Avances en Psicología Latinoamericana
ISSN:1794-4724 | eISSN:2145-4515

Conjugalidade e parentalidade adotiva em casais de gays e lésbicas: costuras a partir da transmissão psíquica

Conyugalidad y parentalidad adoptiva en parejas gays y lesbianas: costuras a partir de la transmisión psíquica

Marital Relationships and Adoptive Parenthood in Gay and Lesbian Couples: Considerations Based on Psychic Transmission

Joziana Jesus Da Mata, Fabio Scorsolini-Comin

Conjugalidade e parentalidade adotiva em casais de gays e lésbicas: costuras a partir da transmissão psíquica

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 40, núm. 2, 2022

Universidad del Rosario

Joziana Jesus Da Mata

Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil


Fabio Scorsolini-Comin a

Universidade de São Paulo, Brasil


Recepção: Agosto 14, 2019

Aprovação: Junho 22, 2022

Informação adicional

Para citar este artigo: Da Mata, J. J., & Scorsolini-Comin, F. (2022). Conjugalidade e parentalidade adotiva em casais de gays e lésbicas: costuras a partir da transmissão psíquica. Avances en Psicología Latinoamericana, 40(2), 1-16. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.7897

Resumo: A transmissão psíquica permite apreender processos que se repetem e se recriam em família ao longo das diferentes gerações. Esses elementos podem ser corporificados na conjugalidade e na parentalidade, ou seja, nos modos de ser pai/mãe e também casal. O objetivo deste estudo foi investigar a transmissão psíquica na construção da conjugalidade e da parentalidade em casais de gays e lésbicas com filhos por adoção. Foram entrevistados três casais com filhos com idades entre um e 11 anos. A análise temático-reflexiva evidenciou que as relações conjugais dos participantes parecem se diferenciar em termos dos modelos aprendidos/vivenciados com os próprios pais. Já a parentalidade parece se remeter aos comportamentos e práticas parentais experienciados ao longo da vida, embora sejam priorizadas relações mais próximas afetivamente nesses casais com seus filhos. A família de origem foi reconhecida como importante influência em termos do desejo de constituir uma família e para balizar as práticas parentais. As maiores rupturas, nesse sentido, foram observadas na construção da própria conjugalidade, não da parentalidade. Recomenda-se que estudos futuros sejam conduzidos também com os filhos por adoção, ampliando as inteligibilidades acerca do tema.

Palavras-chave: família, relação familiar, relacionamento conjugal, relação parental, adoção.

Resumen: La transmisión psíquica permite aprehender procesos que se repiten y se recrean en familia a lo largo de las diferentes generaciones. Estos elementos pueden ser corporificados en la conyugalidad y en la parentalidad, es decir, en los modos de ser padre/madre y también pareja. El objetivo de este estudio fue investigar la transmisión psíquica en parejas gays y lesbianas con hijos adoptados. Se entrevistaron a tres parejas con hijos de edades variadas de 1 a 11 años. El análisis temático evidenció que las relaciones conyugales de los participantes parecen diferenciarse en los modelos aprendidos/vivenciados con los propios padres. La parentalidad parece referirse a los comportamientos y prácticas parentales experimentados a lo largo de la vida, aunque se priorizan las relaciones más cercanas afectivamente en estas parejas con sus hijos. La familia de origen fue reconocida como una influencia importante en el deseo de constituir una familia y para balizar las prácticas parentales. Las mayores rupturas, en ese sentido, fueron observadas en la construcción de la propia conyugalidad, no de la parentalidad. Se recomienda que estudios futuros sean conducidos también con los hijos por adopción, para ampliar el conocimiento al respecto.

Palabras clave: familia, relación familiar, relación de pareja, relación parental, adopción.

Abstract: The psychic transmission allows us to apprehend repeated and recreated processes in families through different generations. These elements can be embodied in marital relationships and parenthood or in how we are parents and couples. This study aimed to investigate the psychic transmission in the construction of marital relationships and parenthood in gay and lesbian couples with adopted children. Three couples with children aged between one and eleven years were interviewed. The thematic analysis showed that the marital relationships of the participants seem to differ in terms of the models learned and experienced with their own parents. Parenthood, on the other hand, seems to be based on parental behaviors and practices experienced through life, although more affective relationships are prioritized in these couples with their children. The family of origin was recognized as a determinant influence in terms of the desire to establish a family and validate parental practices. The greatest ruptures were observed in the construction of marital relationships, not of parenthood. It is recommended to do future studies with the adopted children to increase knowledge about this subject.

Keywords: Family, family relations, marital relationship, parent-child relations, adoption.

Introdução

A instituição família tem passado por mudanças de grande importância que marcam a transição do modelo de família tradicional-patriarcal à família contemporânea. As transformações nas últimas décadas confrontam o padrão familiar heteronormativo do século xix, onde eram determinados os papéis de gênero e seus lugares claramente definidos na sociedade. Mesmo com modificações em seu domínio, resultantes de processos como a maior presença da mulher no mercado de trabalho, o advento do divórcio, o controle da fecundidade, a separação de sexualidade e reprodução e a visibilidade da homossexualidade, essa instituição ainda é reconhecida como a mais “natural” de todas. Sobre esse aspecto, pode-se afirmar que a família permanece na sociedade contemporânea ocidental como uma instituição fundamental de sociabilidade ou como um núcleo central a partir do qual se estruturam e transmitem importantes valores da cultura (Rodriguez et al., 2015; Roudinesco, 2003; Scorsolini-Comin & Santos, 2016; Scorsolini-Comin, 2022).

As novas configurações familiares na contemporaneidade têm sido alvo de discussões e questionamentos, como a ideia de que crianças criadas por casais de gays e lésbicas teriam maiores prejuízos em seu desenvolvimento em relação aos processos de identificação e constituição de sua identidade devido à ausência de referências paterna e materna. Esta parece ser uma das principais críticas por parte daqueles que não aceitam essa nova configuração (Cerqueira-Santos & Santana, 2015; Zambrano, 2015). A literatura científica tem se contraposto fortemente a esse argumento a partir de evidências recuperadas em diversos estudos com essas famílias (Cecílio et al., 2013; Vecho & Schneider, 2005).

A construção do casal une duas dinâmicas familiares com suas especificidades, originando uma nova organização familiar alicerçada na interação de duas individualidades e do que cada cônjuge traz da experiência que teve em sua família de origem (McGoldrick, 2011). Os processos transmitidos pela família de geração a geração e que se mantêm presentes ao longo da história familiar podem ser entendidos como transgeracionalidade (Falcke & Wagner, 2014). No entanto, estas mesmas autoras destacam outros termos existentes na perspectiva sistêmica e que permitem cotejar o processo de transmissão de conteúdos entre as gerações em alguma medida, como a intergeracionalidade e a multigeracionalidade.

Além da perspectiva sistêmica, as abordagens psicodinâmicas também se debruçam sobre como a transmissão psíquica contribui para a formação das novas famílias. Partindo-se de uma perspectiva psicanalítica, a família pode ser entendida como um lugar de representações que possibilitam a permanência da cultura e que constitui a subjetividade de seus membros, de modo que os conteúdos psíquicos circulam e perpassam gerações, sendo transformados ou não ao longo das novas configurações familiares (Féres-Carneiro et al., 2011). Para a psicanálise, a transmissão ocorre pelo negativo, ou seja, a partir do oculto, do que não está elaborado, do que se deseja esconder ou não representar (Kaës, 1998). Apesar do viés da negatividade classicamente associado à transmissão na psicanálise, autores contemporâneos como Benghozi (2010) veem na transmissão psíquica uma possibilidade de revisão de vínculos considerados disruptivos nas primeiras relações, abrindo espaço para discussões sobre os aprendizados e as novas construções de vínculo operadas por meio dos relacionamentos interpessoais da vida adulta, especificamente da conjugalidade e da parentalidade.

Em que pesem as aproximações e os distanciamentos epistemológicos existentes entre essas abordagens, tanto os modelos sistêmicos como psicodinâmicos consideram a transmissão psíquica um elemento importante no modo como as famílias se estruturam e se recriam ao longo das diferentes gerações, podendo ser compreendida por meio dos movimentos centralizados na parentalidade e na conjugalidade (Scorsolini-Comin & Santos, 2016). É por esse motivo que, no presente estudo, as referências de ambas as abordagens serão empregadas de modo integrativo, haja vista o caráter ainda exploratório da investigação a compreensão da transmissão psíquica na construção da conjugalidade e da parentalidade por adoção em casais de gays e lésbicas. Compreende-se, assim, que a transmissão psíquica pode dar origem a uma leitura que nos permita compreender o seu papel na construção do ser pai/mãe e casal nessas famílias. O que e de que modo seria transmitido psiquicamente pelas famílias de origem de casais de gays e lésbicas com filhos por adoção? Essa pergunta norteia a presente investigação.

A adoção por casais de gays e lésbicas, apesar de não ser claramente explicitada na Lei Nº 12.010 (Brasil, 2009), documento que rege os principais requisitos e procedimentos para a realização da adoção no país, vem sendo anunciada como possibilidade, a partir de marcos legais como o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo em 2011 pelo Supremo Tribunal Federal (stf) e a proibição dos cartórios se recusarem a realizar o casamento civil entre gays e lésbicas, no ano de 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça (cnj). No entanto, apesar do importante passo dado, o próprio preconceito dos pretendentes, a desinformação sobre seus direitos ou até mesmo medo de exposição justificariam a pouca procura por esse público (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2018; Green, 2016; Tombolato et al., 2019; Ximenes & Scorsolini-Comin, 2018).

A parentalidade exercida por esses casais ainda é um tema considerado polêmico. Como está em pauta a garantia de direitos elementares de cidadania, a expectativa é que a aprovação da união estável entre gays e lésbicas no Brasil, ocorrida no ano de 2011, promova mudanças também nas leis que regulamentam a adoção, o que ainda não pode ser observado em termos legais, mas pode ser fortuitamente encontrado quando são interpelados, por exemplo, os profissionais que atuam no campo jurídico (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2018; Ximenes & Scorsolini-Comin, 2018). Diante desse contexto marcado pelo preconceito é que se justifica a importância de a Psicologia prosseguir na produção de literatura sobre as famílias compostas por casais de gays e lésbicas, possibilitando maior discussão e visibilidade para essas configurações (Da Mata et al., 2020; Lira & Morais, 2016). A partir desse panorama, o objetivo deste estudo foi investigar a transmissão psíquica na construção da conjugalidade e da parentalidade em casais de gays e lésbicas com filhos por adoção.

Método

Delineamento do estudo e aspectos éticos

Trata-se de uma investigação qualitativa e de caráter exploratório. Para garantir a validade do estudo qualitativo, foram observados os 32 itens de verificação nas dimensões equipe de pesquisadores (8 itens), desenho do estudo (15 itens) e análise e achados (9 itens) presentes no protocolo coreq (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research) (Tong et al., 2007). Todos esses itens foram contemplados tanto por aspectos descritos no método como nos resultados da presente investigação, permitindo o alcance de um estudo válido do ponto de vista qualitativo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Participantes

Participaram do estudo três casais de gays e lésbicas, pais/mães por meio da adoção, sendo um casal de mulheres e dois de homens, totalizando seis participantes. Na Tabela 1 são descritas as principais características desses participantes.

Os casais entrevistados foram contatados a partir de um grupo de apoio à adoção localizado em um município de médio porte do interior do estado de Minas Gerais (Brasil). Este grupo faz parte de uma rede maior, integrando diferentes municípios da região. A pesquisadora responsável pela coleta de dados fazia parte desse grupo, ocupando a função de psicóloga voluntária para a orientação de pretendentes à adoção no município. Embora ocupasse essa função à época da coleta de dados, não havia tido contato prévio com os participantes. O casal número 1, formado por duas mulheres, foi um dos primeiros inseridos no contexto de habilitação da adoção na cidade. Adotaram duas meninas negras, sendo a primeira adoção de uma menina de dois anos e quatro meses, estando com sete anos no momento da pesquisa. A segunda adoção foi de uma menina de seis anos e oito meses, com nove anos há época da coleta de dados. O casal número 2, formado por dois homens, tem dois filhos gêmeos de um ano e dois meses, sendo que a adoção ocorreu quando as crianças estavam com 11 meses. Uma das crianças possui diagnóstico de paralisia cerebral e requer cuidados de uma equipe de saúde (fisioterapia e fonoaudiologia), sendo alimentada por sonda. O casal número 3, formado por dois homens, relatou que passou pelo processo de habilitação para a adoção em média de dois anos até o processo de guarda da criança, adotada com 11 anos de idade.

Instrumentos

Foram utilizados: (a) um roteiro de entrevista individual e semiestruturado contendo questões sobre idade dos parceiros(as), escolaridade, renda familiar, emprego/ocupação, religião, tempo de relacionamento, história do relacionamento, história da família de origem, possíveis influências da família de origem no casamento e na criação dos filhos, experiência da parentalidade (adotiva), dificuldades e possibilidades no processo de construção da conjugalidade e da parentalidade; (b) um roteiro de entrevista semiestruturado com o casal, contendo perguntas acerca do relacionamento amoroso dos parceiros e o modo como constroem coletivamente a parentalidade e a educação dos filhos.

Tabela 1
Caracterização dos participantes
Caracterização dos participantes


Fonte: elaborada pelos autores.

Procedimiento

Coleta dos dados

A coleta de dados foi realizada por uma pesquisadora que fazia parte de um grupo de apoio à adoção do município de referência, uma cidade de médio porte do interior do estado de Minas Gerais (Brasil). Esta pesquisadora é psicóloga, identificandose como mulher cis e heterossexual. Após contato prévio da pesquisadora com os participantes por meio telefônico, as entrevistas foram agendadas e realizadas somente após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas ocorreram nas casas dos participantes. Destaca-se que ambos os(as) companheiros(as) responderam ao mesmo roteiro de entrevista e, posteriormente, foram entrevistados em dupla. No momento das entrevistas individuais foi solicitado respeitosamente pela pesquisadora que o(a) companheiro(a) ficasse em um cômodo diferente, a fim de permitir que a entrevista ocorresse sem quaisquer interferências ou constrangimentos. Em dois casos, por exemplo, os cônjuges optaram por sair da residência, retornando ao final da entrevista individual com o(a) parceiro(a). Com cada casal, as entrevistas individuais e com a díade ocorreram em um único dia. Todas essas entrevistas tiveram seus áudios gravados mediante o consentimento dos participantes e foram transcritas na íntegra para análise. As entrevistas individuais duraram, em média, 60 minutos. As entrevistas em casal tiveram duração média de 30 minutos.

Análise dos dados

As entrevistas foram analisadas em profundidade, destacando-se, em um primeiro momento, os eixos temáticos encontrados a partir das falas de cada um dos respondentes, ou seja, foi realizada uma análise vertical do material (análise de cada entrevista separadamente). Em um segundo momento, realizou-se uma análise horizontal de todas as entrevistas, elencando os pontos de semelhança e as diferenças entre as falas dos participantes, também a partir dos eixos temáticos construídos. Desse modo, temos um retrato tanto de cada um dos participantes acerca do tema como das visões compartilhadas entre eles, por meio de uma leitura horizontal. Esse processo analítico foi realizado por duas pesquisadoras independentes, sendo uma delas a entrevistadora e a outra uma psicóloga pertencente ao mesmo grupo de apoio à adoção. Possíveis divergências ou dúvidas foram apreciadas pelo orientador do estudo, psicólogo com ampla experiência na realização de investigações qualitativas nessa temática. Como não foram encontradas diferenças significativas entre os dados obtidos nas abordagens individuais e do casal, optou-se pela análise integrada desses dois momentos no presente estudo. Para a organização do corpus analítico utilizou-se os procedimentos de análise temático-reflexiva (Braun & Clarke, 2019).

A partir da análise foram produzidos três temas, validados em supervisão pelas pesquisadoras e pelo orientador do estudo: (a) Influências da família de origem na construção da conjugalidade em casais de gays e lésbicas; (b) Influências da família de origem na construção da parentalidade em casais de gays e lésbicas; (c) A parentalidade adotiva e a transmissão psíquica. A partir desses temas foi construída uma seção final de análise integrativa sumarizando o papel da transmissão psíquica na conjugalidade e na parentalidade de casais de gays e lésbicas. A interpretação dos dados foi pautada no marco teórico da transmissão psíquica, ancorando-se em autores da psicanálise e da sistêmica de modo integrado. Em relação à reflexividade do(a) pesquisador(a) na abordagem qualitativa, os posicionamentos dos(as) pesquisadores(as) como profissionais da Psicologia engajados na temática foram discutidos em supervisão para a análise de dados, também considerando os endereçamentos desses marcadores a partir do protocolo coreq empregado.

Resultados e discussão

Influências da família de origem na construção da conjugalidade em casais de gays e lésbicas

Este primeiro tema recupera as influências da família de origem que esses casais receberam para a construção da conjugalidade. Mesmo com as modificações macrossociais pelas quais vem passando a instituição família, sobretudo na contemporaneidade, os casais constroem sua relação conjugal baseada nas suas famílias de origem, carregam valores vivenciados, aquilo que eles consideram de mais precioso. Porém, existem algumas heranças designadas para os membros da família, como repetições de padrões de comportamentos inconscientes e conteúdos não elaborados que passam de geração para geração. Dessa forma, pode-se observar por meio dos relatos dos entrevistados a questão da transmissão psíquica e a contribuição da família de origem na construção da nova família (Benghozi, 2010), como nos excertos a seguir:

[...] Eu vejo assim, muitos do que eu reproduzo eu trouxe da minha família. Quando a gente começou a relacionar e já expor para ela o que eu tinha para oferecer para ela, vem de casa. (Vilma)

Venho de uma família tradicional, católica, aonde a gente tem uma vivência do casamento, aquele espelho assim: os avós são casados há 50 anos, os pais são casados há 30 anos, então eu vim dentro desse conceito de família, né, e desde princípio antes mesmo de me entender a minha sexualidade eu já tinha entendimento de construção de família por uma característica própria e por essa questão desse espelho de família que eu sempre tive, aonde tinha essa união duradora esse vínculo, a família com muitos filhos, então eu cresci num ambiente assim, aonde a questão conjugal sempre foi muito marcante. (Gabriel)

Os participantes foram unânimes em reconhecer as heranças das famílias de origem e o modo como as mesmas atravessam não só as práticas parentais atuais, mas também o desejo de formar uma família, ainda que os modelos vivenciados fossem advindos de configurações centralizadas em casais heterossexuais e com normas rígidas e tradicionais acerca do ser família. Esses modelos parecem balizar o desejo por permanecer em família, ainda que inovações sejam realizadas, o que compreende não apenas a relação homoafetiva, mas também a adoção. A maior ruptura narrada, no entanto, não se refere à não consanguinidade, mas ao assumir-se homossexual.

No domínio da psicanálise

... a conjugalidade, ao mesmo tempo em que reedita o romance familiar, propicia a elaboração das vivências infantis. O encontro com o parceiro gera a oportunidade de metabolização e de desenvolvimento do psiquismo, entrelaçando passado e presente, dentro de um projeto que pressupõe uma perspectiva de futuro a dois. Desde o momento da concepção, o sujeito está marcado pelo olhar dos pais, pelos seus ideais e pelos mitos familiares que se inscrevem e estruturam o psiquismo. (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005, p. 113)

Pelos relatos dos participantes, a influência da família de origem na estruturação da conjugalidade parece ter se dado em função de características tradicionais associadas à família, como a durabilidade do casamento e também a oferta de um modelo de família —modelo este que parece ter sido positivo segundo os entrevistados—. Esses marcadores, presentes nas falas de Vilma e Gabriel, parecem ter ocorrido independentemente de esses sujeitos terem se engajado em relacionamentos homoafetivos. Assim, os marcadores de gênero não foram mencionados como sendo uma ruptura em relação à família de origem. A transmissão psíquica, aqui, parece influenciar a escolha por modos de ser família semelhantes aos experienciados por esses cônjuges em suas famílias de origem e mesmo em relação à perspectiva do casamento como algo estável e duradouro. De qualquer forma, a possibilidade de uma experiência conjugal que diverge da heteronorma pode ser considerada, em si, uma ruptura com os modelos experienciados na família de origem.

Influências da família de origem na construção da parentalidade em casais de gays e lésbicas

Este segundo tema recupera as influências da família de origem que esses casais receberam para a construção da parentalidade. Em relação à transmissão de valores familiares nos cuidados com os filhos, os casais descreveram comportamentos e intervenções que vivenciaram com a família de origem. Em alguns relatos dos participantes essa herança foi deixada também pelos avós. Esses princípios que aprenderam com os pais são apontados pelos participantes como elementos essenciais para a formação das suas personalidades, responsabilização por si e pelo outro. Sendo assim, enfatizaram continuar passando essas experiências na educação dos filhos, como pontuam trechos de seus relatos.

Meu pai é um homem muito honroso [...] tanto meu pai como a minha mãe que minha mãe também trabalhou mesmo cuidando da gente. [...] Eu puxei dos meus pais e isso é uma coisa que eu quero mostrar para meus filhos, que eles possam ser responsáveis. (Marco Antônio)

E os ensinamentos que eles passavam naquela época, eram os ensinamentos que assim ficaram para o adulto que eu sou hoje, então assim eu tento colocar os ensinamentos hoje em dia, eu tento colocar aqueles que eu já aprendi antes por eles. (Joaquim)

Pode-se observar por meio das falas dos participantes os valores transmitidos pelos pais aos filhos e como esses princípios fazem parte da formação da personalidade dessas pessoas. Esses aspectos parecem não ser discutidos a partir da adoção versus consanguinidade, mas por meio da convivência e dos projetos parentais corporificados nas práticas de cuidado.

Para Bertin e Passos (2003), com o nascimento dos filhos, o casal estrutura um grupo familiar, responsável pela escritura dos enredos que serão protagonizados pelas gerações que os sucederem. O desenvolvimento desses enredos pressupõe os investimentos recíprocos dos membros do grupo que continuarão a existir enquanto a criança prover suas expectativas de continuidade.

Assim,

... pertencer a uma família, ou seja, ser considerado suporte de um discurso, oferece ao aparelho psíquico em vias de formação um alicerce, uma verdade inicial que sustenta o ingresso do sujeito na história. Esta, por sua vez, gera a vivência de ser amado e reconhecido, e de ocupar um lugar em um mundo que o precede e o espera. (Bertin & Passos, 2003, p. 73)

Assim, Bertin e Passos (2003) concluem que, no trabalho de transmissão na sucessão de gerações, cada família transfere sua forma de entender e apreender o mundo externo, assim como de organizar o mundo interno. É a partir desses dispositivos psíquicos que a criança, por meio de suas interpretações, criará seu mundo interno, enriquecido por suas próprias fantasias. Neste mundo interno do sujeito é preciso considerar também uma dimensão intragrupal, atual, e uma dimensão histórica constituída a partir de sucessivas gerações.

Os valores construídos nas famílias de origem são interpretados pelos participantes como positivos e, portanto, devem ser transmitidos aos filhos.

Trata-se de uma transmissão consciente desses modos de ser em família relacionados especificamente a comportamentos que envolvem caráter, respeito e valorização da autoridade. Os participantes destacam a palavra “ensinamentos” para tratar daquilo que pode ser continuado e perpetuado, em uma escolha pelos elementos positivos e que devem constituir qualquer ser humano. Esses elementos ancoram-se nas heranças familiares, sendo a família apresentada como locus de aprendizado em termos de como ser nos diversos relacionamentos interpessoais. Considera-se, a partir desse aspecto, que os casais entrevistados perpetuam padrões de comportamento e de ensinamento de suas famílias de origem por considerá-los importantes e positivos.

A parentalidade adotiva e a transmissão psíquica

Este terceiro tema discute de modo mais aprofundado a construção da parentalidade por meio da adoção, com destaque para o processo de transmissão psíquica nesse contexto parental específico. Primeiramente é importante considerar que para os casais que buscam essa modalidade exige-se muita determinação, pois há uma trajetória de muitas etapas de avaliações como questões socioeconômicas, condições físicas e emocionais para lidar com o ingresso da criança nas suas vidas (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2018). No contexto brasileiro, assim que os pretendentes entram na fila de adoção para se prepararem para chegada do filho precisam lidar com muitas questões. Uma delas é a espera da criança, momento geralmente de muita ansiedade, dúvidas e medo do novo (Dantas & Ferreira, 2015; Machin, 2016; Rosa et al., 2016).

[...] A gente preparou muito, preparamos psicologicamente, fisicamente, preparamos estrutura de casa, financeiramente, então preparamos muito para isso, foram quase dois anos assim de muito preparo, modificamos a casa e mudamos o quarto. (Joaquim)

Foi muito bonita porque primeiro nós nos preparamos, a gente ficou casado um bom tempo antes de entrar na fila porque a gente queria viver mesmo o casamento e fortalecer, criar um alicerce para ter uma criança. (Luís)

O judiciário é maravilhoso com a preparação. [...] O curso preparatório foi feito para aquele que não tem certeza que quer ter filho ou aquele que não quer e está dentro de uma expectativa, se ele desiste realmente né, porque assim o curso chama para realidade para colocar o pé no chão. (Gabriel)

A preparação para a chegada de uma criança passa por muitos sentimentos, como o medo do novo. É esperado os pais ficarem angustiados sem saber como será a adaptação do filho na casa, situação em que muitos questionamentos são feitos. Pensando nessas questões, muitos fatores necessitam de cuidado. A criança tem a sua história de vida com a família consanguínea e na instituição de acolhimento.

As equipes profissionais do judiciário promovem aos pais uma oficina de preparação emocional para a chegada do filho nas suas vidas. Cada comarca tem autonomia de estruturar a oficina (Cecílio et al., 2018). No contexto narrado pelos casais 2 e 3, a comarca em apreço se destaca com a sua organização de um curso preparatório vivencial, possibilitando aos postulantes trabalharem as suas motivações para a adoção, reflexões sobre o perfil esperado da criança (imaginária e real), entre outros aspectos. Assim, os entrevistados destacaram a importância dessas oficinas no processo de preparação.

Aventa-se que a perspectiva psicanalítica adotada nessas oficinas possa colocar os participantes diante de reflexões que se ancorem nas vivências infantis e nos próprios modelos reais e imaginados acerca do que é família. Assim, esse espaço reflexivo, embora não tenha objetivos terapêuticos, pode funcionar como elemento de abertura para revisões acerca de padrões familiares, promovendo uma futura adoção real, desejada e com maior possibilidade de ser bem-sucedida, pois será baseada em um processo de amadurecimento do projeto parental e não na repetição automática das histórias de vida familiar, ainda que, inconscientemente, esses elementos possam emergir. No entanto, parte-se do pressuposto que uma maior clareza nesse processo possa favorecer a construção de famílias ancoradas em desejos concretos e que não levem em consideração apenas os projetos desses casais, mas também a perspectiva da criança/adolescente em ter um lar e uma família.

Um dos pontos mais presentes nas entrevistas refere-se aos diversos tipos de abandonos por parte da família de origem observados nas crianças por adoção. Esses abandonos referem-se às famílias extensas, à interrupção de vínculo de um irmão na instituição pela adoção do outro irmão, em relação aos pais que adotaram, mas que, por alguma razão, desistiram no início da convivência, entre outros. O estágio de convivência dos pais com a criança na instituição de acolhimento é acompanhado da equipe profissional e visa à futura adaptação dessa criança no contexto familiar, onde será inserida. Esses processos são complexos para o adotante, envolvendo conteúdos para elaborar e a necessidade de desvincular-se de histórias pregressas. Isso é mais acentuado quando a criança é maior, porém é necessário passar por essas etapas para assim construir novos laços e isso exige cautela e empatia, pois é um processo gradual embasado na confiança.

[...] Quando você pega uma criança que é maior ela vem com uma bagagem bem maior. [...] Ela se adaptar dentro da família é muito mais difícil. Júlia veio sem ler, escrever ela tinha muito medo, muita rejeição sabe. Então foi difícil a aceitação dela, lá eles davam remédio para ela poder ficar quieta, ela tinha uma suspeita de tdah e não tinha nada disse quando a gente fez os exames. [...] Ela escreveu no carro da Vilma, [...] escreveu no carro o nome dela, então a gente viu quando pega pequena demais se adaptou bem rápido, mas quando a menina é mais velha ela vem com sua bagagem. (Luíza)

De acordo com o relato dos pais pode-se observar as dificuldades no processo de adaptação da criança na inserção da nova família, evidenciando que quanto maior a criança mais bagagem ela carrega das suas experiências anteriores. Muitas dessas vivências são histórias tristes de quebra de vínculos com as pessoas e ambientes que ela estava acostumada. Mesmo passando por muitos momentos, por etapas de abandonos e até mesmo colocada em risco, são essas histórias que compõem cada uma delas, são pontos de referência. Dessa forma, é necessário que os pais estejam preparados emocionalmente para conseguirem transmitir para a criança confiança, amor e mostrar que estão com elas, acolhendo-as nas suas formas de expressões dos sentimentos e, assim, proporcionando um espaço seguro de uma boa relação (Alves et al., 2017; Winnicott, 1953/2008).

No que se refere aos conteúdos transgeracionais no contexto adotivo, observa-se que não existe uma negação dos elementos transmitidos à criança/adolescente pela família de origem, mas também um movimento de reescrita dessas histórias, notadamente as de vulnerabilidade ou consideradas desadaptativas. Os pais/mães por adoção parecem estar dispostos à construção de novos enredos tendo por base suas próprias vivências emocionais e operando a remalhagem de vínculos (Benghozi, 2010).

Não se pode esquecer que, embora as crianças/ adolescentes tragam vinculações de suas famílias consanguíneas e também das experiências de acolhimento institucional, novas vinculações se instalarão a partir do momento do estágio de convivência. Assim, os casais precisam administrar essas diferentes heranças advindas de diversos cenários e modelos, ainda que nos discursos ainda sejam priorizadas as histórias de sofrimento e vitimização advindas das histórias pregressas. Deve-se problematizar, no entanto, que todas as histórias constituem a criança/adolescente. Por uma leitura benghoziana, pode-se considerar que a remalhagem possivelmente operada a partir da adoção possa ser tão importante para o desenvolvimento futuro quanto as primeiras relações.

Em relação à parentalidade, os pais narraram a construção do cotidiano levando em consideração os desafios dos percursos e tendo consciência que esse vínculo é constituído a cada dia. Os aspectos considerados simples do cotidiano são rememorados:

Todos os dias é um aprendizado, a gente nasce pai quando o filho chega, né, não é uma coisa que você vai se preparando, você vai escrevendo no papel o que você faria porque situações vão aparecendo e você vai tentando lidar com aquilo, tentando ser a melhor pessoa, mesmo depois a gente achando que poderia ter sido melhor e a gente vai aprendendo com os erros, vai se transformando cada vez mais e é algo que não existem palavras para descrever o que é ser pai. (Marco Antônio)

Cada dia a gente aprende uma coisa diferente, não existe uma coisa assim ser pai é isso no concreto, eu acho que é muito mais abstrata a paternidade. A gente está sempre aprendendo com o Lucas. (Luís)

Como afirmado por Zornig (2010), a parentalidade é um termo relativamente recente, que começou a ser utilizado na literatura psicanalítica francesa a partir da década de 1960 com o intuito de marcar a dimensão de processo e de construção no exercício da relação dos pais com os filhos. Como atestado pela mesma autora, os estudos sobre a parentalidade não são exclusivos da Psicologia, recebendo importantes influências e contribuições da Antropologia, Filosofia e Sociologia. Segundo Roudinesco (2003), apesar de observarmos mudanças importantes na estruturação familiar, a família contemporânea em sua dimensão horizontal e em redes não só se mantém como estrutura organizadora e segura para seus membros, como se constitui em um espaço fundamental para a troca afetiva e a transmissão simbólica. Desse modo, “a família é o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar” (Roudinesco, 2003, p. 198). No entanto, a parentalidade não tem sido pensada apenas como uma forma de transmissão e de continuidade nas famílias compostas por casais heterossexuais, mas também em atenção aos casais de gays e lésbicas que manifestam o desejo de ter filhos, ou seja, de também exercer a parentalidade.

Pelos relatos, considera-se que a parentalidade é vivenciada como sinônimo de aprendizado. Esse aprendizado não foi descrito como remontando às experiências anteriores com os próprios pais, mas como elementos novos. Assim, a ancoragem em modelos anteriores, embora possa existir, não foi elencada como um pressuposto/condição para as vivências atuais. A emergência da parentalidade ocorre nas relações cotidianas, envoltas na aprendizagem, na surpresa e nos desafios que se apresentam diariamente. Esses aspectos revelam a possibilidade de construção de formas de ser e de se relacionar inovadoras e a partir dos desafios que se operam na vida cotidiana. Mais do que a repetição que poderia ser sugerida em uma primeira análise da transmissão psíquica, a abertura pela via da aprendizagem mostrou-se relevante como elemento de construção especificamente da parentalidade adotiva.

Esse processo se aproxima da perspectiva da transmissão psíquica trazida por Benghozi (2010). Quando os participantes destacam a aprendizagem estão explorando uma faceta importante da remalhagem dos vínculos, segundo Benghozi. Assim, o posicionamento desses sujeitos como pais e mães, além de cônjuges, permite uma série de vivências capazes de remalhar vínculos considerados disruptivos, experiências de sofrimento nas primeiras relações com os genitores e até mesmo processos costurados pela negatividade e transmitidos de uma geração a outra. A experiência parental, nessa perspectiva, reposiciona a concepção de transmissão exclusiva pelo negativo, permitindo a remalhagem, a resiliência familiar. Embora os entrevistados não tenham explorado as vivências consideradas disruptivas na família de origem, nota-se um reposicionamento no sentido de aprimorar os modelos, como na tentativa de maior proximidade afetiva desses casais com seus filhos.

Análise integrativa: o papel da transmissão psíquica na conjugalidade e na parentalidade de casais de gays e lésbicas

Este tema objetiva integrar as discussões sobre a construção da conjugalidade e da parentalidade nesses casais com destaque para o papel da transmissão psíquica. Tanto nos relatos das entrevistas individuais quanto na entrevista de casais a família de origem foi apontada como base para a construção das relações interpessoais, conjugais e parentais. A instituição família foi parâmetro também para despertar o desejo de construir uma nova família. Embora possamos observar mudanças, ainda assim existe um modelo na construção social dito como aceito, a família heteronormativa. Esses casais conseguiram transmitir os valores que consideram essenciais para formação de um ser, mas rompem com algumas atitudes dos comportamentos dos pais que não foram aprovadas no sentido de estabelecer uma relação de confiança para os filhos. Dessa forma, os casais falaram de dialogar com filhos, explicando o porquê de cada conduta utilizada na educação.

Ah, eu sou muito melhor! [risos]. Eu acredito que eu sou muito melhor pai para meu filho que meus pais foram para mim, não porque eles não queriam, às vezes eles não tinha um grau de instrução, condição financeira, mas é, não fui um filho preparado, também planejado [...] acho que por conta disso tudo, que sou um paizão. (Luís)

Eu acho assim que as meninas têm um grande privilégio porque assim a gente tenta sempre quando fala um não ou quando dar uma correção ou [...] dar um elogio, a gente sempre fala o porquê que está sendo feito aquilo [...] e antigamente era muito difícil, às vezes você nem sabia porque estava apanhando (risos) [...] hoje em dia a gente conversa. (Vilma)

Mudanças relacionadas também a aspectos socioeconômicos foram consideradas, bem como espaço para uma vivência mais plena em relação a ser pai/mãe. As alterações foram mais evidenciadas pelos pais entrevistados, ou seja, de que a paternidade pode ser vivenciada de um modo mais contemporâneo, possibilitando relações de proximidade. Esse aspecto remonta à paternidade na contemporaneidade, sendo ressignificada como espaço de relações mais próximas e menos assimétricas e fundamentadas em um rígido respeito à autoridade paterna (Colleti & Scorsolini-Comin, 2015). Aventa-se que esse aspecto da proximidade também possa ser favorecido em função de serem casais compostos por dois homens, ou seja, apenas com a experiência da paternidade (casais 2 e 3). Como a paternidade nesses casais não emerge em contraposição à maternidade, parece haver mais espaço para investimento nas relações pais-filhos, ampliando as possibilidades de significação dessa paternidade. Em comparação com casais heterossexuais, possivelmente os sentidos da paternidade nesses casais sejam mais amplos, ampliando o repertório do que vem a ser da ordem do pai.

Pode-se observar que, além da tendência de repetição dos padrões de relacionamento aprendidos, o casamento dos pais também pode ser considerado o modelo de relação conjugal que as pessoas tomam como base de suas relações amorosas, sendo que o estudo da satisfação conjugal deve se colocar diante dessas considerações, abarcando essa dimensão. Nesse sentido, cada cônjuge traz para o relacionamento amoroso tanto um modelo de interação aprendido, como também expectativas baseadas no que observou na relação de casal de seus pais. A partir dessas observações, podem buscar relacionamentos semelhantes quando têm identificação, afinidade, ou muito diferentes, quando desaprovaram (Féres-Carneiro et al., 2007). Os pais são referências de como se relacionar no contexto conjugal, seja como uma relação para se repetir ou para ser diferente, e ocupam uma referência de importância na vida dos filhos para estabelecer relações de afeto e por oferecerem modelos de como ser um casal (Silva et al., 2010).

Isso posto, evidencia-se nos casais entrevistados a questão da construção do casal, na vivência dessa relação não se perder o amor, carinho, respeito ao outro, bem como separar a relação parental da relação conjugal. Embora a conjugalidade e a parentalidade estejam intimamente associadas nesses casais, os participantes destacaram a necessidade de separar esses fenômenos. Isso ocorre no sentido de que a conjugalidade não se esvazie diante do projeto parental, o que parece ser diferente do que observaram e vivenciaram nas famílias de origem.

Ser pai é diferente de ser casal, a gente deixa isso bem claro entre nós dois porque ser pai é uma coisa imensurável é aquilo e casal a gente até comenta que tem quer se unir para cuidar dos nossos filhos, a gente nunca perder essa chama. (Marco Antônio)

E a gente não buscou filho para complementar, igual a gente ver muitos casais que não estão tendo um relacionamento legal e arruma filho para entre aspa consertar o relacionamento. [...] Só que você tem que ter um dimensionamento das coisas para você não deixar de ser casal. (Gabriel)

Esses participantes trazem a necessidade de investir constantemente na conjugalidade, ainda que a parentalidade possa emergir como uma dimensão que demande maior cuidado, notadamente com a chegada dos filhos ou quando esses são menores ou, ainda, quando há um quadro de adoecimento crônico que medeia o cuidado, como no casal 2. O que podemos considerar, a partir da literatura, é que a constituição do ser casal está relacionada com as vivências que cada um traz das suas famílias de origem e suas experiências com a vida, o modo com essas pessoas partilham para a formação do casal e que pode ser uma construção de relação amorosa e parental saudável ou prejudicial, pois a partir desses princípios que se constituem laços. Considerando que a transmissão psíquica permeia a vida das pessoas, mas que cada pessoa e cada casal pode criar seu espaço individual, conjugal e parental, esses casais mostram-se engajados no exercício da parentalidade ao mesmo tempo em que relatam a necessidade de continuar investindo na conjugalidade.

Atentar-se para a dimensão do casal parece ser uma diferenciação importante em relação às famílias de origem aqui investigadas, ao passo que o exercício parental parece ser mais alicerçado nos modelos vivenciados e aprendidos ao longo da vida. O incremento na parentalidade parece relacionar-se ao fortalecimento do diálogo e da proximidade emocional, juntamente com a valorização da transmissão de comportamentos considerados adequados e positivos. Pode-se aventar, portanto, que a conjugalidade parece, aqui, ser vivenciada de modo mais inovador em relação à família de origem, ao passo que a parentalidade mostra-se mais ancorada nos processos de aprendizagem em família ao longo do tempo, em referência constante a esse contexto.

Na perspectiva trazida por Benghozi (2010) podemos observar a remalhagem dos vínculos tanto na conjugalidade como na parentalidade desses casais, em direção a modelos mais adaptativos daqueles observados nas famílias de origem. No entanto, os padrões adotados por esses casais não se apresentam, em suas narrativas, como rupturas em função da transmissão pelo negativo, mas como formas de gerar maior compreensão entre os parceiros, na dimensão da conjugalidade, bem como padrões relacionais mais flexíveis e próximos do ponto de vista da criação dos filhos, na dimensão da parentalidade. Isso não significa que não existam elementos disruptivos ou padrões disfuncionais nas famílias de origem desses cônjuges, mas que esses marcadores não emergiram em seus relatos —o que atravessaria inequivocamente a transmissão psíquica—. Essas análises também não excluem as diferenças entre as gerações observadas a partir de marcadores socioeconômicos e culturais que também devem ser devidamente endereçados em futuras investigações com essas famílias.

Considerações Finais

O objetivo deste estudo foi investigar a transmissão psíquica na construção da conjugalidade e da parentalidade em casais de gays e lésbicas com filhos por adoção. As análises empreendidas possibilitaram o entendimento de como esses casais vivenciam as práticas do ser casal e serem pais: embora haja diferentes modos de se constituir como família, esses casais consideram a família de origem como um grande espaço na constituição dessas novas relações.

Essas influências parecem ser diferentes quando analisamos os domínios da conjugalidade e da parentalidade. As relações conjugais dos participantes parecem se diferenciar mais em termos dos modelos aprendidos/vivenciados com os pais, sendo a conjugalidade alvo de constante investimento. A parentalidade parece se remeter mais aos comportamentos e práticas parentais experienciados e observados ao longo da vida, embora sejam priorizadas relações mais próximas afetivamente. Ainda assim, os comportamentos considerados positivos na educação que receberam parecem ser atualizados nos próprios filhos, com clareza acerca desses modelos.

Entre as limitações do estudo destaca-se a dificuldade de encontrar participantes. Aventa-se que essa dificuldade possa ser explicada por dois principais movimentos: o receio desses casais se exporem e o fato de serem frequentemente acionados para participarem de pesquisas sobre a mesma temática. Embora a adoção por esses casais venha sendo cada vez mais investigada, é importante considerar que se trata de uma configuração ainda recente e as repercussões da parentalidade assumida por esses casais ainda estarem em estudo (Da Mata et al., 2020; Lira & Morais, 2016). Em relação ao segundo movimento, os participantes deste estudo já foram alvo de outras investigações conduzidas por outras equipes de pesquisadores. Nesse sentido, recomenda-se que os pesquisadores da área trabalhem mais em rede e também possam comunicar cientificamente os seus achados, a fim de estabelecer diálogos entre diferentes inteligibilidades acerca do mesmo assunto. Recomendações éticas nesse sentido podem e devem ser tecidas, a fim de não saturar os participantes e permitir considerações válidas do ponto de vista científico. Futuras investigações podem ser conduzidas com as crianças/adolescentes adotadas por esses casais, buscando os elementos de transmissão psíquica em relação aos pais por adoção, às suas famílias consanguíneas e também por meio das instituições de acolhimento, em uma análise pormenorizada da complexidade que atravessa a constituição das histórias das mesmas.

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Autor notes

a Dirigir correspondência à Fabio Scorsolini-Comin. Endereço: Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo, Avenida dos Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, sp, cep: 14040-902, Brasil. Correio eletrônico: fabio.scorsolini@usp.br

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