Avances en Psicología Latinoamericana
ISSN:1794-4724 | eISSN:2145-4515

Subjetividade e interseccionalidade: experiências de adoecimento de mulheres negras com doença falciforme

Subjectivity and Intersectionality: Sickness Experiences of Black Women with Sickle-Cell Disease

Subjetividad e interseccionalidad: experiencias de Enfermedad de Mujeres Negras con enfermedad falciforme

Eliana Costa Xavier, Kátia Bones Rocha

Subjetividade e interseccionalidade: experiências de adoecimento de mulheres negras com doença falciforme

Avances en Psicología Latinoamericana, vol. 35, núm. 2, 2017

Universidad del Rosario

Eliana Costa Xavier

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil


Kátia Bones Rocha

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil




Recepção: 25 Maio 2015

Aprovação: 23 Agosto 2016

Informação adicional

Cómo citar este artículo: Xavier, E. C., & Rocha, K. B. (2017). Subjetividade e interseccionalidade: experiências de adoecimento de mulheres negras com doença falciforme. Avances en Psicología Latinoamericana, 35(2), 267-282. doi: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.3804

Resumo: O estudo teve o objetivo de conhecer e analisar a história de mulheres negras com doença falciforme, e compreender como a subjetividade destas é construída e confrontada a partir dos sentidos subjetivos associados aos marcadores de gênero, raça e classe social. Trata- -se de uma pesquisa qualitativa em que participaram 9 mulheres negras, acompanhadas pelo Centro de Referência da Anemia Falciforme do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. As entrevistas semiestruturadas foram analisadas através da análise crítica do discurso. Os resultados mostraram que as mulheres negras percebem a sua doença como condição de saúde que estreita os laços entre seu pertencimento racial e as suas construções de gênero e de classe. O discurso dessas mulheres negras transcendeu à complexidade da doença crônica, transformando-a e construindo possibilidades que as potencializam como mulheres, mães e sujeitos sociais. As mulheres assinalaram que a interseccionalidade de raça, gênero e classe social impulsiona a cegueira pública da mulher negra e das questões relacionadas à população negra, intensificando o sentimento de invisibilidade.

Palavras-chave: doença falciforme, interseccionalidade, subjetividade, raça, gênero, classe Social.

Abstract: This study aims to identify and analyze the history of black women with sickle cell disease and understand how their subjectivity is built and confronted from subjective senses associated with gender markers, race and class. This is a qualitative study involving nine black women accompanied by Sickle Cell Disease Reference Center of Porto Alegre´s Hospital de Clínicas. The semi-structured interviews were analyzed by critical discourse analysis. The results showed that black women perceive their health status as an illness that narrows the ties between their racial belonging and their constructions of gender and class. The speech of black women with sickle-cell disease transcended the complexity of chronic disease, transforming and building opportunities that empower them as women, as mothers, and as social subjects. On the subjective sense, they pointed out that intersectionality of race and class intensifies the public blindness of black women and of the issues related to the black population, causing a feeling of invisibility.

Keywords: sickle-cell disease, intersectionality, subjectivity, race, gender, social class.

Resumen: El estudio tuvo el objetivo de conocer y analizar la historia de mujeres negras con enfermedad falciforme y comprender cómo la subjetividad de estas es construida y confrontada a partir de los sentidos subjetivos asociados con los marcadores de género, raza y clase social. Se trata de una investigación cualitativa en la que participaron 9 mujeres negras acompañadas por el Centro de Referencia de la Anemia Falciforme del Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Las entrevistas semiestructuradas fueron analizadas por medio del análisis crítico del discurso. Los resultados mostraron que las mujeres negras perciben su enfermedad como condición de salud que estrecha los lazos entre su pertenencia racial y sus construcciones de género y de clase. El discurso de esas mujeres negras trascendió a la complejidad de la enfermedad crónica, transformándola y construyendo posibilidades que las potencializan como mujeres, madres y sujetos sociales. Las mujeres señalaron que la interseccionalidad de raza, género y clase social impulsa la ceguera pública de la mujer negra y de las cuestiones relacionadas con la población negra intensificando el sentimiento de invisibilidad.

Palabras clave: enfermedad falciforme, interseccionalidad, subjetividad, raza, género, clase social.

Introdução

A informação genética associada à Doença Falciforme (DF), enfermidade ligada à ancestralidade racial negra, surgiu no Brasil depois da diáspora africana e, como uma das doenças mais comuns no Brasil e em outros países, é predominante entre a população negra e pobre (Oliveira, 2003). DF é o termo que define as síndromes causadas por uma associação da hemoglobina S às hemoglobinas mutantes (S, S Beta, C e D), que faz com que as hemácias assumam o formato de “foice” ou de “meia-lua” (Brasil, 2012).

A DF é uma condição de saúde que gera complicações clínicas severas, ocasionadas pelo comprometimento e alteração do fluxo sanguíneo, sendo a Anemia Falciforme (SS) a forma mais severa da doença (Cançado, 2007). A profilaxia básica da DF inclui, entre outros, procedimentos, transfusões de sangue, já que no decorrer do processo de adoecimento as pessoas podem apresentar uma elevação na concentração de ferro no organismo, o que pode provocar graves lesões em vários órgãos e tecidos com sequelas irreversíveis, com maiores comprometimentos clínicos e risco de mortalidade (Cançado, 2007). A concepção da DF para Pereira, Cardoso, Brener e Proietti (2008) é delineada tanto por aspectos objetivos (impactos físicos, psicológicos e sociais), quanto pela percepção subjetiva (bem-estar e independência).

Os sujeitos são construídos a partir de identificações e marcas de diferença, os quais se articulam e dizem sobre ele e de seus construtos de pertencimento e indicam o lugar de onde o sujeito se afirma em relação à sociedade. Os marcadores identitários são construídos através de inúmeros processos nas quais as vivências históricas, culturais e econômicas do sujeito reverberam e se interseccionam mutuamente no espaço social, no qual este se constituiu (Lima, 2013). As múltiplas posições que constituem o sujeito são desenhadas através dos marcadores e da produção da diferença nos antagonismos organizados em caminhos descontínuos e complexos, de inúmeras categorias e definições. Tais configurações abarcam questões das experiências de vida do sujeito, que tomam forma e ganham visibilidade através de práticas cotidianas objetivadas de múltiplos modos, momentos e contextos (Brah, 2006).

Para compreender como se configuram os processos identitários vivenciados pelos sujeitos sociais, racializados, étnicos, de classe e comunitários, é necessário perceber como esses marcadores são compartilhados e atuam nas diferentes temporalidades, espaços e situações. Para Brah (2006) os conteúdos relacionados à subjetividade são intrínsecos aos marcadores identitários e delimitados por experiências culturais e constituídas socialmente. Os marcadores de gênero, raça e cultura têm vida própria, pois são edificados no universo de valores e ideais culturais que transcendem as relações sociais e de acordo com os sistemas e instituições que rodeiam o sujeito (Cordeiro, 2013; Hall, 2011).

A população negra se configurou pela origem racial considerada como inferior e marcada por vivências de estigma racial, cultural e social (Souza, 1983). Para além da dimensão biológica, a raça distingue o marcador social de pertencimento, a categoria raça é um dispositivo de diferença, uma marca simbólica, que posiciona os sujeitos socialmente e caracteriza a hierarquia entre a população negra e os demais grupos (Schucman, 2014).

Entendemos gênero como uma questão política e social que problematiza a origem das relações de poder e suas distintas formas de hierarquia (Bairros, 1995), e para Saffioti (2004), incorpora construções sociais sobre os papeis próprios de homens e mulheres no que tange à relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo: ele opera na formação e produção de sujeitos não generalizados. O gênero possibilita a compreensão dos processos em que homens e mulheres vivenciam socialmente suas construções no exercício das relações sociais (Hall, 2011). Os marcadores femininos negros como declara Bonfim (2009), foram forjados nas vivências das condições históricas, de estigma e violência racial, os quais sublinham no percurso social e subjetivo das mulheres negras, sucessivas batalhas contra o preconceito racial e à desigualdade de gênero nas relações sociais. Nessa relação, o contexto cultural, produtor de significados e responsável pela compreensão de mundo, incorpora os aspectos que constituem e produzem sentidos a cada sujeito social (Hall, 2011).

Os distintos marcadores de pertencimento alicerçam a constituição da subjetividade dos sujeitos e sua intersecção possibilita refletir acerca das implicações subjetivas para as mulheres negras (Schucman, 2014). A interseccionalidade permite a compreensão da dinâmica das conexões entre dois ou mais eixos de subordinação, em especial, nas relações estruturadas pelo racismo (Crenshaw, 2002). O preconceito racial enquanto produtor das desigualdades naturaliza a vida social e descreve diferenças pessoais, sociais e econômicas, através de marcas biológicas e culturais da população negra.

A construção subjetiva se constrói através de inúmeros processos complexos individuais suscitados por determinantes sociais, ideológicos, políticos e históricos, que se definem dentro do tecido social em que se vive. Está relacionada aos espaços simbólicos produzidos pela cultura, como gênero, moralidade, religião, parentesco, discursos, etc., mas alimenta-se de emoções singulares configuradas na história do sujeito (González, 2003). O sentido se organiza em todas as vivências e as configurações subjetivas agrupam esses sentidos; ambos caracterizam a pluralidade de significados com desdobramentos em todas as ações do sujeito. Os diferentes elementos que organizam o processo de subjetivação são múltiplos e só podem ser entendidos se concebidos em relação mútua. Os construtos se articulam de modo relacional, isto é, a percepção desses marcadores prescinde da interlocução que o sujeito construiu e constrói a cada instante com outros sujeitos ou instituições, se potencializando em diferentes momentos e constituindo as dimensões subjetivas da feminilidade negra (Piscitelli, 2008).

Um estudo sobre discriminação racial e de gênero entre mulheres negras com DF, assinalou que tais vivências influenciaram na construção dos marcadores identitários. As histórias e experiências destas mulheres possibilitam a compreensão da construção subjetiva de ser mulher negra e viver com uma condição de saúde concebida como marcador racial negro (Cordeiro & Ferreira, 2009). Os estudos que vislumbram a subjetividade desde a ótica da população negra se tornam indispensáveis para pensarmos as implicações das consequências de ser negra(o) em sociedades edificadas na contramão desta população, por todos os significados psicológicos e limitações psíquicas impostas pela vivência do racismo. Para Faro e Pereira (2011) é pertinente compreender as relações dentro de uma sociedade racializada, especialmente porque nesse contexto a população negra costuma sofrer cotidianamente micro e macroagressões, que podem romper com seu bem-estar e saúde.

O entendimento da subjetividade desde as suas intersecções, tende a intensificar a produção de conhecimento em psicologia social, propiciando também a compreensão do significado de ser negra desde as perspectivas históricas e culturais do grupo social. Para tanto esse estudo utilizou aportes teóricos, principalmente dos estudos da psicologia sócio-histórica (González, 2003, 2010; 2011; 2012) e da interseccionalidade (Brah, 2006; Crenshaw, 2002), além de aproximações às áreas da enfermagem (Cordeiro & Ferreira, 2009; Cordeiro, 2013; Cordeiro, Ferreira & Da Silva, 2013) e epidemiologia (Félix, Souza & Ribeiro, 2010).

Frente a isso, o presente estudo tem como objetivo conhecer a história de mulheres negras com DF e entender o seu processo de construção subjetiva, a partir dos marcadores de gênero, raça e classe social. Mais do que olhar indivíduos com experiências, tencionamos problematizar a constituição dos sujeitos a partir das suas experiências (Piscitelli, 2008), onde os diferentes marcadores inscrevem e visibilizam a experiência subjetiva como um espaço processual de construção dos sujeitos (Brah, 2006). Por isso, o modo como às mulheres negras com DF se situam em relação aos marcadores de gênero, classe e raça, circunscrevem seus processos de saúde e doença e constituem sua subjetividade.

Método

Trata-se de um estudo exploratório com delineamento qualitativo, que problematiza as questões relacionadas à interseccionalidade de gênero, raça e classe social à condição de saúde DF, tornando significativas as ações, estruturas e as relações. A pesquisa adotou entrevistas abertas com questões semiestruturadas e utilizou como tópico a questão: “Eu gostaria que me contasse a tua história, quero conhecer tuas vivências, tudo o que julgar importante sobre tua vida e que tenha relação com a tua condição de saúde”.

As participantes foram nove mulheres negras com diagnóstico de doença falciforme, acompanhadas pelo Centro de Referência da Anemia Falciforme do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (CRAF). O estudo compõe o projeto intitulado “Doença falciforme em mulheres negras: a subjetividade como processo histórico cultural”, aprovado pelos Comitês de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e seguiu os aspectos éticos recomendados pelo Conselho Nacional de Saúde.

No intuito de proteger a identidade das participantes, foram utilizados nomes fictícios. Estes nomes foram escolhidos a partir do questionamento de uma das participantes da pesquisa, que indagou que nome ela teria, caso tivesse nascido na África. Assim, para enunciar cada fala das mulheres, escolhemos palavras que remetem à ancestralidade Akan, tradição cultural africana de Gana e Costa do Marfim, que preconiza nomear as mulheres recém-nascidas com um nome e/ou variações pré-designadas, através do dia da semana em que nasceram. A tabela 1 traz algumas experiências subjetivas das mulheres negras e apresenta características das participantes, como idade, idade do diagnóstico da DF, com quem vive, escolaridade, profissão e ocupação atual.

Tabela 1
Experiências subjetivas das mulheres negras

Experiências
subjetivas das mulheres negras


As entrevistas foram exploradas por meio da Análise Crítica do Discurso. Tal proposta permite justamente entender a estrutura social nos contextos locais e globais relacionados entre si e nos atravessamentos das relações de poder, gênero, raça, classe, interesses e estrutura social, e como estas relações produzem subjetividade (Van Dijk, 2008). A análise buscou nas experiências relacionadas à saúde, com as mais diversas instituições, eventos e percepções das mulheres e relatos de interlocuções de seus familiares.

Resultados e Discussão

As histórias singulares das mulheres negras com DF revelaram sentidos para relação estabelecida consigo e com a sociedade organizada, desde os aspectos da realidade das mulheres negras brasileiras. Os resultados e a discussão elucidaram a percepção das mulheres negras sobre a condição de saúde e constituíram as dimensões subjetivas da feminilidade negra em dois momentos apresentados na figura 1. O primeiro tópico “Sentidos e significados da doença falciforme” assinala que a enfermidade permanece ligada à ancestralidade negra, com impactos significativos na vida dessas mulheres, e aponta a necessidade de construção de estratégias subjetivas para qualificar a convivência com a DF. O segundo tópico “Interseccionalidades”, anuncia na constituição subjetiva das mulheres negras, a potência dos construtos de gênero, classe social e pertencimento racial em seus respectivos movimentos.

Tabela 2
Caminhos da discussão

Caminhos
da discussão


"Eu era escrava da dor!

A afirmação usada pela participante Yawo estabelece uma relação que contrapõe liberdade, submissão e sujeição à DF, e foi utilizada para pensar os impactos subjetivos da DF. A partir dela, problematizamos as implicações da enfermidade situada culturalmente como inerente à população negra e as produções que as mulheres fizeram a partir desse fato.

As mulheres negras com DF se constituíram desde as primeiras experiências que perpassaram suas vidas como portadoras da enfermidade, o que proporcionou subjetivamente continuidades e descontinuidades. As palavras escolhidas para falar sobre a condição de saúde aprofundam a percepção da dor e possibilitam o entendimento do significado da doença:

Desde o dia do meu nascimento, foi vida bem sofrida essa minha. Até eu chegar até aqui foi horrível a minha vida. Porque era só sofrimento, abaixo de sofrimento e dores e dores. Era o mês todo no hospital [...]. Eu já tinha até medo da dor, eu era escrava da dor. Eu não fazia nada, nada e nada por causa da dor. (Yawo)

Para Cordeiro et al. (2013), as vivências das pessoas com DF são marcadas por sofrimento acentuado, devido à evolução da doença. A DF configurou-se por vivências que construíram a concepção da doença e que influenciaram em todas as práticas sociais das mulheres, se inserindo em uma produção subjetiva, social e individual. A intensidade da dor trouxe ao cotidiano dessas mulheres, dificuldades físicas e subjetivas e provocou sensações de mal-estar, insegurança e impotência. O processo assinala posições de desvalia e infortúnio: “Nós éramos 7 [irmãos] ao todo. Morreu um, aí ficaram 6 e os outros. Os outros não têm essa doença, só eu, só eu! Parece que o mal caiu só em mim...” (Yawo)

O discurso traduz a magnitude da DF e explicita sentimentos de revolta e tristeza. Tal percepção está de acordo com Félix et al. (2010), ao evidenciar que a descoberta da DF pode ser associada à ideia de maldição ou punição. Além disso, a experiência da dor remete à penalidade e castigo, que independem da vontade do sujeito (Araújo, 2004): “Eu sou a única doente. Nenhum irmão ou irmã tem crise. Minhas irmãs, umas negonas bem bonitas, bem fortes. Elas não têm nem crise, nem doença, nem nada” (Ekuwa).

Para as pesquisadoras Cordeiro et al. (2013), a vivência de discriminação afeta a saúde e fragiliza a identidade, imagem corporal, autoconceito e autoestima. Dentro do contexto no qual todos os membros possuem similaridades e estão expostos às mesmas condições sociais, físicas e econômicas, ser portadora da DF fortalece o sentimento de subalternidade e desvalia frente aos irmãos. No discurso da participante, a diferenciação se constitui por questões relacionadas ao conceito de beleza, autoestima e autogerenciamento, e isso conforme Cordeiro e Ferreira (2009), pode comprometer os desempenhos emocionais e psicossociais das pessoas.

Ao mesmo tempo, a condição de saúde aparece atrelada ao marcador racial negro, o que para Araújo (2004) pode trazer, como consequência, a experiência de estigmatização reforçada duplamente, devido à discriminação por origem racial, social e grupal do sujeito e também fragilidade e constrangimento causado pela própria doença. Assim, os aspectos que ratificam a condição social desfavorável da população negra, ainda atuam subjetivamente, construindo com outros marcadores para o sujeito e para seu grupo a história social da DF.

Ainda que as doenças carreguem carga social expressas de diferentes formas, seu sentido subjetivo é a produção singular de cada sujeito em que se articulam os aspectos sociais e emocionais da sua vida (González, 2010). Os sentidos subjetivos de ser mulher negra com DF podem definir-se, então, pela constituição histórica nas diferentes atividades e relações significativas que elas constituíram corporeamente em suas vidas, se produzindo nos espaços sociais constituídos e fidelizados historicamente pela ancestralidade negra neste país.

A doutora disse: “Era bom saber quem dos teus antepassados tinha AF”. Só não apanhei mais aquele dia eu não sei por quê. Eu pedi pra minha avó fazer o exame e minhas tias ficaram loucas comigo. “Que história era essa de dizer que a avó tem anemia falciforme?” [...]. Como essa doença é de negros, meu pai não foi afetado, a minha avó era alemã. Minha mãe não, os dois eram negros. [...]. Tu acha que elas [tias] aceitaram? E eu: “Não tá mais aqui quem falou”. (Akosua)

A experiência explícita marca o pertencimento racial da DF, no qual a produção do adoecimento surge principalmente das relações subjetivas constituídas mediante experiências estabelecidas culturalmente, legitimadas no contexto social e problematizadas no espaço/tempo social nos quais reproduzem. Por isso, as vivências da condição de saúde DF são atravessadas por valores, atitudes e significados históricos, que se configuram na complexidade da articulação dos diversos fatores e acontecimentos sociais, que reverberam nos processos de subjetivação e produzem o significado da DF (Araújo, 2004).

A representação da população negra como socialmente inferior tem se mantido para além do período histórico, trazendo novos elementos que justificam e realimentam o racismo na contemporaneidade. O fato da DF ser oriunda do continente africano proporcionou marcas que perpassaram os conceitos empregados para descrever experiências comuns dos sujeitos sociais negros no cotidiano de discriminação e preconceito (Cordeiro, 2013). O modo como a “família” lidou com a possibilidade de ligação ao grupo negro, contextualiza as experiências e fatos que configuram as relações sociais na concretude da vida e da saúde da população negra.

Ser portadora da DF pode desvelar a ancestralidade que remete e confronta o passado de escravização, desenraizamento e humilhação ao qual a população negra foi submetida. O pertencimento racial negro não costuma ser um processo simples dado a priori, significa se identificar com o grupo, é uma possibilidade de vínculos, ser negro é vincular-se com o espaço simbólico e se sentir integrante do grupo social (Souza, 1983). Ao buscar as raízes da doença, a participante Akosua afrontou o marcador indesejado no passado familiar e isso causou incômodo imenso, demarcando o lugar da “raça” no cotidiano do grupo. Entender- -se pertencente ao grupo negro pode resultar em sofrimento para o sujeito, gerar mal-estar e afetar todas as suas interlocuções sociais (Costa, 1983; Júlio, 2010). Nessa situação, podemos dizer que a DF está impregnada de significados socialmente construídos e se associa a sentidos subjetivos, ligados a aspectos simbólicos naturalizados pelo preconceito e estigma social.

Os processos de saúde envolvem representações do momento histórico com relação à doença e também com os processos de sentido produzidos quando os indivíduos se deparam com o adoecimento (González, 2012). Para esse autor, nenhuma doença tem sentido subjetivo por si, mas estes são produzidos de modo singular à história do sujeito entre as múltiplas referências e ações no contexto da sua vida. Desde muito cedo na história de vida dessas mulheres, a complexidade da DF desenhou uma inscrição física e subjetiva atrelada à condição de saúde que foi construindo o viver e o conviver das mulheres negras:

O Dr. conversou com a mãe. Se eu vivesse até os 21 anos seria baixinha, barriguda, feiosinha, aquela situação [...]. Na época, o estereótipo de toda criança falciforme era assim, não era pra esperar muito [...]. É bem complicado viver com DF, porque a gente tem que deixar algumas coisas pra trás, que são importantes. (Akua)

As possibilidades subjetivas para cada mulher foram se estabelecendo de forma articulada à magnitude da DF e esse processo provoca uma reflexão para além das repercussões físicas da enfermidade. Ainda que paire sobre a doença um discurso de finitude precoce ou incapacidade, evidenciamos movimentos que proporcionaram uma resignificação da história para cada mulher, estabelecendo estratégias diferenciadas para enfrentar a DF. A enfermidade esteve sempre presente no cotidiano das mulheres, no entanto não se tornou primordial, compôs com outras posições, as fortaleceu e incorporou novas produções:

Com 17 anos eu trabalhava. Minha vida era normal. Trabalhava, saía, dançava, namorava. [A DF] não impedia nada. Eu adoro trabalho. Agora que eu estou parada, mas sou apaixonada [trabalho]. Ficava no serviço e os patrões me levavam louca de dor [...]. Às vezes trabalhava gemendo, gritando de dor, mas trabalhava! (Ekuwa)

Mesmo com todas as dificuldades e crises de dores constantes, as mulheres fazem questão de apresentar-se pelo viés da capacidade de vida social, ou seja, desenvolveram estratégias que permitiram prosseguir com seus planos, dando conta do que havia sido elaborado nas suas construções subjetivas. Em alguns momentos, as mulheres procuravam manter-se longe da fragilidade gerada pela condição de saúde DF, retiraram o diagnóstico da centralidade dos seus discursos; não falando de si somente pela doença, ao se manifestarem desse modo, se integram e assumem sua totalidade como mulheres, mães, trabalhadoras:

Eu sempre fiz tudo! Se não fosse o problema da AF, agora que tá me incomodando por causa dessa perna. Mas a doença nunca foi um problema. Nada que eu diga: não trabalhei um dia ou tive muita crise. Eu não tive nada. Como é que tu vai ter dor se tu está vendo que tu tem que fazer as coisas? (Akosua)

O discurso das mulheres negras com DF é marcado pela não impotência, evidenciando um sentido subjetivo que extrapola a enfermidade, a dor não deixa de existir, mas há um movimento de ignorá-la, abstraindo das complicações físicas já estabelecidas e procurando se sobressair à doença. A maneira como o sujeito percebe a sua doença e se subjetiva a partir dela, pode gerar tanto marcas de impossibilidades, como de possibilidades de vida. Assim, as dificuldades com relação à DF também foram produtoras de novas edificações subjetivas:

É uma doença que é contínua. Não se pode programar nada porque hoje tu está bem, amanhã pode estar doente... Então, assim, pra nada eu posso me programar. Não podia fazer isso, não podia fazer aquilo... Colégio então era uma tristeza, porque eu gostava muito de estudar. Sempre fui aluna muito aplicada, daí eu ia indo. Levanta aqui, cai ali. Até o segundo grau eu fiz! (Foowa)

Segundo Cordeiro et al. (2013), a experiência da DF é um processo que gera dificuldades e desequilíbrio, as singularidades da vida cotidiana e as formas de conhecimento que as sustentam, exigem a construção de expectativas e planos distintos em relação à vida. Os diferentes modos de explicação para a dor indicam a potência produzida para enfrentar o sofrimento e todas as implicações da condição de saúde. Assim, podemos perceber que, para essas mulheres, a situação de saúde foi propulsora de novas formas de viver:

Eu nunca me considerei doente, desde criança minha mãe me dizia: “Tu não é doente, isso é só um problema de saúde hereditário que nasceu contigo e vai morrer contigo, mas não quer dizer que tu tem que te entregar”. Sempre me falaram que isso não me impedia de fazer nada que eu quisesse. O pai sempre me incentivou a ir pra frente, então eu nunca ficava pensando: “Eu sou doente e eu vou me abater com isso”. Acho que isso ajudou. Não é uma dorzinha que vai me derrubar. (Esi)

Elas estabeleceram um movimento contrário ao prognóstico da DF, retirando-a da centralidade de suas vidas e colocando a experiência do adoecimento em segundo plano, seguindo com o que haviam estabelecido para suas vidas. O percurso de cada uma dessas mulheres foi uma história de superação. E esse processo para González (2012), se torna salutar, pois reorganiza os sentidos subjetivos da vida do sujeito, colocando-o como sujeito ativo frente à doença e no seu conceito de vida, criando novos desenhos diante de toda a complexidade da enfermidade.

Porque a gente é preto: muito ferro mesmo!

A referência da participante Ekuwa traz a multiplicidade de sentidos, combinando o preconceito de cor e de classe, com a referência ao ferro como fator de comprometimento clínico e subjetivo. A expressão assinala a iminência de ser prejudicada ou abusada, utilizando um dos recortes clínicos da DF para justificar a negligência sofrida e sublinha na percepção das mulheres que as desigualdades sociais, assim como a raça, exacerbam as iniquidades em saúde na referência aos sentidos e articulações entre raça, classe e condição de saúde.

No Brasil, o preconceito racial e a discriminação social construíram atribuições negativas à população negra, a fim de mantê-la fora do espaço de poder e nos limites da ordem (Souza, 1983). A população negra se constituiu como sujeito de direitos através das histórias de resistências da comunidade negra, na luta do Movimento Negro por igualdade efetiva de oportunidades e acesso aos direitos sociais, que potencializa equidade aos sujeitos negros. Na história desse movimento social, há momentos de avanço na instituição de políticas públicas de saúde, observando os agravos que acometem a população negra. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída em 2009, cujo objetivo é promover a equidade em saúde, reconhece o racismo como determinante social das condições de saúde da população, e ratifica que a saúde do grupo negro remete às desigualdades étnico-raciais (Brasil, 2013). Trata-se de um marco político, que propõe um olhar diferenciado à saúde, sejam elas ocasionadas por questões genéticas ou agravadas através de processos sociais, culturais e econômicos injustos, enfim, pela falência da sociedade e das instituições públicas em promover cuidado adequado às condições de saúde dessa população.

Embora esse movimento tenha explicitado as condições de vida e saúde física e psíquica da população negra, e avanços tenham sido realizados, pouco se percebe de mudanças estruturais e significativas em nossa sociedade que, ainda racializada, tem perpetuado as iniquidades, colocando sujeitos supostamente “iguais” em condições de desigualdade. Para as mulheres, os sentidos subjetivos também se constituem através da percepção da relação social desigual hierárquica entre negros e brancos e da invisibilidade da população negra:

Eu fico pensando, no interior tem negros que tem a doença [...]. Tem toda uma estrutura por trás que temos que ter. Eu acho que tem que melhorar ainda a base, e principalmente pra nós, tem que melhorar em tudo. Tem que entender o que precisa e priorizar. Infelizmente, tem que priorizar a população negra. Infelizmente, mas é uma realidade. O branco ganha 30 % mais que nós em qualquer profissão. (Adjoa)

Há de se ressaltar que as implicações sociais abordadas na fala da participante Adjoa trazem justamente a potencialização das fragilidades pobreza e pertencimento racial como marcadores ligados à doença. O discurso fala por si, do que faz sentido, do sentimento de menos valia e indiferença, que transparece na intersecção revelada nos pertencimentos. As vivências coletivas das pessoas são concebidas em trajetórias culturais distintas em articulações cotidianas, nas relações entre cada pessoa e a sociedade (Brah, 2002). Entendemos então que para cada mulher negra o processo de subjetivação acontece através da cultura, da história coletiva e social de outras mulheres negras e compreende a dimensão processual permanente, no qual todos os momentos expressam a unidade inseparável do simbólico com o emocional.

Conforme Cordeiro et al. (2013), os modos com que as pessoas com DF percebem suas relações expressam construções subjetivas individuais e coletivas inspiradas em inúmeros fatores e contextos. As mulheres negras se afirmaram historicamente através de experiências ligadas à raça e à classe social, e essas intersecções reforçam a falta de poder e a invisibilidade social decorrentes da articulação dessas variáveis:

Eu acredito que a AF tem cura. Mas tem que achar a cura. Poderia ter mais estudos sobre a doença. Mas façam alguma coisa, vão lá, estudem [médicos]. [...] Se é uma coisa no sangue, por que não tem cura? Por quê? Porque é de pobre, é de negro. É verdade. O atraso, tudo é porque é de negro é assim. Só que agora não é só negro, também há muita mistura de raça. Quem sabe um dia acham a cura. Quando começar a espalhar no branco, aí eles acham. Imagina político se preocupar com nós? Quando? Negro e pobre? Nunca se preocuparam por nós. Quando vão se preocupar? (Ekuwa)

As ações conjuntas de homens e mulheres negras em prol do acesso às políticas públicas edificaram uma política pública de saúde, que se detém especificamente em todas as necessidades de atenção e cuidado das pessoas portadoras da DF (Brasil, 2013). Entretanto, o depoimento da participante Ekuwa traz a percepção de que para a DF, ao contrário de outras doenças hematológicas, o investimento intelectual e político ainda tem sido incipiente.

A fala da participante marca a interseccionalidade de raça e classe social, potencializando-se mutuamente. Podemos dizer que o discurso que as mulheres negras com DF constroem sobre si e sua enfermidade, processa o sentido edificado através da intersecção dos inúmeros marcadores que perpassam a construção social e racial da população negra. Processar a subjetividade solicita um entendimento da trajetória que perpassa todos os movimentos de singularização contraditórios, evidenciados permanentemente no universo social dos sujeitos (González, 2003). A não visibilidade do grupo negro se deu a partir de movimentos históricos e culturais nos processos subjetivos simultâneos que constituem sujeitos e sociedade. Ser imperceptível torna-se perspectiva coletiva comum, cotidiana e partilhada, que origina nas mulheres negras com DF, a autoinvisibilidade. Não se reconhecerem como sujeito de direitos, também subjetiva as mulheres negras e tal experiência sinaliza o que é ser negra na sociedade brasileira. Em seus discursos, as mulheres reconhecem as relações assimétricas e hierárquicas que envolvem a feminilidade negra, mas ainda assim e, nessa perspectiva, a configuração subjetiva aparece atrelada aos sentidos de ser pobre e negra:

Imagina lembrarem que tem uma pessoa com dor, por causa de uma mutação genética, que veio dos nossos antepassados. Que tem um segmento ali da vida da pessoa que tem que ter toda uma estrutura por trás. A gente sofre bastante! Eu fico pensando na pessoa que não tem transporte pra levar, que tem que ficar na fila com dor e aguentar, chorar calado. (Adjoa)

Mesmo com uma política pública estabelecida, a percepção das mulheres como sujeito de direitos, não se faz presente de uma forma mais densa. No discurso dessas mulheres, os direitos e a realidade social se contrapõem à constatação do lugar da DF e da população negra na sociedade; elas demandam ao poder público cuidados sociais, culturais e econômicos. O processo de percepção do outro como sujeito exige que a própria subjetividade seja invocada pela subjetividade daquele outro (Costa, 2008). Desde a Diáspora há uma cegueira pública da mulher negra pelo pertencimento ao grupo de menor poder aquisitivo e que convoca a ela própria à invisibilidade social. Historicamente sua subjetividade não é considerada, tampouco solicitada pela coletividade, e isso causa sensações de desaparecimento às mulheres negras e das questões que perpassam a realidade social e subjetiva do grupo negro.

Para Tomás (2008), a invisibilidade se apoia no desejo de ser reconhecido pelo espaço público, por isso o apagamento social das mulheres negras eclode frente à percepção de desprezo à sua subjetividade. Saber-se invisível mobilizou o discurso das participantes entrevistadas. Até mesmo àquelas com melhores condições financeiras fizeram inferência a si e ao seu grupo social através do anonimato, da irrelevância ou da insignificância. Nesse sentido, invisibilidade e iniquidade, marcas do acesso à saúde do grupo social, constituem a subjetividade das mulheres negras, conjuntamente com a concepção social da DF.

Tá dentro, não tá fora!

Nesse segmento, a frase pontuada pela participante Adjoa discute as questões das interseccionalidades ligadas às construções de gênero. A expressão apareceu em dois segmentos da entrevista; ao contextualizar o momento quando tentou acessar um direito social e depois, ao falar da dificuldade que a doença impõe nos relacionamentos sociais e afetivos:

O médico disse: “Tu tá tão bem, nem tá com o olho amarelo”. E eu: “É, o problema não tá fora. Vamos ter que fazer uma biópsia. O senhor quer me abrir?” Foi bem complicado. Eu disse pra mãe: “Não rolou, vamos partir para outras opções” [...]. Quando eu saio na noite, ninguém sabe a doença que eu tenho. Tá dentro, não tá fora! Então eu me arrumo, saio, me divirto, danço e ninguém sabe! (Adjoa)

A afirmação desnuda o caráter inerente da subjetividade feminina em seus múltiplos aspectos; é um paradoxo à negritude, cuja diferença se alicerça nos caracteres externos que estão “dentro” da informação genética, mas que são perceptíveis por estarem “fora”: são metáforas físicas, sociais e subjetivas. Para Saffioti (2004), o sujeito se constitui na diferenciação das relações construídas e situadas socialmente. Segundo López (2011), os marcadores históricos e culturais compõem as lutas das mulheres negras pelo reconhecimento das diferenças, as constitui, se apropria da sua existência e define seus valores e atitudes. Dentre as construções de gênero destacamos, inicialmente, a capacidade de autocuidado como forma de preservação subjetiva das mulheres. O autocuidado contempla a aquisição de hábitos preventivos em relação à doença. Isso acontece quando a pessoa busca informação, se preocupa e se aprofunda na sua condição de saúde, atuando diretamente no processo de transformação e isto pode mudar a forma que o sujeito percebe a doença e, portanto, sua história (Cançado, 2007). Em última análise, trata-se de uma postura de resguardar e aperfeiçoar a qualidade de vida, estabelecendo a atenção e autocuidados que reverberam em ações positivas sobre a própria saúde e, portanto, sobre si mesma e sua subjetividade:

A contadora do meu setor falou que um primo dela morreu por causa da DF. Daí eu falei [da DF], ela deu um grito: “Tu vai morrer!” Eu disse: “Não, não vou”. Daí eu comecei a rir. Disse que me trato, expliquei tudo [...]. E morre mesmo se não cuidar. Uma disse, a expectativa de vida é 20 anos, aí eu falei: “Pois é, eu já passei dos 20, então está tranquilo”. Eu sei que se eu não me cuidar eu posso ficar doente. (Esi)

A história da doença e a construção de gênero, alicerçada no cuidado, levam as mulheres ao estabelecimento de arranjos para prevenir as crises e o sofrimento advindo dos processos dolorosos. Brah (2006) argumenta que a subjetividade marca o lócus do significado das relações e experiências do sujeito com o mundo. Segundo González (2010), as configurações subjetivas desenham a experiência do adoecer dos sujeitos e possibilitam que eles se reconheçam em todos os processos vivenciados por algumas doenças, sustentando a percepção subjetiva e psicológica dos processos de adoecimento. Nesse sentido, a atitude das mulheres frente à doença não fica restrita ao seu próprio processo da doença, mas emerge a partir do caminho subjetivo percorrido pelo seu grupo social, se organizando através de seus discursos mantendo na cultura a mediação das práticas sociais.

O processo histórico proporcionou experiências e conhecimentos às mulheres negras, que devem ser fortalecidos na cultura brasileira. Conforme Oliveira (2003) é significativa a contribuição das mulheres negras na sustentabilidade da família negra, nas artes do cuidado e na gestão dos espaços sociais ou religiosos; historicamente as mulheres negras se fortaleceram desde construtos históricos e culturais, como mucamas, negras de ganho, amas de leite, quitandeiras, parteiras, domésticas, etc. Entendemos, assim, que a perspectiva do papel histórico da mulher negra também traz inferências importantes sobre o lugar da feminilidade negra e na subjetividade das mulheres na contemporaneidade.

Outro aspecto considerável reiterado pelas participantes que tiveram filhos foi a experiência da maternidade, a qual foi colocada como central para as mulheres negras. Estudos mostram que a gravidez promove maior vulnerabilidade à gestante com DF, ao feto e ao recém-nascido e, apesar do risco de abortamento espontâneo ser grande, não é contraindicada a gestação para essas mulheres (Brasil, 2012). Entretanto, para as entrevistadas a gestação foi um processo que contrariou todas as orientações médicas, mesmo sabendo do potencial de agravamento ocasionado pela da gravidez na DF. Os discursos das mulheres demonstram que o sentido subjetivo de ser mãe foi mais importante do que a preservação da própria vida, rompendo até mesmo com a relação de absoluta confiança estabelecida entre elas e os profissionais.

Os doutores chegavam a se ajoelhar na minha frente pedindo, que não era para eu ficar grávida, que era muito perigoso a minha gestação. Quando eu fiquei grávida do meu primeiro nenê, a doutora queria que eu tirasse. Eu é que não quis tirar. Ela disse: “Tem que tirar, que é muito perigoso”. Eu não fui! A Dra foi embora pra fora do Brasil. Eu encontrei uma vez o namorado dela, daí eu disse: “Tu diz pra ela que eu tenho um nenezinho”. Ela achava impossível eu ter filho. Depois, quando eu engravidei, a minha obstetra disse, “agora tu dá um tempo, tu tem que te cuidar, se vier outro...”. Em seguida eu engravidei da filha. Eu quase me fui! (Abba)

Para González (2003) os sentidos subjetivos autorizam ao sujeito se observar, se reconhecer em lugar de saber e produtor de verdade, constituindo se subjetivamente no espaço social cuja heterogeneidade é a composição singular diferenciada que rompe com a dicotomia entre o social e o individual. Brah (2002) destaca que no entendimento das produções subjetivas do sujeito, observa-se a construção simultânea e inter-relacionada aos aspectos da subjetividade nos seus espaços de convivência e onde as instâncias sociais se interseccionam.

A perspectiva recorrente de vulnerabilidade frente à gravidez já incorporada por essas mulheres corrobora com a discussão da percepção real do risco. O estudo de Da Cruz Santos, Cordeiro, Xavier e Ferreira (2012), acerca das experiências reprodutivas de mulheres negras com DF, revelou sentimentos de triunfo e completude ao falarem das experiências de engravidamento, gestação e parto. O recado à médica é a tônica dessa convicção e a empodera mediante as orientações: o desejo a move e determina o curso de sua vida reprodutiva.

A gravidez significou, para essas mulheres, o estabelecimento de relação diferenciada com a doença e com a vida. Para elas a enfermidade não se sobressai às construções subjetivas femininas, por isso buscam enfrentar a condição de saúde e sobrepujar a própria história e a história social da doença gerando uma nova vida (Santos, Chvatal, Varga, Böttcher-Luiz & Turato, 2011). Ser mãe foi a construção que se manteve indelével às mulheres, mesmo com a experiência de adoecimento e se tornou seu grande desafio. Elas permaneceram indiferentes aos discursos do risco da gravidez para a DF, tanto para elas próprias quanto para o bebê. O que estava em jogo era o desejo edificado na gestação e a relação de confiança estabelecida com o cuidador não as dissuadiu de engravidarem ou levarem adiante suas gestações.

O médico: “Com DF tu não pode ter filho, é muito perigoso!”. Mas como é que tu casa e não vai ter um filho? Fiquei grávida! Quando ele soube: “Eu te falei que tu é alto risco para gravidez”. Ganhei meu filho prematuro, na gravidez fiz transfusão. O guri estava com 2 anos e meio, fiquei grávida. Outro alto risco! (Afia)

A configuração subjetiva, conforme González (2010) é um sistema de sentidos subjetivos complexo com movimentos distintos e até mesmo contraditórios nos diferentes cenários da vida do sujeito. Casamento e maternidade preconizam que os aspectos subjetivos relacionados à construção de gênero mobilizam a mulher produzindo sentimentos complexos. As dificuldades da gestação e o risco do nascimento prematuro do filho para mulheres com condições crônicas de saúde podem acarretar sensações de transgressão, tanto para sua feminilidade, quanto para saúde da mãe e do bebê (Da Cruz Santos et al., 2012). Os construtos autocuidado e maternidade para a mulher que vive com DF ratificam seu papel social de gênero e, ainda, o sentido da maternidade expressa que elas seguiram os preceitos culturais na sua edificação como mulher. Para Dos Santos et al. (2011), a maternidade consolida o papel psicológico e social da identidade de gênero feminina às mulheres com DF. Nem mesmo as vivências de angústias e incertezas perpassadas na gravidez encerraram a história psíquica elaborada para si de gerar uma criança.

Considerações Finais

A intenção desse estudo foi compreender a experiência subjetiva constituída por aspectos múltiplos do ser mulher, ser negra e ter uma doença que a vincula à sua ancestralidade, discutindo os enfrentamentos sócios históricos e culturais das mulheres negras. A proposta foi compreendê-las como mulheres nos espaços em que circularam em seus significados de múltiplos contornos sociais, isto é, buscamos, conforme González (2003), retomar o caminho qualitativo da sua construção subjetiva, redescobrindo os seus sentidos de existirem no mundo.

A DF traz inúmeras condicionalidades aos portadores e restrições sociais, familiares e físicas (Cordeiro et al., 2013). Condição de saúde amálgama a todos os processos vivenciados pelos sujeitos, se edificou, compôs e se misturou a cada experiência das mulheres. Ao buscarmos o significado da condição de saúde, percebemos que ela se encontra ancorada à descendência racial, de classe social e gênero e que esse processo se fundamenta na interseccionalidade, pois se submete as suas experiências como mulheres negras e remete à concepção de ser negra no Brasil. A condição de saúde aparece impregnada de significados e suas dimensões estão circunscritas, principalmente aos marcadores de classe social e de raça, como componentes relacionais que geram iniquidades sociais e que se confrontam com as construções de gênero estabelecidas a partir da história da feminilidade negra.

Para as mulheres negras ser portadora da DF é um processo constante de se sobrepujar à enfermidade, se organizando para transformar o sentido da doença e não inundar suas subjetividades. Nesse aspecto, constroem movimentos subjetivos que subestimam a intensidade da doença e o impacto desta em suas vidas e no grupo ao qual pertencem. A produção de novos significados é assumida, não só pelos episódios constantes da doença, mas pela construção singular de cada mulher nas distintas experiências e diferentes contextos históricos, culturais e sociais e isso ratifica a noção de subjetividade proposta nesse estudo.

As mulheres apreenderam sentidos subjetivos na complexidade da doença, ao mesmo tempo em que lançam mão de construtos fortalecidos culturalmente pelo gênero feminino, como o cuidado e a maternidade. Os sentidos subjetivos, estruturados no seu próprio cuidado e na maternidade, se constituíram como construtos femininos e aparecem como uma imposição da construção de gênero. Ao mesmo tempo, eles elucidam a diferença desejada dentro do grupo das mulheres negras com DF, onde ser mãe foi a experiência incontestável que deu “cor” à vida dessas mulheres e as colocou como protagonistas de suas histórias, contestando as estatísticas de sobrevida da condição de saúde e de abortamento ou morte no parto por DF.

O entendimento das configurações subjetivas das mulheres negras com DF somente foi possível desde a perspectiva da interseccionalidade de gênero, raça, etnia e classe, discernidas, conforme Saffioti (2004), pela multiplicidade do sujeito e reconhecimento da diferença, onde a singularidade do sujeito é determinada pela instância do particular. A interseccionalidade permitiu um olhar ampliado sobre a pessoa e sua subjetividade, e se manteve presente a cada momento e em todos os instantes da existência das mulheres negras com DF, especialmente no discurso que perpassam a sua invisibilidade. As expressões dessas mulheres denunciam a hierarquia social de classe e pertencimento racial na sua configuração subjetiva, e que esse é um processo histórico cultural constitutivo da sociedade contemporânea, explicitando suas histórias e construções subjetivas de gênero.

Na mesma direção, Silveira, Nardi e Spindler (2014) afirmam a necessidade de explicitar os aspectos interseccionais que distinguem de forma hierárquica as mulheres negras, uma vez que eles requisitam a construção de políticas públicas singulares no sentido de garantir efetivamente os direitos das mulheres. Nesse sentido, salientamos a relevância desse estudo na compreensão da subjetividade das mulheres negras, entendendo que esse processo é primordial na formulação de políticas públicas para todas as mulheres e no qual a interseccionalidade e os diferentes itens subjetivos tornam-se componentes fundamentais, que tencionam a atenção prestada às mulheres negras nesse país.

Observamos também a necessidade de que futuros estudos busquem conhecer e analisar as histórias dos homens com DF, para que possamos compreender como o grupo negro masculino experiencia a complexidade da condição de saúde e as produções subjetivas desta vivência. Com isso, poderíamos compreender as articulações da DF com as dimensões subjetivas do homem negro na sociedade brasileira e latino-americana.

Os elementos constitutivos da subjetividade das mulheres negras com DF surgiram de relações construídas mediante a experiência interna e externa, descentrada e heterogênea com todas as suas idiossincrasias. Enfim, sua subjetividade não é única, é fragmentada e em constantes processos: é movimento.

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