acontecimentos passados. Ao invés disso, ela defende que acontece uma verdadeira reconfiguração do espaço vital da pessoa que envelhece e das suas esferas de experiências, sejam proximais ou distais. Com essa dinâmica e por meio da imaginação, podem ocorrer novas aprendizagens, novas significações e mudanças identitárias.

Como desafios para sua teorização sociocutural sobre os cursos de vida, Zittoun (2012) aponta dificuldades em se traduzir empiricamente a complexidade da dinâmica pessoa-contexto e em se generalizar os resultados de pesquisas pautadas em significações e transições de desenvolvimento. Outro importante desafio é oferecer ferramentas práticas aos profissionais, a partir de conhecimentos que enfatizam processos dinâmicos e imprevisíveis.

A perspectiva sociocultural sobre o curso de vida (Zittoun, 2012, 2016) é assumida neste trabalho como fundamentação para se analisar as contribuições de um ateliê de pintura junto a idosos acolhidos institucionalmente no Brasil. A seguir, apresentamos a metodologia das atividades realizadas.

Metodologia

Este trabalho analisa mudanças desenvolvimentais em idosos que participaram de atividades de pesquisa e extensão em uma instituição que oferta o Serviço de Acolhimento Institucional provisório para idosos em Brasília, Brasil. Trata-se de uma Unidade de Acolhimento pública que abriga até 20 homens idosos, desacompanhados e em condições de exercer independentemente as atividades básicas da vida diária ou que fazem uso de equipamentos de autoajuda para compensar ou potencializar habilidades funcionais (por exemplo, aparelho auditivo, bengala, cadeira de rodas).

Ao longo de quatro meses em 2018, realizou-se um curso de extensão na Unidade, com a participação de 23 idosos. Utilizou-se a metodologia de ateliê de pintura, composto por oficinas semanais fundamentadas no enquadre sociocultural e mediadas por recursos artísticos, estéticos e semióticos, como desenhos, pinturas, colagens, músicas, poesias e reportagens. Os encontros foram organizados por meio de temáticas semanais que funcionavam como disparadores de narrativas, tais como autoimagem, infância, cidades de origem, famílias, direitos dos idosos, autonomia e projetos de futuro. O objetivo foi promover o desenvolvimento dos acolhidos, enfatizando suas histórias de vida, a convivência social e comunitária, e o fortalecimento da sua cidadania. As oficinas foram registradas por meio de diário de campo, fotografias e gravações de áudio.

Os idosos participaram de três exposições em ambientes públicos diferentes, tendo oportunidades de dar visibilidade a suas obras, ampliar sua convivência comunitária e construir novas esferas de experiência. A primeira exposição foi realizada na própria Unidade de Acolhimento, em momento de confraternização e encerramento do curso. Participaram familiares dos idosos e membros da comunidade externa, como músicos, fotógrafos e representantes governamentais. A segunda exposição foi realizada na Universidade de Brasília três meses após o fim do curso, com pinturas, colagens e desenhos produzidos ao longo das oficinas e desenvolvidos voluntariamente após o fim do ateliê. Já a terceira e maior exposição foi realizada no Museu Nacional da República (Brasília, Brasil), cinco meses após o final do curso. Esta contou com fotos que registraram os encontros do ateliê, poesias e pinturas realizadas por eles. Nesta ocasião, os idosos participaram de diversas entrevistas para jornais e dialogaram com uma ampla comunidade que prestigiou seu trabalho.

Nove meses após o encerramento do curso, foi realizada uma entrevista narrativa semiestruturada com três idosos que participaram do curso e ainda permaneciam na Unidade, cujos codinomes são: Abel, João e Floriano. Abel tinha 62 anos, nasceu em Minas Gerais e trabalhou a maior parte da sua vida em fazendas; procurou Brasília em busca de atendimento médico e abrigo. João tinha 63 anos e nasceu no Rio de Janeiro; buscou acolhimento por conta do falecimento e do aprisionamento de familiares, e de dificuldades associadas a um histórico de uso abusivo de drogas. Já Floriano, 62 anos de idade, nasceu em Goiás; viveu em situação de rua por mais de 20 anos, e enfrentava diversas complicações de saúde, especialmente, após um acidente vascular cerebral que diminuiu sua mobilidade.

A entrevista conjunta com os três idosos durou 2 horas e 15 minutos, seguiu um roteiro semiestruturado e foi registrada em áudio. Eles assistiram as entrevistas que deram aos jornais e as reportagens sobre as exposições e sobre o curso. Avaliaram suas experiências durante o ateliê de pintura, as exposições realizadas, e dialogaram sobre as mudanças percebidas em si, nos demais idosos e na própria Unidade de Acolhimento.

Todas as atividades foram realizadas com o conhecimento e consentimento dos participantes, seguindo as diretrizes, princípios éticos e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde brasileiro. Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para fins de pesquisa e se pactuou um termo de autorização de uso de imagem e voz com os participantes e com a coordenação da Unidade de Acolhimento.

Resultados e discussão

A imaginação estimulada no ateliê de pintura foi central para promover o desenvolvimento dos idosos, ao possibilitar transformações nas suas esferas de experiência (Zittoun, 2012; 2016), tanto em nível proximal quanto distal. No nível proximal, permitiu a emergência de novas aprendizagens e de soluções para problemas vivenciados no cotidiano da convivência na Unidade de Acolhimento. De acordo com os idosos, o ateliê trouxe melhorias na socialização, mesmo para os que não participaram do curso ou que foram acolhidos posteriormente, conforme vemos no diálogo entre João, Abel e Floriano:

João: Ele, seu Alfredo (codinome de idoso acolhido), é muito difícil... Ele é uma pessoa, assim, terrível! Mas, ele começou, assim, a se socializar na casa, com as oficinas. [...] Então, deu pra mim perceber... O bem que a arte fez a ele, sabe? [...] Ele é muito difícil! Nada, assim, chegava a ele... E a arte sim!

Floriano: Abriu até pela memória dele! [risos].

João: [...] Esse senhor... Nunca, nada tava bom pra ele! [risos]. [...] Nada! Nunca tava bom. “Tudo tá ruim!” (imita). Aí, ele surtava e xingava todo mundo.

Abel: Era mesmo! Não podia nem... passar perto dele.

João: Aí, no dia da exposição [...], eu tava com medo dele surtar, igual ele surtava aqui (risos). [...] Mas, ele se portou, assim, igual um cavalheiro! (risos).

O ateliê também possibilitou a exploração de esferas de experiência distais (Zittoun, 2012, 2016), por meio da imaginação. As pinturas funcionaram como ferramentas materiais e como recursos semióticos para a ressignificação de vivências pessoais e para a construção de novos recursos subjetivos e novas possibilidades de futuro. Os idosos representaram suas experiências passadas (ex: junto a esposas e filhos) e no presente (ex: como significam o envelhecimento) e redefiniram suas possibilidades de futuro, imaginando novos cursos de ação (ex: morar junto com filho que será liberado da prisão). As falas abaixo, em que os idosos comentam as pinturas construídas a partir do tema “família de origem”, ilustram este ponto:

Floriano: Isso aqui é… quando eu separei da minha esposa. No caso, eu deixei ela com um bebê pequenininho. Foi muito triste pra mim. E pra ela também. [...] Eu não aguentava, não. Eu chorava.

João: Meu quadro é… quando você falou de família… Eu tenho um filho que tá preso. E ele, estando preso, nós todos nos sentimos presos. Então… enquanto ele não sair de lá, toda minha família vai estar presa aqui. Inclusive eu. [...] No final do ano, ele vai sair! [...] Quando ele sair, eu vou dar uma repaginada! Não só na minha aparência, mas também na minha vida. Tô preparando, porque eu vou voltar. Quando ele sair de lá, eu tô voltando também!

A partir da perspectiva sociocultural do curso de vida (Zittoun, 2012, 2016), compreendemos que o ateliê de pintura potencializou rupturas nas trajetórias de desenvolvimento dos idosos, tornando menos provável sua vinculação à rua. Para os entrevistados, o ateliê colaborou para transformar sua autoimagem (de “mendigo” para “cidadão”), fortaleceu laços familiares e abriu novas perspectivas de futuro, com “mais cores”, ao passo que a vida mudou “da água para o vinho”:

João: A gente chegou como mendigo e sai como um cidadão. [...] As minhas netas, as filhas do meu filho... Elas estavam lá (na exposição). E elas ficaram assim... Tão felizes, assim, sabe? Comigo. Sabe? [...] “Fala pro meu avô não parar de pintar, que ele é um artista!” [...] Nunca imaginei sentir tudo o que sinto quando estou pintando. Talvez seja alguma carência que eu tinha retraída. Mas, a minha vida mudou da água para o vinho. Algo dentro de mim começou a brotar! [...] Quando eu cheguei aqui, o meu futuro era meio escuro, né? [...] Aí, começou a aparecer algumas cores e… E clareou um pouco a minha vida. Porque eu tinha medo de que a minha velhice fosse, assim, meio… improdutiva [...]. É isso! Meu futuro agora tem algumas cores!

Os participantes significaram o ateliê como um contexto transformador, que colaborou para maior reflexividade sobre as suas experiências e sobre si, conforme evidenciado no diálogo abaixo entre João e Floriano:

João: Quando a gente tá pintando, parece que tem alguém aí com a gente, sabe? Uma companhia com quem eu chego a conversar. “E, aí, (o quadro) tá bom?” Eu chamo ele de João também! (risos) “E aí, João, tá bom?”. Às vezes, ele diz: “Não. Mas, faz de novo!” (risos). Mas, não sou eu. Eu juro pra senhora! Isso aí... Eu, João, esse aqui... Não sou eu quem... Quem bota essas coisas pra fora (na pintura). É ele. [...] Não tem como explicar (risos). Mas, parece que é uma companhia aqui com a gente. Não sei se é só comigo ou se é com todas as pessoas que fazem um trabalho com arte. Tem uma companhia. Você não fica sozinho. Você pode estar sozinho, mas... É impressionante! (risos) Floriano: É a gente orientando a gente mesmo...

É o subconsciente da gente. Às vezes, a gente quer fazer uma coisa... E é o subconsciente mandando a gente fazer. Às vezes, eu to pintando e vem aquele... Só com a pintura mesmo. Mas, no fundo, no fundo, eu to falando com o meu próprio subconsciente.

As explorações estéticas podem apoiar transições de desenvolvimento ao contribuir para reconfigurações identitárias para a aquisição de conhecimentos, para a construção de significados e para mudanças no sistema de orientação de uma pessoa (Zittoun, 2012). Como consequências da participação no ateliê, os entrevistados relataram diversas transformações subjetivas e em suas relações interpessoais, conforme ilustrado pelo diálogo abaixo entre Floriano e João:

Floriano: As pessoas me tratam muito melhor agora! E não só a mim, mas a eles também.

João: Eu acho que fui eu quem passou a tratar as pessoas melhor. (...) Eu aprendi com vocês. De verdade mesmo! (...) Vocês me ensinaram até a forjar melhor o meu caráter. Sabe? A trabalhar responsabilidade com a gente. Até o caráter da gente melhorou.

Consideramos que novos sistemas de orientação (Zittoun, 2012, 2016) foram construídos por meio da internalização/externalização das experiências compartilhadas e situadas no ateliê de pintura e das mediações semiótico-afetivas ali realizadas. Com a semiotização e avaliação afetiva de suas experiências, os idosos construíram novos sentidos sobre os outros, sobre si e sobre seus sentimentos, como ilustrado abaixo no diálogo entre João e Floriano:

João: Até aquela hora ali, eu pensava que o que estava saindo de mim era só coisa ruim! Tinha... é... Frustrações e desilusões... E eu comecei a colocar pra fora lá nas oficinas. (...) Aí, quando eu vi aquele quadro lá... Eu... “Caramba!”... Não é só essas coisas que saem, assim, não... Saiu muitas coisas boas também! (...) Também tava saindo coisa boa também de dentro de mim! (...) Não tinha só frustrações. Eu tinha outros sentimentos também. (...)

Floriano: Sabe o que você conseguiu? Você conseguiu descobrir o seu eu interior.

João: Foi isso aí mesmo! E o senhor também, seu Floriano. E o seu trabalho é muito bom! O seu trabalho mostra o seu interior também. É... A simplicidade, né? A pureza.

O sentimento de renovação subjetiva, relacionado à mobilização da criatividade dos participantes ao longo do ateliê, colaborou para autoimagens positivas e para a abertura de novas possibilidades de futuro. Conforme discutido por Rodrigues, Souza e Almeida (2015), estimular a criatividade em idosos é importante para a melhoria de suas capacidades funcionais, socialização, saúde, autonomia e autoestima. Esta reconfiguração da subjetividade foi favorecida com a ampliação da convivência comunitária e intergeracional possibilitada ao longo do ateliê (com a equipe do curso) e, especialmente, nas exposições das obras, momento em que eles dialogaram com inúmeras pessoas e foram alvo de grande reconhecimento social. As narrativas de Abel e João ilustram este sentimento de renovação subjetiva e a relevância da convivência comunitária para a promoção do desenvolvimento dos idosos:

Abel: O que me chamou muito a atenção mesmo foi estar no meio daquele povo. Eu nunca tive num lugar de tanta gente fina! Tanta gente igual aqueles ali. Eu nunca pensei... Pelo menos uma vez na vida... É muito diferente demais. Ali, eu me senti como se fosse assim... gente! [...] Foi demais! [...] Eu tô muito orgulhoso de.. sabe? De ter participado. Eu me sinto outra pessoa! Eu tô preparado pra qualquer coisa hoje! Sinceramente! Verdade! Graças a Deus! Por causa desse projeto... Isso aí abriu minha cabeça! Eu não sei. Minha cabeça parece que estava imprestável.

João: Vieram pra tirar foto da gente! [...] Os caras fazem assim umas fotos muito boas! [...] Ele descobria assim um ângulo bem interessante das coisas. [...] E rapazes, bem novinhos, assim [...]. Eles são muito bons! [...] Quando teve a exposiçãozinha lá na UnB, lá, na entrada do teatro, ali. Conversando com umas mocinhas e uns rapazes, assim... Pessoas que parecem que eles vivem em um outro mundo, sabe? [...] A oportunidade que a gente teve de ir lá e ficar conversando com esses jovens foi muito importante pra mim!

Na perspectiva sociocultural do curso de vida, compreende-se que as experiências e as significações se constroem de modo corporificado (Zittoun, 2012). Por meio dos corpos, somos reconhecidos pelas outras pessoas e recebemos tratamentos diferentes em cada contexto. No caso dos idosos em situação de rua ou institucionalizados, o baixo autocuidado com seus corpos acaba potencializando preconceitos e discriminações em nossa sociedade. Neste sentido, uma contribuição do ateliê foi favorecer a maior valorização social dos participantes, que passaram a se sentir mais prestigiados e passaram a se comportar no cotidiano de maneira mais confiante, com maior autocuidado e autoestima (melhora de “200%”). Além disso, o ateliê apoiou a construção de imagens mais positivas de si (de pessoa “zoada” para pessoa “top”), conforme conversam Abel e João:

Abel: “São vocês mesmos?”. “Tá parecendo gente!”. “Nossa, será que é vocês mesmos?”. Disse que esse aí da foto não era eu. (...) Vou falar a verdade. Depois disso tudo, minha autoestima e de todo mundo aumentou demais, demais, demais. (...) Minha autoestima aumentou... 200%! Antigamente, eu andava todo zoado! Né, seu João? Nem roupa eu tinha! (...) Hoje, não. O pessoal diz que eu to andando top, entendeu? Minha autoestima... Nossa! Lá pra cima! Quando eu chego lá, as meninas ficam dizendo: “Nossa, como você tá top! Como você mudou!” (risos). “Você está pintando tão bem!”. “Tem que andar assim!”. Até aqui também, o pessoal daqui. O João falou que era pra eu andar bem-vestido (risos).

João: Eu falei pra ele andar elegante. Que pintor tem que andar elegante! (risos)

A falta de perspectivas de futuro e de projetos de vida é um dos principais desafios ao se envelhecer nas ruas ou em instituições. Em geral, a perspectiva de futuro de idosos nestas situações se reduz a obter alguma fonte de renda, a fim de lhes prover sustento e de alugar um local para morar (Gusmão et al., 2012; Mattos et al., 2016). Muitos afirmam que já não possuem mais tempo de vida para iniciar novos projetos de vida. Outros referem medo de morrer na rua, sem dignidade. Muitos resistem a resgatar laços familiares, por medo de novos conflitos, descaso e abandonos, dizendo que já não mais acreditam em “milagres” (Bueno & Canineu, 2016).

Diferentemente desse cenário, os participantes do ateliê pretendem continuar pintando, resgatar (ou construir novos) vínculos familiares, retomar os estudos, e investir em sua profissionalização. Para isso, se matricularam em cursos, buscaram novas alternativas de trabalho e restauraram vínculos familiares, como ilustrado abaixo:

Abel: Dia 4, eu vou pra São Paulo, mas não vou parar não. Eu já embalei meus pinceis todos! Tá tudo na mala! (...) Eu vou fazer curso de padeiro e de confeiteiro. E o de computador também! (...) Pra mim procurar uns serviços assim. (...) E fazer um divórcio também! Que eu sou casado. Tem 18 anos que eu sou casado e... Nunca vi minha mulher mais nunca.

João: Ele tá pensando em casar de novo... (risos)

Abel: Se eu achar uma doida aí, eu caso! (risos)

João: Eu trabalhava como motorista de ônibus. (...) Eu tô vendo uma situação aí pra trabalhar no Uber. Eu tenho um amigo que tem uns carros. (...) Vou tentar fazer isso! Que eu tô com minha habilitação, eu renovei minha habilitação. (...) Eu vou ficar com minha tia, porque, assim, das pessoas da minha família, dos que estão vivos, ela é a única que eu tenho, assim, uma amizade, um carinho. (...) E eu vou estar fazendo arte! Vocês podem ter certeza que eu vou estar pintando! (...) Eu tava não, eu tô! (tentando o Exame Nacional do Ensino Médio-ENEM) (risos). Eu tô... assim.. é... me ligando mais nas coisas. Lendo mais, sabe?

Mattos et al. (2016) defendem ações que garantam o empoderamento de idosos em situação de rua, que lhes devolvam a dignidade e que preservem seus planos para o futuro. Gutierrez et al. (2009) também consideram que estas pessoas devem ser enxergadas como protagonistas de seus processos de mudança e de resgate de cidadania. Nesta direção, compreendemos que o ateliê foi uma situação social relevante que ofertou condições para o exercício da cidadania e do protagonismo dos idosos acolhidos. Eles continuam pintando, expressando suas subjetividades, buscando novas aprendizagens, transformando suas identidades e fabricando novas possibilidades de se desenvolver e envelhecer.

Considerações finais

O ateliê funcionou como ambiente interdisciplinar de pesquisa e extensão e construiu conhecimentos importantes para a política pública de assistência social, especialmente para promover a cidadania de idosos que enfrentam situação de rua e/ou vivenciam acolhimento institucional. A partir da leitura sociocultural do curso de vida proposta por Zittoun (2012, 2016), consideramos que o ateliê de pintura e as exposições promoveram novas aprendizagens, mudanças identitárias e novas significações junto aos idosos acolhidos. Criou-se um contexto promotor de desenvolvimento e de reconfiguração de esferas de experiências dos participantes.

Dentre as limitações do estudo, contamos com a inexistência de relatórios atualizados sobre a situação de idosos em situação de rua ou que se desenvolvem em Serviços de Acolhimento Institucional em Brasília-Brasil. Isto poderia ter enriquecido as análises, de modo a discutir o potencial de generalização da experiência realizada. Além disso, existe a necessidade de se firmar um sistema de informações, monitoramento e avaliação para a consolidação da política pública de assistência social.

É essencial reconhecer a diversidade e a complexidade dos processos de envelhecimento, em convergência com os estudos contemporâneos do campo e as diretrizes para a prática psicológica com idosos (APA, 2014). Nosso contexto sociocultural é caracterizado por intensa desigualdade social e pela fragilidade da proteção social dos idosos, o que diverge de muitos contextos europeus e norte-americanos, dos quais derivam a maior parte das teorizações da Psicologia do Envelhecimento. Sinalizamos a importância de desenvolver conhecimentos e práticas profissionais adequados à realidade dos idosos latino-americanos e brasileiros, em concordância com as críticas realizadas por diversos pesquisadores da área (Neri, 2004; Batistoni, 2009; Gusmão et al., 2012; Ribeiro, 2015).

Defendemos que as temáticas relacionadas aos processos de envelhecimento estejam mais presentes na formação dos psicólogos brasileiros e latino-americanos, especialmente, diante do envelhecimento populacional e do crescimento da demanda por acolhimento institucional de idosos. Consideramos que o saber psicológico, em articulação interdisciplinar, é essencial para qualificar a atuação profissional nas políticas públicas relacionadas a esta população. Esperamos, portanto, com este relato de pesquisa e extensão, ter contribuído para uma maior compreensão sobre as questões que envolvem os processos de envelhecimento no contexto brasileiro e latino-americano e para a garantia de direitos na velhice.

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Autor notes

* Dirigir correspondencia a Tatiana Yokoy Faculdade de Educação, Universidade de Brasília. Correio eletrônico: yokoy@unb.br